Paredes de Coura 2019 (dia 3): a arte de saber abrandar e a aceleração vertiginosa dos Black Midi
Um bom festival de música é um evento cultural que, por se levar a sério, tem um sentido de autoria muito vincado. Isto é: o cartaz no seu todo, e no seio de cada um dos seus dias, apresenta uma proposta ao público que o quer receber. Por norma, um bom cartaz assume um misto de coesão e diversidade – e cada dia pode ser uma página diferente dessa mesma história. Ao terceiro dia, o Paredes de Coura decidiu abrandar. Os concertos do palco principal foram mais lentos e reflexivos do que os dos dois dias anteriores. E isso não tem mal – vínhamos lançados de duas noites em que com frequência tirámos o pé do chão. À terceira fomos obrigados a abrandar. Só os Black Midi foram os alunos rebeldes.
O terceiro dia desta edição do Paredes de Coura começou mais cedo para nós. Não temos aqui abordado os concertos do Jazz na Relva, que são a companhia musical de quem escolhe passar as tardes junto ao rio Taboão, deitado nas margens, no extenso relvado, ou mesmo a boiar à tona da água. Mas uma nota para o espectáculo dos Madrepaz, banda portuguesa de pop-rock alternativo, e que pontualmente piscam o olho ao psicadélico e a uma linha mais progressiva. O seu concerto na relva, às quatro da tarde, foi montra daquilo que têm vindo a criar – e conquistou muitos ouvidos, tendo o final do concerto convocado largas dezenas de pessoas que se levantaram na frente do palco para dançar. Ficámos convencidos – adivinha-se um futuro sorridente para este grupo português, que tem por um dos principais trunfos as harmonias vocais bonitas e constantes.
Entramos no recinto ao som da música de First Breath After Coma. A banda portuguesa parece vir a cultivar um som cada vez mais interessante – uma art pop não totalmente distante daquilo que Bon Iver tem vindo a inventar nos seus últimos álbuns. Os baixos electrónicos, as vozes alteradas, o sentido de progressão das músicas. Tudo aponta para uma palavra: ambição. É um som cheio, amplo, interpretado sempre de forma séria – revelando a atitude com que os músicos se aproximam da sua ideia de criação. Uma nota para a presença do convidado Noiserv, com quem os First Breath After Coma fizeram uma residência artística há pouco tempo. O artista veio complementar o som da banda, inclusive com a sua belíssima voz, e deu fôlego aos últimos dez minutos do concerto.
Os Balthazar, no palco secundário, interpretarem os seus temas pop com energia que contagiou as muitas pessoas que se deslocaram à lateral do recinto para saltarem ao som da sua música. Com um balanço que alternava uma certa calma com uma alegria mais vibrante, a banda parecia ter diante de si uma boa percentagem de fãs, e conquistou a atenção de muitas outras. É de louvar o carisma e a força que injectaram no alinhamento do concerto.
Tínhamos muita expectativa para o concerto dos Black Midi. O colectivo londrino já tinha passado muito discretamente por Portugal, em Guimarães, em Outubro passado. Isso antes de se terem tornado virais pela live session que deram no KEXP; e do lançamento do seu álbum de estreia, editado há poucos meses. Os Black Midi são muito novos – e parecem ainda mais novos do que aquilo que são. Mas fazem música explosiva, criativa, de técnica puxada ao jazz (segundo a formação de boa parte da banda), e partem convenções no meio do barulho. Não estão acomodados – nem em estúdio, nem, pelos vistos, em cima de um palco.
O concerto começa com um dos mais electrificantes momentos desta edição do festival: a sequência “Near DT, MI” e “953” mostram os Black Midi no seu potencial máximo. É barulho arrumado, quase matemático, propulsionado pelos ritmos impressionantes que saem das mãos do baterista Matt Kelvin (o mais virtuoso dos quatro?). Os quatro parecem essenciais ao som da banda, e coordenam-se entre trocas de olhares, mesmo no contexto das estruturas complexas e labirínticas de que são montados os seus temas.
Dá a sensação que a própria banda ainda se está a experimentar, e nem todos os momentos de improviso são particularmente memoráveis. Mas há ideias muito boas a flutuar naquelas músicas e transições – e há risco. Os Black Midi são muito mais do que uma banda para fazer moshe – são um dos mais vanguardistas grupos de rock a nascerem nos últimos anos (mesmo a piscar o olho ao passado, aqui e ali). Em Setembro estarão novamente em Portugal. Aguardamos o desenrolar desta carreira à frente dos nossos ouvidos.
Os anos passam pelos Deerhunter, mas há certas coisas que não mudam, como o seu amor pelos pedais, loops, reverb; enfim, tudo o que possa tornar a sua música mais alienígena. Neste concerto em Paredes de Coura, estes truques foram usados para criar intensidade e dissonância, indutoras de um certo trance no público, que se mostrou atento mesmo aos momentos mais contemplativos. Tivemos direito a ouvir “Sailing” e “Coronado” (tocada pela primeira vez em Portugal, com toda a glória do seu saxofone à la Rolling Stones), assim como outros grandes momentos do seu magnum opus, Halcyon Digest. O mais recente Why Hasn’t Everything Already Disappeared? viu o seu pináculo em “Plains”, em que Bradford Cox, o carismático vocalista, pôs em prática um cada vez mais natural à-vontade como frontman. Cox ainda fez questão de elogiar a música experimental que se faz em Portugal, referindo os nomes de Rafael Toral e Nuno Canavarro – compensando assim a falha de dizer que era bom estar de volta ao Porto (ups!). A banda mostrou-se bem humorada e com bastante sintonia, demonstrando porque é uma das mais respeitadas bandas a fazer indie rock (o que sequer significa isso hoje em dia?) actualmente.
O concerto dos Spiritualized foi um dos mais peculiares do Paredes de Coura deste ano. Quando o ano passado a banda marcou presença no Primavera Sound de Barcelona, foi colocada a tocar no Auditório; opção que era desde logo indicativa do tipo de concerto que iriam apresentar. Já estavam a apresentar, nessa altura, o seu álbum mais recente – And Nothing Hurt – editado em 2018. Em Coura, os Spiritualized subiram ao palco com um total de nove elementos – entre as quais três guitarras eléctricas, e três vozes femininas a formarem um pequeno coro gospel.
Foi a partir de uma fórmula bastante circunscrita que a banda construiu o seu espectáculo – os temas tinham quase todos início na voz de J. Spaceman, que se fazia acompanhar a si próprio pelos dedilhados lentos da sua guitarra. A partir daí, e das suas letras sussurradas com emoção, o tema crescia até à apoteose. As frases do refrão, repetidas até à exaustão, formavam um mantra que parecia estar a ser vivido pelo colectivo. Mas o espectáculo, embora bastante emocional, teve alguma dificuldade em contagiar o público. Sentia-se uma resistência à sua natureza algo formulaica. Um bom concerto, mas que no enquadramento do Paredes de Coura pareceu não casar completamente com o restante alinhamento.
Por fim, Father John Misty veio assumir o papel de cabeça-de-cartaz do terceiro dia do festival. Um papel que iria tentar desempenhar apesar da dificuldade em compará-lo ao calibre de artistas como os The National, New Order e Patti Smith. Não é fácil. A banda do artista, composta por dez músicos, apresentou-se com um som límpido que nos fez uma vez mais desdobrar-nos em elogios à qualidade sónica que a organização consegue proporcionar ao seu público no anfiteatro natural. A formação era a mesma que tinha actuado o ano passado no Primavera Sound do Porto – o alinhamento é que foi prolongado, devido à posição de destaque com que o carismático artista apareceu no horário de Paredes.
Houve tempo para muitos temas de I Love You, Honeybear, o seu álbum mais aclamado pela crítica. Inclusive para uma série de temas que eventualmente têm um pouco menos de impacto ao vivo, mas que o artista assumiu sempre com a confiança e atitude de palco que lhe é característica; no limiar entre a veracidade e a ironia (sempre a tender para esta última). Um ponto que não podemos deixar de destacar: a voz de Father John Misty é das mais bonitas e cristalinas do cartaz deste ano. Que bem sabe ouvi-la. Um dos momentos mais estranhamente emocionantes do concerto é “True Affection”, a única canção synthpop da sua discografia; mas o público reage de forma mais efusiva aos singles. Sentiu-se muito o carinho da plateia pelo músico, e, embora se tratassem na sua maior parte de temas lentos, balançava-se o corpo e entoavam-se as letras com um sorriso na cara. Foi um final de noite muito melódico nas margens do Taboão.
Reportagem com contribuições de Bernardo Crastes.