Opinião. Auto-retrato duma jovem médica em Portugal
No documentário sobre a vida de Joan Didion intitulado “O Centro Não Consegue Suster-se”, pode ouvir-se, a certa altura, a seguinte frase: “É fácil ver os inícios das coisas e difícil ver os fins.” Um comboio desloca-se através do nevoeiro, e as suas luzes aproximam-se do espetador, que o ouve com clareza. Essa imagem vem-me à memória quando penso sobre a vida: é mais fácil, a certo ponto, recordarmos com alguma nostalgia o passado do que encararmos com ânimo o futuro.
Também para mim é fácil recordar o início do meu internato médico. Na altura, não pensava muito sobre como e quando terminaria. Não imaginava sequer que pudesse traduzir-se em algo importante na minha vida. E é com estranheza que percebo que deixarei de ser interna muito em breve.
2019 foi um ano pautado por diversas notícias sobre o internato médico e os médicos internos: debateu-se a obrigatoriedade de posteriormente permanecerem no Serviço Nacional de Saúde, falou-se sobre as suas competências e até sobre o que devem ao estado. Parece ainda haver muitas dúvidas sobre o que faz um médico interno. Segundo o decreto-lei n.º 13 de 2018, “o internato é um processo de formação médica, teórica e prática, que tem como objetivo habilitar o médico ao exercício da medicina tecnicamente diferenciado numa área de especialização, com a atribuição do grau correspondente de especialista.” Portanto, o internato médico não é sinónimo de curso de medicina. É um período que um médico pode escolher fazer – e a maior parte escolhe – e que lhe confere, no final, o grau de especialista, seja ele cardiologista, pediatra, cirurgião, médico de medicina interna ou de medicina geral e familiar. É possível exercer medicina sem o grau de especialista, mas não é possível ser psiquiatra se não se passar por este processo.
Ingressei no internato médico de medicina geral e familiar em 2016. Tal como a música de Amanda Palmer “In My Mind”, construí uma ideia de mim própria: seria a imagem da disciplina, a imagem da perfeição. Teria as melhores notas, estudaria todos os dias, teria um currículo imaculável, nunca me queixaria. Como uma resolução de ano novo, escrevi mentalmente tudo isto numa lista imaginária unicamente para a esquecer rapidamente, como todas as boas listas do género. A primeira tarefa do meu internato foi desconstruir todas estas ideias. Durante algum tempo, especialmente durante os primeiros meses, tive até receio de dizer que era interna de medicina geral e familiar. Tive medo que os utentes não me levassem a sério, que não sentissem tanta confiança no meu trabalho. Mas, com o tempo, fui percebendo que, na maioria dos casos, o utente não se importa muito que seja interna ou não, desde que seja competente, que me interesse por ele e que faça o meu melhor.
O internato ensinou-me muitas coisas que não teria aprendido doutra forma. Leio, amiúde, livros sobre o assunto, relatos de colegas, de médicos e de outros profissionais de saúde, mas nada me ensinou tanto como este período formativo. Há um livro, em particular, que me tocou por ser muito real: “Breaking & Mending: A junior doctor’s stories of compassion and burnout”. Joanna Cannon, psiquiatra no Reino Unido, fala do internato médico como se fosse um caminho de penitência, retratando a cultura do sofrimento. Se eu sofri, tu também deves sofrer. É legítimo, segundo a escritora, que, para os mais experientes, a forma correcta de ensinar seja deixar um jovem médico, com reduzida experiência, sozinho numa enfermaria ou explicar a uma família que a pessoa que mais amavam acabou de morrer. É suposto digerirmos essa informação como se fosse uma pastilha elástica e, a seguir, colocarmos outra na boca, até nos habituarmos ao sabor. É suposto sofrermos – afinal, receber dinheiro parece ser justificação para tudo, até mesmo para a exaustão física e emocional.
O meu internato não foi como o de Joanna Cannon, mas algumas pessoas ainda têm uma experiência semelhante. O burnout vai-se acumulando desde cedo; conheço colegas que fazem urgências atrás de urgências, não pela remuneração, mas sim porque “tem de ser”. É a cultura do sofrimento que nos é ensinada desde cedo. Um “aguenta, melhores dias virão”. Não quero com isto dizer que os especialistas não trabalham (trabalham, e muito), mas expor pessoas ainda inexperientes e por vezes fragilizadas é perigoso, sobretudo numa fase precoce do trabalho e da formação. E os médicos internos têm lutado, tal como muitos outros profissionais de saúde, por condições melhores e pelo reconhecimento da sua atuação.
Um médico interno trabalha, no mínimo, 40 horas e estuda muitas outras. Chega a casa e abre os livros para estudar, liga o computador e percorre artigos recentes para fazer trabalhos obrigatórios para o seu currículo – a pedra basilar da sua avaliação no final de quatro a seis anos de formação. Inscreve-se e frequenta cursos, alguns obrigatórios, outros opcionais. Tem de frequentar congressos – não só porque são períodos que deviam ser interessantes em termos formativos, mas também porque é uma oportunidade para expor trabalhos e cimentar o seu currículo. Quando tem tempo livre, tem de pensar se o utiliza para descansar ou se para fazer o trabalho X ou Y. Participa em projetos de investigação, muitos deles – a maioria – sem qualquer tipo de apoio formativo, financeiro ou simplesmente organizativo (isto é, não tem horário definido para o fazer). Faz testes de avaliação, exames escritos e orais. Participa nas atividades dos serviços onde trabalha e, a certo ponto, é totalmente independente na atividade assistencial.
O internato não é “só” um “estágio remunerado”. É um período muito importante para um médico. Porquê? Eu diria que é importante porque nos expõe à prática, essa dimensão tão importante para um profissional de saúde, e também porque é um período formativo mais diferenciado. Mas sobretudo é importante porque nos ensina o valor da relação terapêutica. Da relação médico-doente. Da importância do trabalho de equipa. Da importância de cuidar e ajudar, algo que só pode ser aprendido quando se percorre o caminho de profissional de saúde no terreno, numa enfermaria, numa sala cirúrgica ou num consultório.
O internato ensinou-me que não existem horários. Há semanas em que trabalhamos 40 horas, outras 60 horas, outras mais. Sim, faz parte do trabalho, como se costuma ouvir. Às vezes, uma consulta demora mais. Às vezes, aquela pessoa precisa de mais dez minutos, vinte, trinta. Às vezes as cirurgias complicam-se, os hospitais de dia são caóticos. O internato ensinou-me que uma má notícia não é dada nos vinte minutos estipulados de consulta. Ensinou-me que é preciso mais tempo, e ensinou-me o preço disso. Faz parte do meu trabalho como médica de família saber como aquela pessoa está a reagir aos tratamentos hospitalares. Como se sente. Como se sente a mãe, o pai, o marido, a filha, o melhor amigo. Mas também me ensinou que isso tem consequências – quer para o profissional de saúde, quer para as outras pessoas que aguardam na sala de espera. São muitas as consultas, e nem sempre o tempo é muito. Nem sempre é suficiente.
Aprendi, durante o internato, o valor de trabalhar em equipa. Aprendi o quão importante é, na primeira fase de trabalho como médico, ter uma figura de experiência ao nosso lado, que nos saiba guiar e aconselhar. Aprendi também o valor dos diferentes profissionais que trabalham connosco todos o dias; no meu caso, dos assistentes operacionais, dos secretários clínicos, dos enfermeiros, dos colegas. Aprendi os nomes de cada um, a suspirar de alívio quando me ajudavam, quando nos ajudávamos. Aprendi, sobretudo, a importância de conversar, de discutir e de debater em conjunto. E aprendi também que nem sempre isto é fácil, mas que é crucial.
Mas algo que nunca esquecerei foi ter aprendido a reconhecer os rostos de cada utente, a conhecer-lhes os nomes próprios, as alcunhas, os nomes dos familiares, as profissões, as suas crenças, os seus objetivos de vida. Aprendi a escutar, a receber, a pensar sobre o que podia ter feito melhor e a aceitar que não podia ter feito melhor. Aprendi a gerir o tempo e também aprendi que às vezes não é possível controlar tudo. Aprendi a fazer telefonemas, a perguntar se estava tudo bem, em que podia ajudar. Aprendi que nem todas as pessoas sorriem, nem todas choram e nem todas se zangam. Aprendi que há pessoas violentas, aprendi que há pessoas ríspidas porque estão fragilizadas, aprendi que há pessoas que simplesmente são como são e que não podemos nem temos de mudar isso. Vi nascer, vi crescer, vi morrer.
No último dia de internato, na véspera dos preparativos do Natal, sentei-me, como habitual, na minha secretária. Pensei em quem gostava de me despedir, dos utentes que nunca mais veria, dos colegas com quem nunca mais trabalharei. Para muitos, provavelmente, fui mais uma profissional que por ali passou temporariamente. Para mim, porém, foram a razão que me leva a terminar esta fase e pensar que valeu a pena.
Sobretudo, o internato ensinou-me o que significa, para mim, ser médica. É um caminho, em parte, solitário, de autoconhecimento, mas também é um caminho de descoberta dos outros. E só por isso já valeu a pena. Sei que é um caminho que se prolongará, pois a aprendizagem e o trabalho serão constantes. As lutas continuarão: o Serviço Nacional de Saúde passa por dificuldades, desafios e muitas outras coisas que nunca poderia explanar neste pequeno texto. Há violência contra os profissionais de saúde, e às vezes nem reportamos as coisas que diariamente acontecem, porque nunca há tempo, foi passageiro, vai passar. E é difícil manter o optimismo, a força de vontade – os colegas mais velhos recordam-nos disto e sabem-no como ninguém. Mas, e por enquanto, apenas penso nas palavras de Joan Didion: “É fácil ver os inícios das coisas e difícil ver os fins.” Aos meus colegas (ainda ou futuros) internos, digo: há um fim, sim. Mas o que importa, no fundo, é tudo o que vai desde o início até à despedida. É essa a base da construção do que somos e do que queremos continuar a ser. E é isso que nos devemos.
Artigo escrito pela Médica Teresa Tomaz