Os ambientes de Brian Eno
Brian Eno tornou-se um dos mais célebres músicos instrumentais do século XX. Viajando por uma imensidão de estilos, sempre visou transcender a “mera” condição de músico e afirmar-se como um artista de pleno direito. Estudante de pintura e de música instrumental, o inglês juntou-se à vida musical no início da década de 1970, tocando o sintetizador da banda de Bryan Ferry, os Roxy Music. No entanto, deixou a banda dois anos depois e embarcou numa carreira a solo muito particular. Apesar de muito individual e de diferenciada, fez questão de colaborar com uma imensidão de talentos, como os de Robert Fripp – a guitarra dos King Crimson -, David Bowie, David Byrne, John Cale e até os U2, os Coldplay e muitos, muitos outros. Dedicou-se, num percurso que se prolonga há mais de cinco décadas, em fazer da música muito mais do que o tratamento humano e instrumental do som e da tornar numa verdadeira experiência artística.
Brian Eno nasceu a 15 de maio de 1948, em Suffolk, Inglaterra. Do seu longo percurso académico e musical, destacam-se, desde logo, algumas passagens dos anos 1970, onde deu cartas com a música que reuniu e que produziu em álbuns de nomeada, que abriram as portas para ao nascimento da música ambiente. Desde logo, “Here Come the Warm Jets” (1974), onde tentou unir um pouco desse glam rock que tinha experienciado na banda com as suas descobertas e expedições vanguardistas, um pouco à imagem do art pop emergente. Fez-se rodear de alguns artistas notáveis na altura (entre eles, dois dos membros da banda King Crimson) e começou a dar cartas, num percurso ao qual se juntou “Discreet Music”, bem mais convicto nas nuances ambientais e bem mais minimalista, que se consolidou formalmente com “Ambient 1: Music for Airports” (1978) e que se prolonga até “Ambient 4: On Land” (1982).
No entanto, e entre verdadeiramente inúmeros contributos musicais, Eno procurou vislumbrar com mais detalhe a dimensão criativa e artística. Entre esses projetos, está o desenvolvimento de um método chamado Oblique Strategies. Com o uso de cartas, procurava dar azo a que os bloqueios criativos se pudessem superar com o uso de um pensamento lateral e diferenciado, abrindo horizontes para outras perspetivas de criação. A esse contributo, juntou-se a sua participação na criação, em 1996, de uma fundação, de seu nome Long Now, com a ambição de tornar o pensamento e a expressão cultural e artística algo mais metódico e meticuloso, ao invés de acelerado e até consumível. A fundação vem desenvolvendo vários projetos artísticos com o sentido de materializar toda essa problematização.
Porém, tudo isto só poderia ser possível com a abrangência inovativa de Eno na música. Eno, na sua génese, manipulava as fitas de música, profundamente interessado em subvertê-las e em transformá-las de diferentes formas. Foi, aliás, essa filosofia que o permitiu tornar o estúdio num instrumento per se, capaz de recorrer a toda a sua indumentária para originar a sua música de referência, criando um ambiente com a sua expressão. No entanto, o seu minimalismo é justificado pela necessidade de manter o som numa passada baixa, jogando com o sentido da audição. Com isto, porém, procurou sempre reforçar os aspetos atmosféricos e acústicos, dando-lhe um trago de incerteza e de imprevisibilidade no discurso ambiental. Só assim poderia captar um ambiente de calma e de introspeção, onde se vocaciona para o espaço de enfoque e de atenção. São, assim, e de acordo com o próprio, “tratamentos musicais”.
Porém, Brian Eno tornou-se bem mais do que um esmerado criativo. Produziu dezenas e dezenas de discos, desde bandas, como os Talking Heads (em “More Songs About Buildings and Food” (1978), “Fear of Music” (1979), e “Remain in Light” (1980)), os U2 (em “The Unforgettable Fire”, de 1984, e “Achtung Baby”, de 1991, entre outros), os Coldplay (“Viva la Vida or Death and All His Friends”, de 2008) e os James (entre outros, “Laid”, de 1993, e Wah Wah”, de 1994), passando, claro está, por David Bowie, na sua trilogia de Berlim (“Low” (1977), “Heroes” (do mesmo ano) e “Lodger” (1979)), por David Byrne a solo (em “My Life in the Bush of Ghosts”, de 1981, e “Everything that Happens Will Happen Today”, de 2008) e por John Cale (“Wrong Way Up”, de 1989). Até com os The Gift, banda portuguesa, Brian Eno chegou a colaborar, em “Love Without Violins” (single de 2006). De igual modo, compôs músicas para filmes, como “Dune”, de David Lynch. Para parte destes trabalhos, Eno contou com o apoio do seu colaborador, o músico canadiano Daniel Lanois, ajudando-o na escrita das músicas, assim como nas vertentes da mistura e da produção.
Eno comporia, também, música para o sistema operativo Windows 95, onde, ao todo, faria oitenta e quatro peças, todas elas com microssegundos de duração. A grande curiosidade desta composição é o facto de a ter feito num Mac, sendo averso a computadores. No entanto, o interesse com a tecnologia sempre foi grande, ele que procurou sempre explorar a luz, ao mesmo tempo que o fazia com o som. Recorrendo, inicialmente, a uma câmara industrial, começou as suas “video paintings”, para as quais fazia um álbum musical. É deste contexto que nasce “Thursday Afternoon” (1984), dando música a um conjunto de imagens que vão navegando entre o estático e o dinâmico, e “Kite Stories” (1999). Foi uma forma que Eno encontrou de transportar a sua toada ambiental para o âmbito visual, uma experimentação muito frutífera até às “77 Million Paintings” (2006), um DVD com um software no qual a combinação entre a música e a imagem nunca se repetem, sendo gerados aleatoriamente a partir das instalações artísticas do músico.
É neste panorama que Eno também se encontrou com o fenómeno da música generativa, que se explica com o sentido de desenvolver sistemas capazes de produzir música com uma duração indeterminada a partir de fragmentos do seu material musical, que foram compostos especificamente para harmonizarem perante a presença de algoritmos. Foi um processo que já havia começado com as fitas, fazendo loops com essas, de forma a encontrar essa sensação única de combinar padrões de som e momentos musicais. Enquanto elementos básicos e fundamentais se mantêm presentes, Eno criava essa sensação de variedade e de distinção que se prolonga até ao infinito e até a uma sensação plena de liberdade. No entanto, e perante a ténue linha que pode separar a sua música do barulho, Eno envereda pelo caminho imagético e da imagem para colocar a perceção em interrogação, das dimensões do tempo e do espaço, compondo ambientes imersivos.
São autênticos processos artísticos, mais do que produtos finais, que se continuam a desenrolar consoante a interação com essa arte se vai dando. Isto sem nunca esquecer esse pano de fundo fundamental, esse cenário que permite que a experiência se possa completar. Com a imagem, tanto a que captava, como a que desenhava, Eno fez críticas à velocidade dos meios de comunicação e às suas narrativas, não permitindo perceber os momentos de mudança e as dádivas do ambiente. Por isso, na forma como configura a luz com o audiovisual, o inglês transmite uma postura, uma presença que se quer de contemplação e de figuração, mas sempre de exploração de possibilidades e de interação crítica com os media. No núcleo, sempre a luz. Uma luz cativante e absorvente, à qual o som, nos seus efeitos manipulados e registados, se junta para desenhar esses ambientes demarcados da realidade, embora sempre muito reais. A luz, mais ou menos materializada, escreve-se em esculturas e em materiais do dia-a-dia, que permite associar a tal realidade à dimensão onírica e meditativa.
Há uma libertação, uma necessidade de reconfiguração e de comunhão com o abstrato, que, nas suas várias combinações cromáticas e sonoras, se desdobra em ambiente real e virtual, fazendo uso da vasta gama de tecnologia à disposição do criador, Eno. Eno, que já participou em inúmeras exposições artísticas, para além de criar instalações próprias para a meditação fora do espaço artístico convencional. Por exemplo, entre outros casos similares, no hospital de Montefiore, em Inglaterra, reuniu oito plasmas, nos quais colocou a passar um padrão visual florido, e, com várias combinações de formas, cruzar com a tal música ambiental generativa para um espaço de contemplação e de descontração. De igual modo, compôs música para videojogos e para aplicações de telemóveis, nomeadamente para o sistema operativo iOS, da Apple.
Brian Eno fez, assim, a sua música subsistir pelos tempos e pelos meios. A sua música ambiental destinou-se sempre ao infinito, desdobrando-se perante a aparente letargia e a aparente constância das coisas, longe da mudança. A chegada dos meios tecnológicos avançados permitiu-o socorrer-se dos algoritmos para alcançar essa relação inesgotável de padrões de elementos musicais e de materiais em bruto para poder semear um jardim ao seu gosto, como ele próprio referiu. Tudo isto sem abandonar essa saudável obsessão com a luz e com as combinações de cor, de forma a conduzir o outro ao momento presente e a, nele, se fixar, perante a volatilidade e a imprevisibilidade humana e da própria vida.
Eno criou, também, a sua própria editora, de seu nome Obscure Records, com o objetivo de descobrir e de lançar novos e desconhecidos compositores musicais. No entanto, seria ele próprio a abrir as hostilidades da editora com “Discreet Music” (1975), onde interpreta uma peça do alemão Johann Pachelbel e que antecede a sua revelação ambiental. Aqui, usa as tais fitas para criar a música generativa que tanto foi buscando e que foi encontrando, também, em “Another Green World” (1975, onde recorre a Phil Collins e a John Cale para se juntarem em canções de um álbum muito heterodoxo, recheado de “estratégias oblíquas”) e em “Apollo: Atmospheres and Soundtracks” (1983, gravado para um documentário de Al Reinert ao lado do seu irmão, o também compositor Roger Eno). É um percurso, assim, repleto e recheado de aberturas para outras formas de saber fazer arte e música, para além de toda uma nova perspetiva em relação ao estúdio como meio instrumental. Para além disso, soube acompanhar o desenvolvimento tecnológico, que foi ao seu encontro nas plurais formas vanguardistas de eternizar o som.
Social e politicamente, Eno também assumiu muitas posturas convictas, o que também considerava ser parte de um artista, que não é mais do que um “gerador social”, alguém capaz de, a partir das suas experiências pessoais e artísticas, criar contextos para que outros geradores se criem e se cruzem. Para além de apoiante de Jeremy Corbyn, antigo líder do Labour Party, apoiou um boicote generalizado às instituições políticas e culturais israelitas, perante a postura imoral do seu estado em relação aos palestinianos. De igual modo, envolveu-se em causas ativistas, nomeadamente de cariz humanitário e posicionou-se contra o Brexit.
Brian Eno é, assim, um artista distinto, de constante descoberta e de intriga criativa. Eno acompanhou o percurso dos tempos, fazendo agitar a sua bandeira da criação de ambientes em espaço mais ou menos controlado, mais ou menos definido. Essa definição fez parte do desenho da sua carreira e da sua descoberta plena e consistente, com portas abertas ao presente pelos canais do futuro. O objetivo de encontrar o infinito através da música, sem arriscar a repetição, foi uma meta delineada mal abandonou o rock, correspondendo à sua vontade artística de almejar o transcendente. Um transcendente que não é mais do que um reconhecimento presente, pelos meios vanguardistas que foi conhecendo como ninguém e criando como ainda menos. Para si, para os (muitos) outros, mas, em suma, para a criação da infinita meditação.