Out.Fest’19: um roteiro pelo silêncio ensurdecedor e pelo caos controlado

por João Rosa,    16 Outubro, 2019
Out.Fest’19: um roteiro pelo silêncio ensurdecedor e pelo caos controlado
Nadah El Shazly / Fotografia de João Rosa / CCA
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Ocasionalmente, a navegar pelos oceanos sem fim que são as plataformas de streaming musical actuais, deparo-me com algo verdadeiramente único – ou, no mínimo, curioso: percussionistas experimentais iranianos em parcerias electrónicas, punk-acid-disco escocêsnoise pós-minimalista de Brooklyn, música para meditação com terapia do riso; entre outras enumerações inesperadas. Habitualmente, vou contando com a sorte de ter uma lista de contactos relativamente receptiva às mais improváveis bizarrias sonoras com quem decido partilhar as descobertas. Até saber o que se passava por aqui, a resposta era quase sempre a mesma, e nunca falhava em apanhar-me desprevenido: “Não soubeste? Já estiveram no Barreiro!”. Na cidade que este ano perde outro dos mais emblemáticos festivais do país – o Barreiro Rocks – e cujo ambiente cultural se desmultiplica num leque de faces e activdades que garantem que a urbe nunca dorme; o OUT.FEST e a OUT.RA – Associação Cultural (organizadora do festival) surgem cada vez mais como porta-estandarte não apenas da cultura na cidade mas como marcado símbolo das latitudes mais experimentais da música em solo nacional.

Após uma edição de 2018 mais encurtada em tempo (mas não menor em artistas), a 16.º edição do OUT.FEST volta a desenrolar-se ao longo de três dias. O formato, no entanto, mantém-se semelhante ao do ano transacto: o corpo principal de festividades ocorre em dois dos mais emblemáticos espaços da cidade, a ADAO e a SIRB “Os Penicheiros”, com actuações pontilhadas por outros pontos icónicos – a destacar, duas igrejas da cidade.

Discorrida a ficha técnica, transporto-vos para onde tudo se inicia. São 21h30 e estamos numa fila crescente: a Igreja Paroquial de Santo André, edifício de arquitectura moderna em formato cilíndrico, ergue-se em altitude no topo de uma elevação com vista para o Parque da Cidade, para o Tejo e até para as luzes reluzentes dos carros que atravessam, na distância, a ponte 25 de Abril. Na grande janela que marca o topo do frontispício, Vera Marmelo fotografa o público encoberta pelo crucifixo ornamental que se projecta em sombra na rua. A conta-gotas, entramos no espaço: o primeiro dia de festival está esgotado, contando com as actuações de Gabriel Ferrandini (numa peça trabalhada com Miguel Abras e a Camerata Musical do Barreiro) e Peter Evans; duas performances cuja identidade não é fácil de prever. O auditório interior, imponente, está iluminado a meia-luz sob a impressionante fachada de murais religiosos. A orquestra começa, bem no centro do público.

Sob o silêncio sepulcral das ténues notas em tensão e protagonismo, Ferrandini e Abras mantêm-se obscurecidos no semi-círculo traseiro da nave. A peça interpretada, Kimbo Slice, foi-nos entregue ao entrar no espaço: um poema rasurado, fotocopiado em folha de caderno A5 – palavras que Abras, subindo ao púlpito, declara solenemente enquanto a Camerata aumenta o tom. Amplificados suaves toques na bateria de Ferrandini fazem vibrar o edifício, transe colectivo em drone entre os extremos do silêncio e do caos. De seguida, Peter Evans, trompetista nova-iorquino residente em Portugal, oferece-nos algo completamente diferente: sozinho no centro do auditório circular, ergue o instrumento sem qualquer tipo de electrónica ou amplificação. Evans corre por improviso incansável, a pela sua linha instrumental sobrepõem-se em ecos e notas soltas que, fruto da acústica do edifício, permanecem em suspenso redemoinho como se de pedais de áudio dependessem – é jazz em direcções menos cartografadas, azimutes sonoros que em espiral encontram novos significados longe da identidade que lhes esperamos.

Peter Evans – Fotografia de João Rosa / CCA

O primeiro dia encerra-se apenas com duas actuações – devidamente exploratórias, tal como ordena o slogan – mas o próximo promete o regresso ao meio eclesiástico, desta feita na Igreja da Nossa Senhora do Rosário, bem junto ao Tejo. Kali Malone, música e compositora americana de treino clássico cujo último álbum explora as nuances de um ambient drone atmosférico de orgão em suspensão, actua no orgão da própria igreja – concerto esperado a que, infelizmente, dada a hora e compromissos laborais, não foi possível comparecer. Jantar feito (para que não vos falte nada, o bíblico guia que acompanha o festival não se coíbe de dar recomendações), rumamos à ADAO – Associação de Artes e Ofícios – pólo artístico da cidade e palco de alguns dos mais intensos e interessantes momentos do festival dos últimos anos.

Apenas o andar de baixo se encontra aberto – tal como na última edição, duas salas são utilizadas: a “Oficina” e a “Sala das Colunas”. Os palcos, pequenos, traduzem uma grande intimidade com o público; intimidade essa testada logo na primeira actuação da noite. Calhau!, dupla de performance contemporânea multidisciplinar, são repetentes no festival. Em formato trio, tomam o centro da Sala das Colunas, e, pautando a toque de piano cada minuto, desenvolvem uma actuação entre o impacto físico dos objectos de Marta Baptista e o experimental noise dos apetrechos electrónicos envergados como um colete suicida por João Alves, que faziam tanto como som como a luz da própria sala ziguezaguear por rotas árduas de adjectivar.

Calhau! – Fotografia de João Rosa / CCA

Quando Calhau! termina, já as primeiras notas soam do palco adjacente. Alpha Maid é Leisha Thomas, londrina que navega por entre o electrónico e um mais tradicional negrume post-punk. Arranca em tons suaves que rapidamente se subvertem em dispersões glitch e estática tonal que caminha para o shoegaze. Por entre a calma e a tempestade, o público divide-se entre o ar exterior ou as periódicas romarias ao interior em momentos de maior intensidade: já se sente a vontade no ar para as sonoridades mais pesadas que a noite promete.

O igualmente polivalente Ilpo Väisänen entra em palco na Sala das Colunas em revelação da sua electrónica misteriosa: feita de samples curtos em reconstrução, tem raízes minimalistas mas rapidamente se desenvolvem as atmosferas, polirritmos e mergulhos de estática – a lembrar um Jan Jelinek em formato crescentemente abrasivo. Com a subida do elemento rítmico, o volume e ruído a cruzarem pela primeira vez o vermelho e o público de linha da frente a entrar em inícios de contagiante dança tribal contagiante, Väisänen – co-fundador dos extintos Pan Sonic, cujas histórias de criatividade e explorações sonoras são bem documentadas – monta o setup para o esperado momento da noite.

Alpha Maid – Fotografia de João Rosa / CCA

DEAFKIDS é um nome que faz todo o sentido após ouvir o trio de São Paulo. Não por qualquer razão pejurativa (antes pelo contrário!), mas porque após a meteórica entrada se torna impossível ouvir qualquer outro som que não o intensíssimo banho de imersão sonora em que a banda, que assina pela Neurot Recordings (label de Neurosis ou Amenra), nos submerge. Vocais que se sobrepõem até ao infinito, guitarra cortante e agressiva que se desfaz em estepes noise que enchem o espectro de frequências, percussão imparável ora motorik, ora a roçar um math tropical (nem Battles a tentar tocar metal com congas ao dobro dos BPM no meio da selva lhes fariam justiça); tudo entregue num embrulho de densidade e volume difíceis de imaginar sem o viver. Uma experiência intensa porém de relativamente curta duração – em que, ainda assim, não faltou tempo para mosh e headbang a roçar o chão nas fileiras da frente de um dos concertos mais explosivos da memória recente do festival.

DEAFKIDS – Fotografia de João Rosa / CCA

Confesso que após tal ataque aos sentidos acorri à meditação possível – e não eram poucas as bocas que se reuniam no exterior para comentar a actuação anterior – mas não faltou tempo para novo mergulho sonoro e entrada nas mãos de Yeah You, improvável duo de pai e filha oriundos de Newcastle. Actuando no palco antes pisado por Ilpo Väisänen, o grupo aposta num experimentalismo mais caótico, violento tanto na errática electrónica de Gustav Thomas como nos gritos modulados de Elvin Brandhi; uma combinação improvisada de suspensão uncanny tanto no resultado como na execução.

As honras de encerramento da noite couberam a DJ Firmeza, nome de última hora que substitui MCZO & Duke, duo que acabou por não conseguir atempadamente o necessário visto para viajar para a Europa. Firmeza caminha pelo traçado do seu recém-lançado Ardeu, misturando as latitudes do kuduro e da batida com iluminações techno – estandarte da sempre presente Príncipe. O set que traz ao festival revela ser o complemento perfeito ao cósmico apocalipse que ocorreu faz poucos minutos no mesmo palco, desvendando os complexos ritmos em plena apoteose de laivos shamanísticos.

Yeah You – Fotografia de João Rosa / CCA

O último dia de festival, à semelhança da edição do ano passado, mantém uma estrutura tripartida: durante a tarde, o plano passa pelo bem-vindo peddy-paper barreirense – as localizações este ano passam, à semelhança da última edição, pela Biblioteca Municipal e pelo Largo do Mercado 1° de Maio; mas também pelo Teatro Municipal e pelo recentemente renovado Moinho Pequeno. Tudo localizações que valem a pena visitar – em especial o teatro, que no interior do emblemático Centro Comercial Pirâmides e com a sua incrível fachada evoca uma verdadeira viagem no tempo – mas também um dos maiores pontos inferiores à última edição, já que as viagens maiores entre os locais (em especial o mais distante, Moinho Pequeno) bem como alguns atrasos menores acabaram por impossibilitar coleccionar todas as experiências da tarde.

Teatro Municipal – Fotografia de João Rosa / CCA

Bezbog, portugueses da portuense Favela Discos, são a primeira actuação de dia, seguidos de – praticamente ao mesmo tempo – a espanhola Angélica Salvi, harpista residente no Porto com lançamento bem fresco pela Lovers & Lollypops. Os dinamarqueses Brynje encetam o Teatro Municipal com uma performance preparada especialmente para o local (com o qual têm ligação dada uma anterior residência artística), mas estirando o drone disperso e face à variedade de opções que sobe em energia, falham em cativar prolongadamente o público que parte rapidamente para uma das performances mais aguardadas da tarde: Keith Fullerton Whitman, Simão Simões, Sofia Mestre (Clothilde) e André Gonçalves actuam juntos, em modo ensemble, no centro de uma sala envolta em escuridão da Biblioteca Municipal. A já conhecida infinita parafernália electrónica de Clothilde volta a roubar as atenções (tal como no ano passado – em que a artista actuou na Escola de Jazz), desta vez desmultiplicando a complexa atmosfera sonora pelos restantes participantes; que entre as vertiginosas incursões ora no noise ora no silêncio total prendiam os espectadores sentados em seu redor.

Keith Fullerton Whitman, Simão Simões, Clothilde e André Gonçalves – Fotografia de João Rosa / CCA

Luar DomatrixVioleta Azevedo (Jasmim, Savage Ohms), figuras de um outrora meio subterrâneo lisboeta cada vez mais visível, actuam no Moinho Pequeno; enquanto o Largo 1° de Maio, palco de concertos gratuitos do festival, acolhe Chão Maior, supergrupo de incontornáveis nomes que preenche na perfeição o slot de ainda luz inteira. O Teatro Municipal é berço para Candura, misteriosa e antecipada actuação que reúne já considerável fila para entrar no diminuto local bem antes da hora do seu início. A dupla lisboeta, muito à semelhança de grande parte dos artistas do OUT.FEST, não é fácil de descrever sem discorrer em jargão de etiquetas; entre as quais um black noise bem roubado do seu bandcamp – mas a promessa de erguer uma ensurdecedora muralha sonora num espaço em quase total escuridão foi cumprida – num concerto que só lamentamos ocorrer ao mesmo tempo que tantos outros pontos de interesse.

Candura – Fotografia de João Rosa / CCA

Raw Forest, a portuguesa Margarida Magalhães associada à sempre interessante LABAREDA, submerge a Biblioteca Municipal – agora iluminada – numa electrónica de brilhos atmosféricos em resplandecência que recordam os sonhadores trabalhos a solo de Emily Sprague; enquanto a tarde é fechada e o povo se aglomera no Largo a assistir a Davy Kehoe, que, acompanhado da sua banda, proporciona um dos momentos mais funky e gingões do festival (sem esquecer a exploração, já que o seu trabalho de hipnose motorik subjacente com sobreposições de harmónica não nos escapa como algo relativamente inédito).

Com amplo tempo para jantar pelo meio, o tronco principal de concertos da noite cabe à emblemática SIRB: enorme sala no coração do Barreiro velho propícia a saraus de ginástica, acolhe a enchente de multidão que se prepara para receber o primeiro – e emblemático, em particular para a geração que de tanta internet respira – James Ferraro. Ferraro, icónico nome muito associado ao pop hipnagógico e a uma música que bebe muita inspiração da cultura consumista de uns nostálgicos 90s – surge em palco envolto na profunda névoa que transparece no seu som: maioritariamente uma transcrição de Requiem for a Recycled Earth, último lançamento do produtor norte-americano em que as sonoridades ambient têm um peso acrescido, Ferraro enceta a noite com o regresso a uma inquietante tranquilidade.

James Ferraro – Fotografia de João Rosa / CCA

O registo é devidamente carregado por Nadah El Shazly, numa estética completamente diferente: a música tradicional egípcia é vasta fonte de inspiração para a compositora do Cairo, que, com presença marcada no palco, transporta o público numa viagem de estranhos tons pelo deserto. Não é simples classificar a experiência: Nadah navega entre acessível pop e carregadas cores jazz em tons arábicos que surgem em tenso contraponto. O final do concerto é marcado por um emotivo momento em que pede para que a amplificação seja desligada e canta sem microfone para o enorme salão, que a respeita atentamente.

Nadah El Shazly / Fotografia de João Rosa / CCA

Dälek, um dos nomes de maior potencial energético da noite, provam a qualidade da sua improvável mistura entre densos ritmos industriais a plenos decibéis e o hip-hop. Will Brooks e Mike Manteca, duo americano, lançam complexas incursões entre a escuridão fria fabril e as sentidas rimas; coalescendo em momentos de plena queda de cabeça em muralhas de abrasão sonora. Dälek habitam uma atmosfera própria e palpável – longe de sorrisos ou galanteios, transparecem a crueza de uma realidade pragmática, e fazem-no com a intensidade de poucos.

Dälek / Fotografia de João Rosa / CCA

De regresso após necessária reflexão; Still encerram o palco com uma das performances mais energéticas e surpreendentes que poderíamos esperar: Simone Trabucchi, produtor italiano, pega no dancehall e contorce-o das mais variadas formas. Devon Miles e Freweini Zewoldi acompanham-no em palco em vocais e incansável coreografia que inúmeras vezes envolve tanto o público quanto saltos excessivamente altos para as horas da noite que se vivem. O público reage, a dança é febril e a rendição é total, cimentando-se como um dos nomes fortes da noite de que não devem deixar de ouvir o álbum.

A emblemática procissão até ao A4 marca o já final do festival: o edifício singular, em não-muito-distantes terrenos industriais barreirenses, marca a sempre intensamente demolidora rave que surge no anterior para encerrar as dilacerantes sonoridades em beleza. Este ano a cargo do meltdown estão Mo ProbsBonaventure e o barreirense que é uma das figuras centrais do colectivo Mina: VIEGAS; sets que apesar de tardios não falham em agarrar público.

Still / Fotografia de João Rosa / CCA

Em mais uma edição de sons exploratórios, é meritório o quanto o OUT.FEST continua a lograr o seu objectivo bem como corresponder aos interesses dos que o frequentam; ou não estivesse a casa bem recheada em cada uma das salas em que entrámos ao longo dos três dias. Ainda mais meritório é que o façam longe dos lugares-comuns habituais; e em especial nesta edição de grande intensidade – sem nomes que comprometam o seu espírito experimental e sem cabeças de cartaz bem definidos em letras gordas. Ano após ano, continua a ser a mesma epopeia de descoberta em que milhares mergulham sem conhecer um único nome – não é essa afinal parte da beleza? – ou em que dedicados melómanos exploram cada canto das suas raízes.

Fotografia de João Rosa / CCA

Cada experiência dos três dias passados além-Tejo é singular e marca pela diferença, frequentemente em extremos polares. Do silêncio eclesiástico das primeiras actuações ao caos ensurdecedor que finaliza a viagem, há poucas ramificações e influências em que o OUT.FEST não toque, e que o seu público não sorva com interesse. Não há choque ideológico entre o hip-hop de Dälek e o improviso jazz de Peter Evans, entre o dancehall de Still e o black noise de Candura, o ambientcirca-’98 de James Ferraro, a flauta de Violeta Azevedo e o kuduro de DJ Firmeza; da mesma forma que escolher uma etiqueta para cada um está muito longe de fazer justiça ao trabalho que apresentam. E se isso vos agrada, sabem em qual das margens do Tejo terão de estar no próximo ano.

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