Os pontos e contrapontos do legado de Johann Sebastian Bach

por Lucas Brandão,    1 Junho, 2018
Os pontos e contrapontos do legado de Johann Sebastian Bach
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Entre os nomes mais conceituados da música erudita, surge o do alemão Johann Sebastian Bach, vulto consagrado do século XVIII. Nascido em 1685, na vila de Eisenach, e falecido em 1750, na cidade de Leipzig, foi mais do que um prodígio, tornando-se, pela educação esmerada que teve, num compositor polivalente. Foi assim que, de curiosidade infindável pelo que havia sido feito até então, se foi desdobrando na sua personalidade musical, e assumiu diversos cargos relevantes na música que se fazia ouvir nas cortes e nas igrejas germânicas. Mestre do contraponto, foi-se transformando consoante conheceu mais de Itália e de França, até chegar às líricas cantatas, e tornou a sua música pormenorizada, minuciosa e, por si só, barroca. Com instrumentos, notabilizou-se ao lado do órgão e do cravo, chegando a maestro e docente, mas também com virtudes com o violino e com o próprio canto. O repertório traduz uma quantidade que é proporcional à requintada qualidade redescoberta um século depois de partir, numa lembrança a louvar e a perpetuar pelas partituras da musicalidade.

Apesar de grande parte do seu repertório se ter esvaído com o tempo, Bach é autor de mais de um milhar de composições (organizadas na notação numérica Bach-Werne-Verzeichnis – BWV), fruto de um caráter tenaz e rico, que bebeu da herança musical italiana e francesa. Entre outras das suas influências, surge a música polifónica, que antecedeu ao rococó (elemento musical também verificado em outras artes, como a arquitetura), e que o alemão procurou fazer encontrar com a homofonia. O contraponto vai articulando e deambulando nesta métrica musical, que oscila para uma harmonia bem composta, que o levava a composições de vulto. Esta extensão permitia um fôlego amplo, sabendo a melhor forma de gerir o decurso musical, até alcançar o clímax arrebatador, onde dava ares da sua graça polifónica.

O percurso musical instrumental

Os arranjos que foi fazendo a trabalhos dos seus antecessores sempre se vincaram numa identidade muito própria, potenciando a sua vocação natural para o teclado, meio através do qual também lecionava. Não obstante, procurava variar naquilo que ensinava, acompanhando os alunos de forma personalizada, fazendo uso da sua polivalência. Passava, assim, das suítes (movimentos instrumentais ininterruptos) francesas, até aos seus engenhos de cravo, instrumento pelo qual também se notabilizou. O seu papel transicional no pendor da música, em pleno século XVIII, fê-lo prolongar-se como alguém instrumental no retorno à polifonia entendida como divina, exprimindo a ordem da criação. Não obstante, a subjetividade da música era já algo que se vinha entendendo como irreversível, e que resultaria num entendimento das composições de Bach como algo ultrapassadas, focadas ainda muito na uniformização de tons.

Perante um baixo que se ia afirmando e dando oportunidade a que uma voz superior se ouvisse, o alemão foi perdendo na prática, mas ganhando no que era a sua crença, que traduzia para a música. Luterano, o alemão foi trazendo a figura de Deus para dezenas das suas composições, como o oratório “Paixão segundo São Mateus” e a “Missa em si menor”, mesmo com a finalidade de serem entoadas durante as celebrações religiosas. Porém, a música de Bach começa nas suas manifestações a solo, com o instrumental a ressoar através do cravo, do clavicórdio e do pianoforte, com a intenção de potenciar aquilo que diferenciava os seus teclados. Esta é a dimensão mais conotada das suas obras, que começou a ser explorada logo em 1700, envolvidas nas breves composições de prelúdios, fugas (tema repetido por várias vozes, interlaçando-se ao longo do discurso) e tocatas (improvisações em plenas fugas).

“Invenções e Sinfonias” viriam a colorir as crescentes influências do germânico, naquilo que seriam composições voltadas para as suas aulas, procurando dar a conhecer as interpretações corretas de músicas com mais que uma voz. Esta obra foi acompanhada por “Cravo Bem Temperado”, outra das mais proeminentes deste período, munida de vinte e quatro prelúdios e fugas. Seria considerada, de forma unânime, uma das mais marcantes da história da composição musical europeia, que se reinventou nas diversas tonalidades que assume, entre o improviso, a dança e a fantasia. Estas só poderiam ser entoadas a partir das afinações aos instrumentos, que resultavam nas modulações “bem temperadas” que o título do trabalho indica.

Ainda nesta fragrância barroca, chegam as trio-sonatas (combinação do cravo com um baixo contínuo), as suítes de danças e as “Variações de Goldberg”, que se enreda no contraponto, naquele que é um exercício de uma estrutura cíclica. Este daria o mote para a notável “A Arte da Fuga”, que ficaria inacabada, e que seria a mais prolongada e elaborada combinação de contrapontos realizada, num êxito de grande notoriedade, mas de proporcional complexidade.

Bach também amestrou o órgão, dividindo-se a sua produção nos hinos luteranos, na sua função de organista, que exerceu até 1717; e na sua composição livre, já de forma informal. Foram quase nove centenas de produções que se reuniram em quatro coleções, sendo a maior parte peças curtas, orientadas para o seu uso durante o calendário religioso. O alemão foi seguindo os cânones neste período, orientando-se por uma textura de quatro vozes, com a melodia principal a partir do soprano, e as demais a complementar, no já habitual registo contrapontístico, o decurso da composição. É também aqui que se enquadra o uso típico da “doutrina dos afetos”, em que os recursos técnicos e instrumentais traziam a capacidade de orientar e de gerar emoções e afetos em quem os ouvia, materializando essas sensações.

A sua inspiração levou a que muitas destas peças nascessem do cunho de Bach, alcançando os géneros de composição já feitos, mas também a canzona (influenciada pelas chansons flamengas) e a passacalha (intercalada entre o tema e as variações sobre esse tema). Por ser livre, esta inspiração expressa-se de diferentes formas, orientadas pelo pendor experimentalista, que denotam algum descuido e até excentricidade. Os fulgores musicais de Bach derivam entre a homofonia e a polifonia, com especial destaque para o recurso ao ostinato (um padrão rítmico repetido consistentemente).

Entre outras, a coleção mais relevante é a “Clavier-Übung III”, que contém vários prelúdios orais para missas e sessões de catecismo luteranas. A inspiração do canto gregoriano complementa-se com a necessidade de ilustrar, através do som, o texto. Nestes trabalhos, a transformação do canto normal em canto polifónico traz a necessidade de ilustrar esse conceito de vida cristã, naquilo que é a prática de uma fé desde o advento até à salvação. Apesar de algo ininteligível, seria influente para as gerações seguintes de organistas. Estes arranjos corais alcançam a sua fase de Leipzig, já após os primórdios da sua carreira, em que a quantidade de ornamentos conhece um aumento significativo, embora com pronunciação mais simples, que não afetam, porém, a qualidade estética.

Com as cordas e a flauta, surgem as reconhecidas “Sonatas e Partitas para violino solo”, datadas de 1720, nas quais se denota um fio condutor, a partir das tonalidades assumidas. As sonatas (à letra, música feita para soar) dispõem de quatro movimentos, enquanto as partitas (conjuntos de seis suítes) agrupam movimentos de dança. As sonatas transmitem a polifonia já habitual no contexto musical do compositor, procurando a harmonia e o destaque do solista. Por sua vez, as partitas fazem-se valer do repertório vasto de sonoridades e de estruturações do compositor, entre as allemandes e as sarabandes tradicionais de danças populares da época barroca. Um dessas partitas notabiliza-se na chacona (“Partita no. 2 para violino, em ré menor”), que consagra essas variações conjuntas num decurso harmónico musical que perpetua os créditos de Bach.

No violoncelo, “Seis Suítes para violoncelo solo” transportam as danças que, ininterruptamente, se deslumbram em várias exigências instrumentais inesperadas para as suas interpretações futuras.

As músicas de câmara e de orquestra

Num período tão cortês como o século XVIII, a música erudita faz parte dos seus momentos de lazer, protagonizados em grandes eventos nos palácios das suas hostes. É neste contexto que Johann Sebastian Bach também pontifica, tanto em Weimar, como em Köthen, ambas situadas na Alemanha. O seu modelo preferencial foi o das trio-sonatas, nas quais decidiu introduzir alterações ao nível do acompanhamento do teclado às partes protagonistas das peças. Assim, enquanto a mão direita fluía com um dos solistas, a esquerda seguia o baixo contínuo, sem recorrer a um novo instrumento para a produção da melodia. Tornavam-se, desta feita, quatro as partes intervenientes da composição que seria aperfeiçoada pelo cunho de Bach, que viria a juntar outras vozes e elementos que faziam furor nos concertos.

Deste repertório, destaca-se a “Oferenda Musical”, dedicada ao rei Frederico II da Prússia, constituída por dez cânones, dois ricercares (peças marcadamente homofónicas, mas sem prescindir de movimentos mais acelerados) e uma trio-sonata. Assim, sintetiza as variações que são desveladas de forma contrapontística, culminando numa força expressiva anormal, que seria sentida também na última grande obra do compositor: “A Arte da Fuga”, de 1749. Formada por vinte fugas e cânones, apresenta o auge do contraponto tão reiterado na carreira compositiva do músico, nas suas constantes e fulgurantes variações.

No que toca àquilo que fez para a orquestra, são poucas as obras que chegam aos nossos dias, embora se denotem as suítes de danças, nas quais se enquadram a “Ária na corda do Sol”, que mostra o virtuosismo instrumental que pauta as suas partituras. Muitos dos concertos que construiu foram, na verdade, ajustes de composições anteriores, orientados daquilo que se fazia em Itália, com o violino a seguir o vigor que se entroncava no ritornello, estrutura que contrapunha esse vigor à lentidão lírica até alcançar o seu cume, na tradicional dança estilizada.

Este caminho discursivo advinha do percurso de António Vivaldi, apesar de serem novos os concertos orientados para o cravo e para a orquestra, nunca tendo assumido o protagonismo até então. Desses arranjos que fez, orientou-se para combinações inovadoras, que criou a partir do seu cunho de expressão livre, e que conheceu especial marca nos “Concertos de Brandenburgo”, dedicados ao marquês desta cidade. Aqui, os solistas articulam-se com a orquestra a partir dos efeitos que esta produz, protagonizando aquele que é conhecido como o concerto grosso. As singularidades cruzam-se com a pluralidade que resultam no trago artístico que Bach proporciona.

A música para as vozes

Por mais que o protagonismo da carreira de Bach se tenha exprimido nos instrumentos, é nas cantatas (composições vocais) que se preenche o legado quantitativo do alemão. Grande parte deste núcleo é de origem sacra, embora muitas outras se possam identificar como profanas. As primeiras que compôs orientaram-se sem recitativos, que só chegariam após as inspirações italianas se entranharem nas composições, em que as árias da capo (uma voz acompanhada por uma pequena orquestra) se tornam audíveis. Esta estrutura é pensada para um coro, em que as composições finalizam com quatro vozes, naquilo que é uma uniformização homofónica do discurso musical. Enquanto a sua carreira ia conhecendo o amadurecimento, também a música se foi desdobrando nas experimentações que foi colhendo, bebendo daquilo que se fazia em França (o uso da abertura francesa, uma métrica discursiva em crescendo).

As articulações rítmicas oscilam no dramatismo e na ilustração que pretende fazer chegar a quem escuta as suas composições. A experiência religiosa preenchia a, amiúde, falta de perceção estética de quem as ouvia, gerando a consciência emocional do contexto em que a música se inseria. A utilização das Escrituras e da sua interpretação luterana permitia que o texto se fosse entendendo, ilustrando no mundo das sensações e dos afetos, a partir das alegorias e das simbologias que procurava exprimir sobre os momentos narrados. Neste percurso, destacam-se “Christ lag in Todesbanden”, escrita para a Páscoa, numa estrutura simétrica ao contexto em que se apresentava; assim como “Wie schön leuchtet der Morgenstern” (anunciação da Virgem Maria), “Ein feste Burg ist unser Gott” (inspirada nos postulados de Lutero), “Wachet auf, ruft uns die Stimme” (parábola das dez virgens), “Herz und Mund und Tat und Leben” (visitação da Virgem Maria), e o célebre “Oratório de Natal” (um conjunto de seis cantatas que unem a celebração natalícia à epifania, na qual surgem os três reis magos).

A afirmação da dimensão religiosa

O compositor foi autor de várias missas latinas, onde se denota “Missa em si menor”, dedicada ao rei Augusto III da Polónia. Esta peça reveste-se de simbolismos musicais e de circunvoluções ao nível do formato e do estilo, naquilo que é uma constante adaptação de material até chegar a um todo concreto. Na sua sucessão, construiu motetos, munidos de textos distintos para as vozes que integram esses trabalhos. Esta orientação contrapontística é canalizada para os coros a cappella, que, aqui, representava um acompanhamento de órgão, no qual, apesar da sua complexidade, procurava reencarnar vários trabalhos homofónicos de séculos anteriores, de pendor essencialmente declamatório.

Para além destas concretizações sacras, que são cruzadas com meditações de Bach, surgem as narrações das paixões, das quais subsistem a “Paixão segundo São João” e a “Paixão segundo São Mateus”. Duas das composições mais marcantes e minuciosas do cunho de Bach, é a última que impacta pelo seu dramatismo e pela elevação que faz às tradições luteranas. Por sua vez, as profanas são, nomeadamente, peças festivas e fúnebres, recordando figuras nobiliárquicas de outros países, assim como mitológicas, como “Geschwinde, ihr weirbelnden Winde” (uma competição musical entre Apolo e Pã).

A influência de Johann Sebastian Bach advém de um vastíssimo repertório, que nos chega após mais de seis décadas de composição musical, entre obras mais fugazes e outras mais complexas. Em suma, e mesmo protestante, tornou-se um dos mais ricos e simbólicos compositores do milénio, orientado para as cerimónias religiosas católicas. Do seu entendimento e do seu estudo, o germânico emerge como um dos principais virtuosos musicais, que proliferou nos séculos subsequentes da música de câmara, das orquestras e das celebrações eclesiásticas. A sua figura universalizou-se, a partir dos sons e tons que pontuaram e contrapontuaram as realizações das suas composições.

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