Palavras certas
No meu entender, um espaço em branco e todo o lote de palavras capaz de lhe suceder demonstra a sua utilidade em diversas situações, banais ou não. Considerando que a frase anterior integrou o conjunto previamente definido, falemos da morte. Desculpem a voracidade, as cicatrizes que voltaram a não conter o sangue e os tabus que originam estímulos para reações não estabelecidas. A morte nada mais traduz do que um espaço monocromático vago que suplantou uma espécie de Nova Iorque com o máximo de brilho e lustro.
Familiares perecem porque a tradição, em Portugal, necessita de ser cumprida à risca e doseada de acordo com as práticas que gerações tendem a fazer ressuscitar, conforme o que lhes foi dito e nunca questionado, pela simples razão de se pelejar por um objetivo em comum: silenciar os ecos do ultraje. Jack Kerouac, em Vagabundos do Dharma, afirmou que um dia encontramos as palavras certas e que essas mesmas estarão recheadas de simplicidade. Com a morte, ainda não foram descortinados termos que assentassem como uma luva ou resolvessem parte daquela encrenca: tudo o que é dito, maltrata a cortesia e insulta o senso.
Ecos: Em agosto, foi a vez do senhor Fernando. Não escapou. A morte levou-o, mas com certeza que estará num sítio melhor. Pelo menos, acabou-se o sofrimento, foi melhor assim. É a vida, toca a todos, ninguém cá fica para semente. O que é preciso é coragem, muita força, vem aí uma fase muito difícil, cabeça levantada! Os meus sinceros sentimentos!
O discurso anterior corresponde a uma ementa distribuída por todas as cerimónias fúnebres que assolam e desgastam um país inteiro. Enquanto o mesmo é declamado cuidadosamente, palavra a palavra, vários são os brados preferencialmente dirigidos à redoma que envolve o estado de negação e os maiores carpidos. Escolhe-se a dedo, não se escolhe? É propositado, mas qual o firme propósito? Procuram-se os debulhados pela perda, encontram-se os perdidos pela perda, acalmam-se os que acham que tudo está perdido? Não, aguça-se o calvário e assustam-se almas que — como os Joy Division cantam — pensam que estão mortas.
A solenidade não chegou ao fim. As despedidas atracaram no cais, taparam-se as telhas da nova casa do mártir, enxugam-se as lágrimas, assoam-se os narizes e fixam-se olhares para os tais espaços monocromáticos, recheados de brilho, ouro mais ou menos branco. O tormento continua e segue-se uma palestra que dilacera lentamente, inapta na autotransformação ou no adquirir de tal interesse perante as circunstâncias. Os responsáveis não leram Franz Kafka, conclui-se.
A moralidade, nestes momentos, parece estar morta também. Aquilo que se considera de humano realizar é fictício, assim como aquilo que se considera humano dizer. A pergunta surge apenar num raio de ação: quando é que damos razão a Jack Kerouac? Qual o momento achamos as palavras certeiras? Será que existem palavras certas adequadas a cada momento?
Na última dança do senhor Fernando, o meu primo — após reparo nos movimentos de algumas pessoas afetas por alguma razão — constatou o absurdo da situação comigo e trocou duas ou três ideias que geraram indignação.
Ele deu-me a conhecer Jack Kerouac. Em casa, lembrei-me disso…