Os dias da rádio
Esta podia ser uma sinopse bem construída de um dos mais belos filmes de Woody Allen, mas para bem construído basta o filme.
Cá por casa, algumas vozes costumavam esventrar paredes. Rasgá-las, deformá-las, penetrá-las, vezes sem conta, na demanda de um conforto acrescido e fraterno e da construção de uma atmosfera rica em reminiscências. Não sei até que ponto foram capazes de pedir licença para arrombar as fechaduras existentes ou educadas para redigir um pedido formal e devidamente assinado. O certo é que — com ou sem autorização — se instalaram na casa onde cresci, muito antes de ter nascido.
A comunidade parental é constituída por espécies de moral dúbia: os seus dizeres esbaterem num nevoeiro que os filhos não devem — nem podem — questionar. Sempre me disseram que não devia falar, abrir a porta ou privar com estranhos. Contudo, não foram capazes de impedir uma invasão diária. Pior! Estavam de caras (e diversas funcionalidades da mesma) com os intrujões, mas permaneciam submissos a uma impotência indizível; como alguém que é engolido pelo azul do mar, chora, esperneia e grita, mas não é capaz de nadar ou remar contra a maré — a redundância que faltava.
Até à articulação de frases com o mínimo sentido, a resposta incidia sobre o choro e os brados agudos. Ali, a presença de alguém (alguma coisa que vociferava) era desavinda. Perante os factos, esvaía-se o conceito de “família”. Sentia, mas não sabia expressar-me. Além disso, a fome ininterrupta emaranhava-me as ideias.
Como já disse — e para espanto geral — cresci. Suspiros, semblantes pasmados. A educação concedida pelo corporativismo parental borbulhava, efervescia e queria operar o mais rápido possível. O hábito alistou-se a este projeto de médio-longo prazo. Não tinha escapatória possível e, por essa razão, fui presa fácil para um conjunto de ondas sonoras armadas em predadores vorazes. Por essa altura, cá por casa, o masoquismo começava a trepar paredes. O condimento que faltava para um cozinhado sob a tutela de um lume brando.
A mutação aconteceu há, sensivelmente — a precisão é algo que se pode aprimorar — dois pares de anos. Escusam de forjar-me à resposta das questões que sucedem a composição de um lead. Não tenho como nem porque ripostar. De repente, as paredes pareciam já não querer o socorro e não sentir a angústia iniciais; vibravam, sim, positivamente face ao vulcanismo do som emanado.
A confluência conheceu mecanismos orgânicos. Fui compenetrado pelo desconhecido característico e por todo o misticismo que envolve uma voz sem que a fisionomia se deslinde através do desenho do olhar. Fui abalroado pelos programas de autor e pelas rubricas que adentraram pelas áreas de interesse. Através dos órgãos de informação e divulgação, esmiucei programas, documentários e conversas com personagens ilustres e verdadeiros marcos históricos. Siderou-me o facto de um estranho – aos olhos de quem o via como tal — lograr com o preenchimento e posterior recheio dos momentos de solidão.
No começo, a lamúria; depois, o hábito e o masoquismo; no término, o espaço para a gargalhada generalizada. Qual seria a reação do leitor, caso admitisse a presença num projeto universitário com sentido de compaixão acima da média por aceitar a inserção da minha voz?
Não chamemos o aspeto lógico para o desabafo. Tenho pensado no assunto ao longo do tempo e culpo a maturação da carne para canhão que é representada pelo ser humano e a educação de que fui alvo.
Spoiler alert: um dia, quando decidir expandir a árvore genealógica, aconselho os cachopos a lacrimejarem.