“Os Malucos do Circo” voltaram à cidade
O “Os Malucos do Circo”, ou “Circo Voador” — como me parece mais adequado — voltou à cidade. Talvez um pouco mais cedo do que o costume, ou mesmo mais tarde do que o habitual, dependendo da perspetiva com que cada um encara a vida. O “Flying Circus”, dos eternos Monty Python, regressou pela mão da RTP2 com um timing poético e num contexto de interpretação completamente diferente daquele em que foi criado.
Eu devia ter uns 10 anos quando, num almoço de família, um dos meus primos, o Pedro, — bastante mais velho do que eu e a acabar a licenciatura em Filosofia — afastou-me da supervisão dos meus pais, como a cria indefesa que eu era (e ainda sou) e num violentíssimo golpe decidiu mostrar-me o mítico sketch: “International Philosophy”. O sketch era simples: duas supostas seleções nacionais de filósofos, a grega e a alemã, defrontam-se num campo de futebol. No entanto, assim que soa o apito inicial da partida, os jogadores-filósofos, em vez de se lançarem à bola… põem-se a pensar. Aqui faço a minha primeira nota de censura: a maior parte dos primos provavelmente aproveita estas ocasiões para mostrar coisas com nudez, ou um primeiro cigarro, ou mesmo, lá está, um copo com algo alcoólico; mas, o Pedro não. O meu primo decidiu fazer algo bem mais nefasto para a minha saúde e abriu o mundo dos Monty Python a este batráquio que agora lhe relata neste artigo. Digamos que, dali em diante, foi sempre a descer: Blackadder, Alô Alô, Benny Hill, Yes Minister, Fawlty Towers, O Tal Canal, Herman Enciclopédia, Gato Fedorento, Os Contemporâneos, etc. Em retrospetiva, o meu primo Pedro teria feito melhor obra à humanidade se me tivesse introduzido a substâncias menos legais do que os Monty Python.
Naquele dia abriu-se um portal mágico para um mundo novo, que nunca mais pôde ser fechado. Daquele sketch em diante seguiram-se as procuras incessantes por mais obras dos “Móty Pitón” (eu dizia assim naquela altura). E, daí, parti em busca de outros clássicos do grupo: Dead Parrot, Ministry of Silly Walks, Spam, Lumberjack Song, Spanish Inquisition, Hell’s Grannies, entre outros tantos. Dali a viciar-me na série completa “The Flying Circus” foi um saltinho. E que salto foi! A verdade é que vê-los isolados é uma coisa, contudo, no seu caótico fio condutor é outra! — fruto das animações, ilustrações e a narrativa do episódio, isto tem de ser dito. O ridículo é a religião e o non-sense é a catedral do grupo Python. E que grupo! Um feliz acidente cósmico resultante de um ensino superior de qualidade, a paixão pelo teatro (sobretudo de improviso) e o desejo da BBC em exportar o “British humor” para os EUA, assim como revolucionar a escrita de humor da época: o fim do punchline como ‘cap’ entre os sketches.
A convicção do grupo, como é relatado no “The Pythons Autobiography by The Pythons” foi de que os programas vigentes da altura já previam uma mudança paradigmática no humor. Em primeiro lugar, o fio condutor entre todos os sketches — a estrutura, ou montagem sequencial, já não era obrigada a ser relacionada; e, mais importante ainda, a decisão fundamental de acabar com o “punch”— algo mais exigido pelos produtores, no sentido de enfatizar e pautar o ritmo junto da audiência do que propriamente para a escrita! Como diz Graham Chapman “let them ( a audiência) get on with it!”. O encadeamento caótico, quase-surrealista e animado, entre as rábulas de non- sense tem apenas como objetivo deixar-nos num estado de transe entre a fantasia humorística (em tom de suspension of disbelief), a reflexão sobre o mundo atual e o riso, sem que este último se solte desalmadamente, porém sempre à espreita. Um sketch dos Monty Python, por norma, não nos leva às lágrimas descontroladas do riso, no entanto, e a bem ver, leva-nos a concretizar algo mais valioso: uma palma a meio do ar, o riso leve e um desabafo solitário de “realmente… este mundo é ridículo e eu também!”.
Adoro o certo sentido de timing poético por parte da RTP2 ao lançar “The Flying Circus” este mês, porque foi precisamente, em Abril de 1969, que foram dados os primeiros passos para este lendário programa — nascido entre intrigas de produtoras, uma posição hierárquica inventada dentro da BBC: “Head of Comedy” (que só pode ser devidamente traduzido ao citar-se Terry Gilliam: “whatever that was…”), e, acima de tudo, o receio de começar algo que ninguém fazia a mínima ideia do que era para ser feito! Bons velhos tempos das apostas cegas no entretenimento. Acho, sobretudo, um timing poético ao inserir-se os Monty Python na grelha de programação nesta altura do campeonato da nova consciencialização e aceso debate sobre os limites do humor.
O problema base aqui é que estamos essencialmente a discutir uma obra do fim dos anos 60 e início dos anos 70 — maior parte esquece isto! — que, já na altura, foi pautada com receio de ‘ofender’ alguns espectadores. Daí os cortes com as “cartas satíricas” ao provedor da BBC entre as rábulas, maioritariamente “da autoria” de alguém pertencente às classes mais conservadoras e abastadas da sociedade britânica. Nunca esquecer o “Upper Class Twit of the Year” para o efeito, ou os sketches a gozar com as Forças Armadas. Ou, acima destes últimos, o ‘Santo Graal’ da comédia satírica religiosa “A Vida de Brian” (1979), que acabou por escandalizar toda a comunidade cristã e acabou por ser alvo de enorme censura no próprio país! O grupo abalou, antes de todos os outros, boa parte da tradição e base cultural da sociedade britânica (que, naquelas décadas, ia além da esfera de influência atual).
Os Monty Python têm um apetite pelo ridículo e, efetivamente, há ridículo que chegue para atingir tudo e todos. Há, e num esforço de ‘advogado do diabo’, um ou outro sketch poderá ofender e escandalizar — recordo que, por exemplo, Eric Idle recorre ao blackface para o sketch de “Genghis Khan” e fá-lo uma outra vez noutro sketch na última ou penúltima temporada para ridicularizar o elitismo levado a cabo por oficiais britânicos em comissão militar, se não estiver em erro —, mas espero que, todos, ao vê-lo com acrescida profundidade, possam compreender que foi feito sem malícia e com um certo grau de ironia. Senti que Eric Idle utilizou o blackface precisamente nesse sketch para ironizar a forma como todas as produtoras e indústria do entretenimento da altura retratava todas as personagens africanas. Sem esquecer também a caracterização exagerada de personagens asiáticas que, a meu ver, surgem num esforço de ridicularizar o procedimento da própria BBC e da indústria televisiva — duas coisas que o grupo fez constantemente.
O facto é inegável: hoje, o “Flying Circus” seria sujeito a um escrutínio diferente. Ainda hoje, de facto, poderá ser escrutinada assim — embora a obra com mais de 50 anos vista com os “olhos” da atualidade seja um exercício Monty Pythiano —, mas acho que farei uma observação evidente ao afirmar que ver Monty Python tornou-me num ser humano mais completo. E, acredito piamente, que é assim para todos os seus fãs. No mundo atual onde tudo parece desabar com uma velocidade incrível e cruel, resta-me muitas vezes, na face da desgraça, dizer: “Isto parece saído dos Monty Python”. O que, sem mais nada a ser acrescentado, provoca imediato riso. E naquele breve segundo o mundo pareceu mais justo, ideal, belo, terno e mágico. Tal como ir ao Circo.
Acima de tudo, na obra de Monty Python não há humor barato, escrita preguiçosa ou execução maliciosa — daí a resistência ao teste do tempo; mas, tal como todas as obras-primas, o tempo começa a desgastá-lo e abrir-lhe pequenas brechas e falhas. Algo que é perfeitamente natural e têm de ser admitidas e consciencializadas, também sem preguiça ou malícia. Arrisco-me a dizer que a obra do grupo resistiu tão bem que no “The Meaning of Life” (1983), no sketch do Parto, uma recém-mãe, muito ansiosa, questiona o médico se é “rapaz ou rapariga?”, e o médico prontamente responde: “se não é um bocadinho cedo para estar a impor papéis?”. Resta-nos, talvez, com bondade e um quadro de valores renovado, saber apreciar as virtudes e ‘restaurar’-lhes as falhas com contexto e informação para que seja possível apreciar ainda. Até porque os Monty nunca se resguardaram de ridicularizar fosse o que fosse, e, se há coisa que o grupo sempre apregoou, foi a mensagem universal d’humor próprio:
Life’s a piece of shit
When you look at it
Life’s a laugh and death’s a joke, it’s true You’ll see it’s all a show
Keep ‘em laughin’ as you go
Just remember that the last laugh is on you And
Always look on the bright side of life
Crónica de Ricardo Lopes.
O Ricardo é criativo de profissão, licenciado e pós-graduado em Gestão, mas sem saber gerir a vida.