“Os 100 Melhores Planos do Cinema – 100 Autores, 100 Planos”: um livro que é uma lição de cinema
Há epifanias que dão coisas assim. No caso, a de Nélson Araújo, ocorrida durante a pandemia, e que haveria de germinar num livro capaz de “estabelecer um diálogo” com o ‘outro’. A única premissa é que seria ditado por essa coisa esquisita que dá pelo nome de cinema. O resultado são Os 100 Melhores Planos do Cinema – 100 Autores, 100 Planos.
A história (e o convite) surgiu por um email recebido em Março passado. Mencionava uma publicação em que se “convida 99 pessoas a escolherem um plano (fragmento fílmico situado entre o corte de montagem) que considerem significativo, do ponto de vista da aplicação da linguagem cinematográfica, justificando aquela opção num pequeno texto”. Posso contar com a sua participação? Assim terminava e assim se concretizava o repto. Próximo do desafio de um Cadavre Exquis.
Travellings, planos-sequência, panorâmicas, plongés… No fundo, decisões de colocação e uso da câmara que, uma vez editadas, transmitem a linguagem do cinema. É assim entre o plano assombrado de um segundo em Vestida para Matar, de Brian De Palma, proposto por Eurico de Barros, e o filme-plano de 96 minutos, do filme A Arca Russa, de Alexander Sokurov, por mim escolhido, que se ergue toda uma constelação de excertos que vai escavando em redor daquilo que Godard definiu como algo próximo de um jogo entre a vida e a morte, ou seja, entre a ‘ação’ e o ‘corta!’. Por certo, este livrinho (ainda são mais de 400 páginas!) poderia servir como uma proposta filmológica alimentada por muitos dos docentes e investigadores que compõe a lista de autores; ou até uma sugestão de leituras analíticas referidas por outros tantos críticos aqui reunidos.
Podemos procurar elementos casuais, como “o teatro em metamorfose cinematográfica”, invocado pelo professor e investigador Eduardo Paz Barroso, em Cenas da Vida Conjugal, de Bergman, ou o perturbante ‘espelho’ dado pela própria televisão em Tudo o que o Céu Permite, de Douglas Sirk, oferecido pelo cineasta Jorge Cramez; há ainda o cinema ortopédico de Robert Bresson, selecionado por Maria do Rosário Lupi Bello, em Diário de um Pároco da Aldeia, em que a mão capta o gesto e toda a atenção; a docente Maria Irene Aparício debruça-se sobre “um dos planos mais belos do cinema”, ao revelar-nos o “grito silencioso” da personagem de Chishu Ryu, sucumbindo depois de descascar uma maça (que foi uma vida inteira!) em Primavera Tardia, de Yasujiro Ozu; ou a descoberta mítica do próprio cinema, aflorada por Nelson Araújo, em O Desprezo, de Godard, na ascensão do ator Michel Piccoli em que a História e ‘todo’ o cinema se mostra em plena criação. E há, claro, as paixões assolapadas, que jamais nos largarão (e têm de ser mencionadas): o crítico João Antunes regressa ao bar de Vienna para o diálogo mítico com um tal Johnny Guitar, ou ao filme-fétiche do crítico e programador Ricardo Vieira Lisboa, em Rebecca, de Hitchcock, ou a sequência que cristaliza um género de terror, em Halloween, exorcizado por Luís Mendonça. Isto só para citar alguns, sendo que toda a centena de planos seria mencionável.
E planos portugueses? Sim, claro. Muitos. O ‘icónico’ Verdes Anos, de Paulo Rocha, invocado por Paulo Cunha, ou O Cerco, de Cunha Telles, recordado por Leonor Areal; há ainda João César Monteiro (Ana Vera, Catarina Maia), o inevitável Oliveira (Rita Benis, José Quinta Ferreira), Quaresma, com a finesse de Álvaro de Morais (Paulo Carneiro) mas também o culto em redor de O Sangue, de Pedro Costa (Daniel Ribas), ou atualização em Sangue do Meu Sangue, de Canijo (Filipe Lopes). Até Morrer como um Homem, João Pedro Rodrigues (José Bértolo).
É talvez nesta deambulação desordenada que a ideia de ‘cadáver esquisito’ vai assumindo os seus contornos. Como um plano diabólico em 24 imagens por segundo. Em que a viagem se faz à medida do leitor, ordenadamente, folheando, ou desordenadamente, procurando obter uma visão, ainda que obtusa, mas uma visão (ou um plano?), às vezes, com necessidade de confirmar alguns segmentos, tanto ligando aos autores como aos filmes. Mas com a vontade de lhe conhecer os limites. De consumir este livro, que bem poderia ser um filme.