Os fantasmas que se cruzam em “Transit”
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, escreveu Camões. Belo quanto o soneto possa ser, talvez não seja inteiramente verdade. O poeta terá considerado a escala da sua vida somente, vulgar defeito desta teia mal tecida de gente a que vaidosamente chamamos Humanidade com H maiúsculo, talvez por capricho da História. Esta última, sim, na sua repetição, revelou-se merecedora da prestigiosa letra maiúscula, por mostrar mais saber que o próprio camões.
Mudam-se os tempos, mudam-se os poetas, talvez. A dilatação de movimentos populistas é cada vez uma ameaça maior e vemos sentimentos fascistas e discriminatórios ocupar um crescente espaço na esfera pública. Itália, Polónia, EUA e Turquia constituem desde logo territórios abertamente ocupados, a estes podendo ser juntados uns outros tantos de forma mais insidiosa – ou, porventura mais concretamente, enganosa. Na praia lusitana de que o outro falava, a clareza com que a discriminação estrutural se manifestou nos últimos dias não impediu certos seres acéfalos autóctones dos quadros políticos nacionais de declararem na comunicação social que Portugal tem uma sociedade tolerante.
Lamentavelmente, as semelhanças entre a atualidade e 1942 – ano em que foi escrito o romance em que o filme se baseia – são de tal forma profundas que na tapeçaria anacrónica de Petzold é por vezes difícil destrinçar as linhas de cada tempo. Conquanto isto seja desde logo evidente nos espaços em que ação se desenrola e nalgumas referências culturais que vão surgindo – Dawn of the Dead (1978) e a canção “Abendlied” de Hanns Dieter Hüsch –, é nas modificações levadas a cabo sobre alguns elementos históricos que o paralelismo é materializado com toda a sua urgência. Não mais são os judeus o grupo mais perseguido, mas os imigrantes; da mesma forma, a opressão do exército nazi dá lugar às forças policiais do próprio país. Estas, por sua vez, não aparecem senão por breves momentos fugidios e as conversas sobre as forças por detrás da ocupação estão marcadamente ausentes. Transit não é um filme sobre a História, que representa o poder, é um filme sobre pessoas, as suas vítimas, aquelas perante as quais a “história sobrevém (…) como um fator estranho que [elas] não quiseram” (Debord).
Desta forma, cada uma das personagens, na sua riqueza humana, dá-nos uma peça da experiência desta sociedade, com especial relevância para aqueles que mais sofrem. A mãe vinda do Magreb não tem voz, é reduzida ao corpo estranho sobre o qual se passeiam as forças opressivas, o seu sofrimento indizível (remetendo-nos para a cena no consulado americano onde se discute parasitismo artístico) e, sobretudo, impossível de ser percebido por nós, público. O seu filho, sobre quem cai a inconsequente solidariedade alheia, acaba por ser abandonado pelo protagonista, como por qualquer outro – “Vão foder-se, vocês todos!”.
A intemporalidade simbólica das vivências fica a braços com a especificidade dos indivíduos, pelo que as imagens, concomitantemente com a identificação desta antítese, lançam-se à espetralidade. O trabalho de mise-en-scène e de câmara remetem para um cinema de outra época: os melodramas clássicos e americanos, assim como o fazem os diferentes arranjos hipnóticos da mesma melodia de base de Stefan Will – os blocos clássicos com que o modernismo conceptual é construído. Contudo, os planos abertos por onde a arquitetura respira constantemente dão conta da natureza fora de tempo e, por isso, fantasmagórica das personagens, os fantasmas da Europa, levada às últimas consequências na ambiguidade das cenas finais. Neste palco, uma mulher em busca de alguém que nunca encontra vai e vem, um gesto que se repete como um mantra para o caos.
Entre enganos e desencontros constrói-se, então, o melodrama, a única história possível, cuja universalidade lhe permite ser projetada em diferentes eras, pois num mundo de fronteiras e barreiras, as lutas pessoais travam-se em consulados e embaixadas e a derrota significa ficar encurralado pela burocracia até ser apanhado pela morte e, em tal clima de ódio, é somente natural que o sujeito amante se sinta perdido. A História repete-se ou são tais chavões a única maneira de a compreender?
“Não é que o que é passado faça luz sobre o que é presente, ou que o que é presente luz sobre o que é passado; ao invés disso, a imagem é aquilo onde o que foi se junta num flash com o agora para formar uma constelação. Noutras palavras: a imagem é a dialética imóvel. Enquanto a relação do presente com o passado é estritamente temporal, a relação entre aquilo que foi e o que agora é é dialética: não temporal em natureza, mas figurativa.”, palavras de Walter Benjamin.