Os imigrantes não são números

A conversa sobre imigração tem-me incomodado bastante. A dimensão humana do debate perde-se numa esgrima de números constante, ao invés de uma discussão profunda do problema. Para debater uma questão desta importância, é necessário refletir e não partir do imediato. Ao sermos bombardeados com números e publicações, somos vítimas do ciclo noticioso e das partilhas do Instagram que nos fazem reagir fervorosamente. Proponho uma reflexão na qual os números devem ser um ponto de partida e não um ponto de chegada.
De acordo com o Barómetro da Imigração da Fundação Francisco Manuel dos Santos de 2024, entre 2022 e 2023, o número de imigrantes residentes em Portugal aumentou 34% em comparação a 2021. Em 2023, havia um milhão, quarenta e quatro mil e duzentos e trinta e oito (1.044.238) imigrantes residentes em Portugal, quase 10% da população residente em Portugal. De acordo com o mesmo barómetro, as contribuições dos cidadãos estrangeiros representaram um saldo positivo de dois mil milhões e cento e noventa e quatro milhões (2.194.000.000) de euros para a Segurança Social. Estes números demonstram uma realidade inevitável: a imigração ganhou tal dimensão que é necessário pensar sobre como lidar com ela.
“Neste tema, sugiro que se discuta muito mais como políticas de segurança de proximidade promovem segurança em vez das operações violentas que hostilizam os imigrantes e geram ciclos de violência.”
Genuinamente, não consigo compreender as partilhas de Instagram contínuas sobre a contribuição positiva dos imigrantes, dando a entender que tal facto deveria ser suficiente para “calar” a extrema direita. Este tipo de narrativa cai num vazio absurdo: o valor de uma pessoa é somente o seu contributo para a economia? Leitor que estás desse lado, o teu valor é equivalente à tua contribuição para a Segurança Social? Pensar assim é perigoso porque toma como premissa que uma pessoa é o valor económico que contribui para a sociedade. Usando a ideia daquele poema erradamente atribuído a Brecht e da autoria de Martin Niemöller: primeiro foram os emigrantes a serem tratados pelos seu valor económico, a seguir seremos nós.
Paralelamente, a ala mais progressista da sociedade comete erros quando toma a moralidade como a única frente de batalha. Parafraseando livremente Clara Ferreira Alves num episódio do Eixo do Mal “Focam-se na produção moral ao invés da solução de problemas”. Por exemplo, foi anunciada a manifestação: Não nos encostem à parede, os seus dirigentes e apoiantes focaram-se na defesa do valor do Estado de Direito e não em como o Estado de Direito é a solução para os problemas enfrentados atualmente. Não que não estejam certos e que não tivesse havido claras violações do Estado de Direito, mas demarca-se do debate político ao focar o seu argumento em valores. É preciso partir para a prática: o Estado de Direito como o conhecemos é a solução para combater a perceção de insegurança no país provocada pela imigração? Há um distanciamento da parte progressiva da sociedade, ao focar-se somente nos valores, quando se deveria estar a discutir soluções para os problemas sentidos pelas pessoas.
“É também importante que se fale de políticas de educação que permitam que os imigrantes e filhos de imigrantes aprendam português mais rapidamente.”
Neste tema, sugiro que se discuta muito mais como políticas de segurança de proximidade promovem segurança em vez das operações violentas que hostilizam os imigrantes e geram ciclos de violência. É também importante que se fale de políticas de educação que permitam que os imigrantes e filhos de imigrantes aprendam português mais rapidamente. Que se lute para que a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) tenha mais recursos para acudir a quantidade de processos pendentes e ajudar todos aqueles imigrantes ilegais que querem regularizar a sua situação e viver em Portugal. Que haja fiscalizações a todos aqueles suspeitos de empregarem trabalhadores ilegais e explorados (como no caso das estufas do Alentejo) porque isso sim é contra a lei portuguesa. E por fim que se fiscalize senhorios que se aproveitam do desespero destas pessoas ao colocarem doze (12) pessoas a dormir numa casa com dois quartos. Enquanto não houver um debate sobre soluções, perde-se terreno para todos aqueles que acham que é normal uma rusga com a violência policial como foi aquela que se verificou no Martim Moniz.
“Que haja fiscalizações a todos aqueles suspeitos de empregarem trabalhadores ilegais e explorados (como no caso das estufas do Alentejo) porque isso sim é contra a lei portuguesa. E por fim que se fiscalize senhorios que se aproveitam do desespero destas pessoas ao colocarem doze (12) pessoas a dormir numa casa com dois quartos.”
Um bom exemplo de debate sobre soluções é o episódio do podcast Perguntar Não Ofende com Rui Costa Lopes. Promover a reunificação familiar, isto é, a possibilidade de os imigrantes virem para cá com a sua família, possibilita a integração na sociedade portuguesa de uma forma mais equilibrada. A partir da mulher e dos filhos nasce integração porque os filhos entram na escola, o que alimenta interações sociais fora dos seus círculos sociais, e as parceiras trazem uma vida conjugal e familiar que cria outro propósito no trabalhador que veio trabalhar para cá sozinho. Em suma, há um propósito de vida mais claro. Isto contrasta com o típico imigrante que é jovem, que vem para cá sozinho, que vive numa casa com mais 10 pessoas, e que toda a sua vida social é feita com pessoas da sua nacionalidade. Haver políticas de imigração que permitam a reconciliação das famílias em território português pode reduzir alienação com a qual os imigrantes sofrem quando vêm para cá sozinhos, e isto seria uma das coisas que devia estar a ser discutida.
Para não deixarmos a extrema direita falar sozinha com soluções ditatoriais, é necessário trazer soluções para cima da mesa. Para Portugal florescer como um caso de sucesso de integração de imigrantes, é necessário uma política de integração humanista e alicerçada no Estado de Direito, na qual há um equilíbrio de quem entra no país para termos a certeza que temos condições para os receber. Enquanto não houver uma política de imigração definida e com consequências, não só a integração dos imigrantes continuará a ser feita da maneira inadequada que tem sido, mas também o sentimento xenófobo e racista crescerá em Portugal. Sem qualquer tipo de política, o que assistimos é ao crescimento das redes ilegais de apoio à imigração e aos sucessivos casos de dezenas de imigrantes ilegais a serem explorados em estufas no Alentejo. Ao abordamos as soluções para estes problemas resolvemos dois problemas de uma vez: protegemos a dignidade humana dos imigrantes que recebemos e zelamos pelo cumprimento da lei portuguesa, diminuindo a sensação de insegurança sentida por alguns portugueses.
“Haver políticas de imigração que permitam a reconciliação das famílias em território português pode reduzir alienação com a qual os imigrantes sofrem quando vêm para cá sozinhos, e isto seria uma das coisas que devia estar a ser discutida.”
Para combater a xenofobia, o racismo ou perceções de insegurança, mais do que a proclamação de valores, é necessário demonstrar como esses mesmos valores são a solução. É necessário sairmos da arena da economia e deixar de proclamar que os imigrantes contribuem para o crescimento. É urgente quebrar esta desumanização dos emigrantes (e de nós próprios) e passar à discussão de soluções para a integração destes humanos. Enquanto não sairmos da narrativa dos números, bem podemos ter a certeza que as forças reacionárias ganharão o debate sobre imigração em Portugal.
Sugestões do cronista:
“(What’s the story?) Morning Glory”, dos Oásis. Tenho andado a ouvir em loop este álbum, com uns loops repetidos na música que dá nome a parte do álbum, “Morning Glory”. A letra desta música é um hino à procura constante de sonhos num estado semi-acordado. O verso “Need a little time to wake up” é para mim de uma profundidade absoluta, porque joga com o facto de andarmos ensonados no rame-rame do dia-a-dia para quando finalmente acordamos serem horas de voltar a dormir. Quando a música começa com a frase: “All the dreams are made\When you’re chained to the mirror and razor blade”, coloco-me na minha rotina diária, diante do espelho a lavar os dentes e a sonhar, com a certeza que passado 24 horas estarei na mesma posição. Todas estas reflexões ao som de um bom e puro brit rock que nos faz sentir a raiva de quem quer sair da cama para fazer alguma coisa do seu dia.