Ana Roxanne e a sua música feita de pequenos mundos oníricos

por Bernardo Crastes,    5 Dezembro, 2023
Ana Roxanne e a sua música feita de pequenos mundos oníricos
Fotografia de Rich Lomi
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Um género musical subvalorizado para se experienciar ao vivo é o de música ambiente. Quando bem explorada, cria uma envolvência incomum que pede a atenção indivisa do espectador. Cada mudança subtil na música aparentemente inerte abre novos portais e vai sugerindo sensações diferentes à medida que se move, leve como fumaça. Foi isso que aconteceu no concerto de Ana Roxanne num dos mais recentes recintos de Lisboa, a Sala Lisa.

A reduzida cave estava a rebentar pelas costuras para o concerto da californiana, que usa guitarra, sintetizadores, loops e a sua própria voz espectral para criar canções delicadas. Apesar da sala cheia, o público foi muito respeitador do silêncio necessário para apreciar o estilo musical de Roxanne, sendo que qualquer distração pode ser suficiente para quebrar a ilusão.

Apesar da natureza relativamente experimental e dada a improvisação da música ambiente, o concerto foi ancorado nas canções editadas no seu primeiro (e, até agora, único, se não contarmos com o seu projecto Natural Wonder Beauty Concept, partilhado com DJ Python) longa-duração, Because of a Flower, lançado em 2020. “A Study in Vastness” foi uma das primeiras, cujo drone etéreo parecia vir de todas as direcções, graças ao inteligente design de som da sala. O delay aplicado sobre a voz de Roxanne arrastava as suas vogais, passando a imagem de uma peça musical em constante expansão. Fosse o tecto da sala mais alto e sentiríamos ainda mais a vastidão referenciada no seu título.

Ana Roxanne ao vivo no festival Jardins Efémeros, na Catedral de Viseu, em 2022

O ritmo pré-gravado de “Camille” é instantaneamente reconhecível — e a única ocasião em que algo semelhante a uma batida se ouve na sala de espectáculos. Talvez seja a canção mais perturbadora de Roxanne, seja pela melodia relativamente ominosa ou pelo sample em francês que parece retratar uma discussão. Mas, ainda assim, tudo nela se desenrola como um sonho; ligeiramente torto, mas, ainda assim, um sonho. Por outro lado, a bela “Venus” — com os seus suaves sons de ondas do mar e teclas cósmicas — está no lado mais relaxante da música ambiente. É self-care em forma de música, desenhada para nos apaziguar.

Depois de revisitar o seu próprio catálogo, Ana Roxanne atirou-se a duas versões que já são apanágio das suas apresentações ao vivo: “Forget About”, da “perdida” artista alemã Sibylle Baier, e “The World Spins”, de Julee Cruise — a amaldiçoada diva de David Lynch. A abordagem vocal de Cruise é em muito similar à de Roxanne, que, com um pouco mais de delicadeza, nos prendeu a uma interpretação hipnotizante em que chegou a cruzar olhares com membros do público para gerar uma intimidade desarmante e inesperada. Foi um final perfeito que nos transportou para o Roadhouse de “Twin Peaks” e para o seu cenário banhado a luz vermelha.

Ao final de pouco mais de 40 minutos, com tão pouca cerimónia como começou, de repente o concerto havia terminado. Já no final de cada uma das canções tocadas, Roxanne girava rapidamente os manípulos do seu aparato electrónico para terminar os seus loops de forma ligeiramente abrupta. Era como se cada uma das canções fosse o revelar de um novo mundo onírico por detrás de uma cortina e, no final, simplesmente a largássemos para nos toldar a vista de novo repentinamente. Como se apenas pudéssemos ter um vislumbre do que por detrás dela se encontra. Queríamos ter passado um pouco mais de tempo em cada um destes mundos, mas ainda assim foi um bálsamo termos podido experienciá-los ao vivo.

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