“Oppenheimer”, de Christopher Nolan: uma história sobre remorso e agitação
Estes artigo pode conter spoilers.
Os filmes de Christopher Nolan são objetos consumidores de matéria, como buracos negros do espácio mediático, notórios por agitar o debate atual e marcar as tendências temáticas das obras que lhes sucedem. O tremor causado pela figura deste Cthulhu (entidade cósmica criada pelo escritor H. P. Lovecraft) do cinema mainstream provoca, frequentemente, uma rutura no paradigma já estabelecido e o alvoroço entre a crítica e os espectadores. Desta vez, Nolan está de regresso com a tão aguardada biopic do físico J. Robert Oppenheimer (sabe mais sobre o físico).
Para recuperar da cefaleia provocada por Tenet (2020), o realizador britânico traz-nos um shot de adrenalina redentor, nesta que é uma história sobre remorso e agitação, com estreia nas salas de cinema portuguesas a 20 de Julho. No elenco juntam-se Cillian Murphy, Emily Blunt, Robert Downey Jr., Matt Damon, Florence Pugh, Kenneth Branagh, Casey Affleck,Rami Malek e Gary Oldman.
“Oppenheimer” é uma adaptação da biografia, vencedora do Prémio Pulitzer em 2006, “American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer”, escrito por Kai Bird e Martin Sherwin. O paralelismo à figura mitológica do titã Prometeu surge durante os primeiros segundos do filme e estende-se no decorrer do mesmo num ensaio sobre ações e as suas consequências.
Robert Oppenheimer foi o físico teórico responsável pelo conhecido “Projeto Manhattan”, em Los Alamos, durante a Segunda Grande Guerra, que tinha como objetivo a investigação e o desenvolvimento de armamento nuclear, numa corrida contra a Alemanha nazi, e resultou na produção das duas bombas atómicas largadas em Hiroshima e Nagasaki.
A história de Nolan arranca com Robert Oppenheimer, protagonizado por Cillian Murphy, ainda na faculdade, um espírito inquieto, mas sempre curioso. No decorrer do filme, são exploradas alguns dos aspetos políticos e ideológicos na vida do físico, nomeadamente a sua aproximação ao Partido Comunista, que lhe valeu, após os bombardeamentos no Japão, longas horas de inquisição Macarthista.
As sessões de inquéritos da “security hearing” a Robert Oppenheimer e aos seus colaboradores no Projeto Manhattan pelos conservadores são autênticos duelos de palavras. As linhas de diálogo, rápidas e impactantes como balas, perfuram, a cortes rápidos e em jeito Sorkiniano, as sequências de pergunta e resposta. A entrega de Murphy acompanha o ritmo do filme, sem perder o impacto, mas todo o elenco, repleto de estrelas — algumas que apenas pontuam brevemente os momentos-chave do filme — acompanha a cadência com esmero.
É importante realçar o momento em que Nolan reproduz a sua expertise em esticar, ao máximo, a corda do suspense como uma banda elástica, para ver até onde esta pode ir sem nos estalar no rosto, uma proeza que já tinha demonstrado em sequências como a famosa “docking scene” de “Interstellar” ou a “first bombing scene”, de “Dunkirk”. Desta vez, o grande momento do filme decorre durante o “Teste Trinity”, no qual somos levados, por momentos, a acreditar que existe a ínfima possibilidade de o mundo ser destruído, enquanto uma mão trémula, suspensa acima de um largo botão vermelho, aguarda em contagem decrescente. Através desta sequência, “Oppenheimer” acelera cada uma das nossas partículas cinéfilas até criarem uma combustão. O ritmo do filme, que já tinha iniciado em grande rapidez, aumenta gradualmente até se tornar dilacerante (no melhor dos sentidos), depois trava bruscamente, apenas para retomar a marcha ainda mais rápido do que começou.
À semelhança de Deus que, no conhecido teto de Miguel Ângelo, espera alcançar o dedo de Adão, também este filme procura tocar o subjetivo e o objetivo, aproximar a física da metafísica, o verbo da carne, o interior do exterior e misturá-los numa só dimensão. A fusão acontece através de colapso espontâneo e explosivo que nos imerge em planos de corte que propõem, à semelhança do protagonista, “ver além do mundo em que vivemos”. Invadem-nos as órbitas com imagens de outra dimensão, que lembram a abordagem experimental de filmes como Koyaanisqatsi (1982) e, com isto, somos reduzidos a pó, a partículas de tal forma ínfimas que transcendem a perceção visual. Os sons pesados articulam a enormidade da força de massas microscópicas, a tensão da física acumula-se e manifesta aparências indecifráveis, é então que nos perdemos não na poética, mas na imensidão das imagens. Falo, não só destes breves momentos, feitos para nos inserir no plano subjetivo do protagonista e para ilustrar conceitos da física quântica, mas também naquela forma, já conhecida do realizador e que o torna tão especial.
Hoyte van Hoytema, conhecido por colaborar com Nolan em filmes como “Interstellar” (2014), “Dunkirk” (2017) , e “Tenet” (2020), é um dos protagonistas responsáveis pelas qualidades estéticas do filme. Desta vez, o diretor de fotografia holandês juntou-se à Kodak para desenvolver um formato de película 65 mm a preto-e-branco. A fissão entre as sequências a preto-e-branco e as restantes, a cores, contrastam, à semelhança de “Memento”, duas timelines, mas, neste caso, confrontam, igualmente, atos e consequências. A convergência entre a técnico-formalidade e a expressão do seu significado não é imediata, mas é evidente, desde o começo que não se trata de mero fetichismo. Em cinema, não existe estética sem implicações éticas e esta divisão propõe dois planos distintos, um emocional e outro analítico.
Conhecido por não utilizar efeitos especiais (VFX), recorrendo somente a efeitos práticos, Nolan consegue ser um mestre das imagens que, apesar de belíssimas, nem sempre satisfazem a larica semiótica de alguns. Apesar do seu engenho narrativo, a argúcia dos seus enredos, notoriamente complexos e labirínticos, nem sempre correspondem à forma colossal que o seu cinema assume.
Ouvi recentemente que a linguagem cinematográfica de Christopher Nolan possui vários “erros de pontuação” e concordo. A montagem dos seus filmes é muitas vezes difusa e nem sempre enfatiza o momento ou a fala-chave de uma cena e este novo filme não é exceção. No entanto, é seguro afirmar que, com Oppenheimer, Nolan conseguiu tornar essa lacuna uma qualidade, na medida em que o fôlego das cenas não é recuperado através da exposição (como acontecia por exemplo em títulos como “Tenet” e “Intestellar”), mas antes reestabelecido com o compasso da montagem, ainda que por vezes isso resulte em largas sequências e planos rápidos sem espaço para absorver qualquer reação.
“Oppenheimer” é, não obstante, um filme temático e formalmente necessário na atualidade e nas palavras de Paul Schrader, “o filme mais importante deste século”. Vale, igualmente, a pena repetir o que um dos “Cinéfilos que Ninguém Pediu”, Daniel Mota, referiu recentemente: “Goste-se ou não, é inegável que Christopher Nolan é um auteur”.
Faço parte de uma geração que começou a aprofundar o seu interesse e paixão por cinema quando Christopher Nolan se encontrava em ascensão. Filmes como “Memento” (2000), “Insomnia” (2002) e “Inception” (2014) marcaram-me para sempre e ver Nolan regressar às salas de cinema era e é um acontecimento. Pode parecer ingénuo e desapontante, a alguns connoisseurs da sétima arte, que tal fascínio possa surgir por uma figura como Nolan, mas é importante relevar, que sempre me perdi, como já tinha referido, não na poética daquelas imagens, mas na sua imensidão. Naquela forma potente que enche a tela com uma sobriedade elegante, revestida de uma película filosófica polida, enredos crípticos sobre a forma física do tempo e cadeias intermináveis de sonhos e que agora revisitei com “Oppenheimer”. Aguardo para ler, a cada estreia do realizador, com perverso consolo, como muitos dos colegas da crítica de cinema procuram desarmar a obra de Nolan numa esgrima de argumentos pretensiosos que, a meu ver, termina, frequentemente, em autoflagelo.
Serão feitas muitas considerações sobre o filme durante as próximas semanas, mas, ao sair da sala de cinema, a sua história confronta-nos com uma premissa que transcende a sua própria forma e enredo. Esta obra, que muitos acreditam tratar-se de um documento de representação histórica, levanta um problema que reflete o clima atual. Talvez a criação da bomba atómica tenha destruído, efetivamente, o mundo. O ruído de “Oppenheimer” estende-se, assim, às nossas vidas, ao nosso pensamento sobre a natureza humana e às suas convicções.