Os sintomáticos pontos de Yayoi Kusama
A doença mental no mundo artístico tende a ser romantizada, tanto pelos criadores da obra como pelos consumidores de arte. Assim, e apesar da curiosidade natural sobre alguém que cria e simultaneamente sofre de doença mental, é importante entender se é necessário sofrer de doença mental para criar. É sabido que grandes nomes artísticos sofrem de doença mental diagnosticada, sendo popularmente conhecidos os suicídios de diversos nomes da literatura, artes plásticas e artes visuais. Torna-se assim legítimo questionar qual a relação entre o ato de criação artística e a saúde mental do criador.
Temos exemplo de artistas que padecem de doença mental diagnosticada e que usam a arte enquanto estratégia de coping, acabando por ser extremamente profícuos na sua ocupação. Yayoi Kusama, provavelmente a maior artista japonesa com obra reconhecida internacionalmente, é um exemplo vivo disto mesmo.
Kusama nasceu em Matsumoto, no Japão, em 1929, e tem vivido desde 1977, por iniciativa própria, num hospital psiquiátrico de Tóquio, devido a alucinações que a acompanham desde infância. Apesar da sua neurose, continua, todos os dias, das 9 às 18h, a pintar num estúdio próximo do hospital. O trabalho de Yayoi é sobre a anulação de si própria, as repetições até ao infinito dos seus pontos. Nas palavras da própria, não servem outro propósito do que acabar com o ruído dentro da sua cabeça.
Segundo Yayoi, a infância que teve marcou-a. Obrigada pela mãe a espiar o pai nas suas aventuras sexuais, tornou-se incapaz de se sexualizar, e iniciaram-se as primeiras alucinações. A família foi contra o percurso artístico de Kusama. Desfez-se várias vezes das suas obras e, deste modo, a relação com a mãe marcou mentalmente a artista. A sua vida mudou quando, ainda em Matsumoto, depois da segunda guerra mundial, encontra um livro de Georgia O’Keeffe e troca correspondência com a pintora. Em 1957, após, surpreendentemente, receber resposta, decide ir para Seattle e, posteriormente, Nova Iorque.
A experiência nova-iorquina não correu pelo melhor, encontrando-se em pobreza extrema, onde uma porta fazia de cama e acabou a comer do lixo. Nestas circunstâncias, a neurose voltou. Não havendo outra maneira de lidar com o ruído interior, entrega-se totalmente ao trabalho. Cria “Infinity Nets”, o conjunto de quadros que, de tão ímpares, serão sempre seus. Acaba por frequentar os círculos artísticos da cidade, privando com Mark Rothko e Andy Warhol, onde se evidencia no meio.
Kusama usou as suas criações para lidar com os vários problemas mentais que ainda hoje a assolam. A abjeção por sexo levou-a a casar com o artista Joseph Cornell, que era impotente. Para lidar com essa abjeção, começou a colocar protuberâncias fálicas nos objetos do quotidiano, tornando familiar algo que a transtornava. Estes projetos mais ousados e a sua posição sobre a guerra do Vietname (onde oferece a Nixon a proposta de mutuamente se pintarem com os seus pontos caso este dê a guerra por terminada) não caíram bem na ainda fechada sociedade japonesa. Foi apelidada de desgraça nacional e a mãe desejou-lhe a morte.
Na década de 1970, volta para o Japão, onde se interna no mesmo hospital onde ainda hoje se encontra. Continua a criar e a pensar sobre a sua mortalidade.
Yayoi Kusama é um dos muitos casos do mundo criativo onde não nos é permitido separar as suas criações da sua doença mental. A literatura científica tenta elucidar e compreender estes casos.
Diversos estudos tentaram mostrar se a relação entre psicopatologia e a criatividade existe. Em 2011, na Suécia, um estudo realizado por Kyaga et al., que decorreu durante 40 anos com cerca de um milhão e duzentos mil participantes, concluiu que, estatisticamente, indivíduos que se encontrassem em ocupações consideradas artísticas não tinham mais probabilidade de sofrer de doença mental diagnosticada, tal como esquizofrenia, doença bipolar ou depressão. Contudo, a presença de irmãos de padecentes de psicopatologias em profissões criativas era estatisticamente representativa. Isto originou a conjectura de que uma versão mais leve da patologia, que mantém o indivíduo socialmente funcional, seria benéfica à criatividade. Existem então traços de personalidade que levam à existência de uma maior atividade criativa, nomeadamente as personalidades apelidadas de esquizotípicas.
É também possível identificar fisicamente o local do cérebro que mais se encontra ativo quando se realizam tarefas criativas. A zona apelidada de precuneus, parte do lóbulo parietal superior, está relacionada com a auto representação e a consciência do indivíduo. Aparentemente, quanto mais criativo for um indivíduo, maior dificuldade terá em suprimir a atividade desta zona do cérebro. Foi esta a conclusão de Takeuchi et al. no seu estudo sobre memória funcional e criatividade. Apesar de neste trabalho só terem sido analisados indivíduos considerados mentalmente saudáveis, outros estudos, tais como o de Susan Whitefield-Gabrielli et al., mostram que portadores de esquizofrenia têm dificuldade em desativar a mesma região do cérebro.
É então justificável a associação entre os dois estudos. A criatividade pode ser assim justificada com uma grande quantidade de informação não filtrada. Esta informação é, durante o processo mental, posteriormente associada e organizada. Deste modo, o indivíduo consegue produzir um maior número de ideias vindas destas associações.
Yayoi Kusama é um exemplo vivo de criatividade profícua moldada pela sua experiência pessoal e enfermidade. Existem outros indivíduos igualmente criativos com histórias semelhantes. Todos nós, devagar, com o auxílio do método científico, vamos entendendo o porquê da necessidade de criar – por parte de alguns de nós e não de outros -e os processos que internamente ocorrem para que tal seja possível.
Fotografia de destaque por Tomoaki Makino
Fotografias por Queensland Art Gallery & Gallery of Modern Art e Louisiana Museum of Modern Art