Os guerreiros e os burocratas de Akira Kurosawa
I
Na espantosa e tenebrosa tragédia de “Trono de Sangue”, variação de “Macbeth” para a História do Japão, há espaço para todos: vencedores e derrotados, os pequenos, os grandes, e os pequenos que se tornam grandes e que, pelo seu narcisismo, terminam a sua jornada regressando à pequenez inicial.
Este é um dos sete filmes do realizador Akira Kurosawa que têm andado a circular em várias cidades do país nestas últimas semanas. Desta selecção apenas conhecia de antemão um par deles. Aproveitei para rever “Os Sete Samurais”, os 200 minutos mais rápidos que vi na vida, uma portentosa saga épica em que não encontro qualquer defeito. E fui descobrir, ainda, os famosos “Ikiru” e “A Fortaleza Escondida” (uma grande aventura em estado puro, com sequências de magnífico espectáculo). Mas “Trono de Sangue” foi, para já, o meu grande achado do ciclo.
Em tempos de sangrentas guerras e disputas por terrenos e povoações, o poderoso chefe confronta-se com as consequências da sua ambição e vaidade militar desmedidas. As previsões do estranho espírito maligno da floresta foram, aos poucos, sendo concretizadas. Nada, por isso, poderia impedir a trajectória imparável deste novo grande líder… a não ser ele próprio.
“Para não ser morto é preciso matar primeiro”, diz-nos Lady Macbeth… ou melhor dizendo, a Senhora Washizu (Isuzu Yamada). Não há melhor forma de resumir o objectivo final da sede de poder do seu marido (Toshiro Mifune) que, no fim de contas, nos faz perceber que a glória não servirá para nada quando nenhum de nós estiver cá para testemunhar os actos outrora grandiosos de um chefe que se desfez como a poeira do tempo. Tudo isto não é mais do que uma luta entre cães raivosos que se destroem mutuamente, com a única diferença de ter um sistema de hierarquias e um guarda-roupa bem elaborados. É destas coisas que é feita uma arrepiante obra-prima.
“Trono de Sangue” deve a sua estrutura narrativa a Shakespeare e o estilo ao nô, uma forma tradicional de teatro japonês, misturando cânticos, máscaras e outros elementos que o caracterizam. Infelizmente a minha ignorância sobre essa forma de arte é de tal forma notória que nem sequer consigo disfarçá-la com meia dúzia de dados bem esgalhados, a forma habitualmente utilizada pela maioria das pessoas para se fazerem passar por sabichonas num determinado assunto. Por isso recomendo que leiam mais sobre o assunto aqui.
II
É um apanágio da espécie humana acordar para a realidade de rompante. Se nos depararmos com algum acontecimento dramático que surja assim do nada à nossa frente, como a morte de alguém próximo, um acidente de maior ou menor dimensão, ou até a expectativa do fim da nossa própria vida, é comum (segundo nos contam os filmes) olharmos para o que fizemos e querermos agir de outra forma.
Agora imaginem que toda a vossa vida foi construída com base numa ilusão. Imaginem que a vossa rotina se baseia numa existência insignificante, em que o trabalho que odeiam já é encarado com total cepticismo, em que o conformismo provocado por anos e anos de papéis, carimbos, dificuldades impostas pelo sistema e consequentes obstruções ao bem público e à comunidade vos transformou em seres que apenas vivem nas funções mais básicas da existência na vossa gaiola metafórica, respirando e continuando a correr numa roda que gira ad eternum. Como é que, perante uma fatalidade ou um dos tais acontecimentos que mudam uma vida, conseguiriam esquecer que tudo aquilo que não fizeram foi apenas por vossa exclusiva culpa?
“Ikiru” é um drama social cujos contornos burocráticos e sociológicos continuam, infelizmente, actualíssimos. Um amigo disse-me, por brincadeira, ser este o seu filme preferido de Kurosawa por não ter a presença de samurais. Não é caso único na vasta filmografia do cineasta, mas é óbvio que os seus épicos históricos, com lutas épicas e cheios de acção, acabam por sobressair no imaginário popular ao longo das décadas. Mas reduzir um cineasta a uma parte do seu trabalho é sempre ingrato. Que tal ver ou rever outros seus trabalhos que, tal como “Ikiru”, se passam no Japão da contemporaneidade, como os espantosos “Cão Danado” e “High and Low” (ambos fora do ciclo da Medeia) para se encontrar outras dimensões de Kurosawa?
Mas ao contrário destes dois títulos que referi, “Ikiru” não envolve crime nem suspense. Aquilo que tem em comum com eles é ser um retrato da intensa estratificação da sociedade japonesa. Kanji Watanabe (Takashi Shimura) descobre que tem um cancro terminal e que toda a sua vida não teve qualquer propósito realmente bom. Acompanhamos a sua tentativa de salvação, aproveitando os seus últimos instantes para perceber melhor o que o rodeia. O seu percurso é penoso, para ele e para nós, não num sentido pejorativo porque sentimos e vivemos a sua tortura, e acabamos por ter pena daquele homem. Ele, ao contrário de muitos de nós, já não teve tempo para agarrar melhor a sua segunda oportunidade, mas quer deixar alguma coisa boa, mesmo que pequena, no mundo antes de partir. Talvez já seja mais do que muitos ambicionam na vida.
É neste aspecto que reside a força de “Ikiru” e justifica toda a aclamação de várias gerações de críticos e espectadores. É tão simples e tão triste, mas comovente nunca esquecendo a dura realidade de Watanabe, a impossibilidade de voltar atrás e poder recuperar os anos de vida que o seu estado de zombie burocrático roubou sem dó nem piedade. Da próxima vez que forem às finanças e o funcionário vos complicar a vida, lembrem-se deste filme. Talvez até acabem por implorar a essa pessoa para começar a viver antes que seja tarde demais.
E se alguns acusam Kurosawa de ser um realizador “rendido” aos americanos, aqui ele faz uma pequena denúncia da forma como o american way of life se infiltrou na cultura oriental, uma preocupação de muitos autores japoneses da época e que hoje ainda tem tanto sentido (basta pensarem na quantidade de vocábulos ingleses que utilizam no vosso dia-a-dia sque têm equivalente em português, por exemplo). E enfim, apesar de “Os Sete Samurais” beber muito dos westerns de Ford e Hawks, ou de “High and Low” ser um thriller à moda de Hitchcock, ambos não ficam nada atrás dos seus congéneres de língua inglesa porque foram concebidos por um grande artista. No fim de contas, só isso é que deveria importar, até porque toda a obra de arte é condicionada pelas influências que marcaram o seu autor.
III
À saída d’“Os Sete Samurais” passei por uns jovens que assumiram ter adormecido em certas partes do filme. Não ouvi isto propositadamente, eles estavam à minha frente enquanto saíamos da sessão e não pude evitar que a minha audição captasse o diálogo entre eles. Mas admito que fiquei perplexo: perante um filme cheio de acção, com tantas coisas a acontecer e momentos, como diz o cliché da crítica, “de cortar a respiração”, como é que alguém fica com vontade de fazer ó-ó?
Imaginei logo aqueles jovens a lutarem contra o João Pestana enquanto descobrem outros cineastas japoneses “clássicos”, como Mizoguchi e Ozu, ou até outros filmes de Kurosawa que são mais “contemplativos”. Talvez nem aguentariam dez minutos de “Ikiru”. Enfim, é o problema da época da ultra-velocidade de estímulos para reduzir a atenção em que vivemos. Podemos não ser guerreiros de katana em riste, mas no meio de tanta coisa que nos quer distrair, os verdadeiros samurais são aqueles que, contra todas as expectativas desta vida de consumos imediatos, conseguem ficar de olhos abertos até ao fim da sessão.