Paula Rego, um dos maiores nomes da pintura portuguesa
Paula Rego é uma das figuras proeminentes da arte portuguesa, trazendo o seu potencial artístico para uma sociedade cada vez mais atenta e interessada. Como prova disso, está perto o lançamento de um documentário sobre o seu trabalho (“Paula Rego. Secrets and Stories“), da autoria do britânico Nick Willing, a estrear em abril (vê aqui o trailer). Para isso, propicia a questão social para a tela através de um estilo abstrato que se diferencia e que desperta um misticismo sensorial particular. Com vida e obra em Londres, é com naturalidade que expressa influências das escolas de lá mas é também com prazer que discursa no seu país a partir da sua linguagem pictórica e plástica. O seu espólio criativo posiciona-se pelo mundo, destacando-se Portugal e Inglaterra como os sustentáculos de uma carreira vivida e em constante mutação.
Maria Paula Figueroa Rego nasceu a 26 de janeiro de 1935 em Lisboa no seio de uma família de classe média. O seu agregado familiar fragmentou-se cedo em 1936 quando o seu pai foi trabalhar para Inglaterra e a sua mãe o acompanhou. Assim, a jovem ficou ao cuidado da sua avó até 1939, tornando-se numa agente educacional de vulto na sua formação humana e cultural. Os contos tradicionais que tanto ela como a governanta da sua casa lhe contavam tornaram-se influências marcantes no seu trabalho artístico futuro.
Como a sua família dispunha de bases anglófilas bem trabalhadas, a lisboeta ingressou na única escola de língua inglesa em solo português, sendo esta a St. Julian’s School. Esta, de caráter religioso muito anglicano, opunha-se ao catolicismo tradicional nacional mas coadunava-se com a crença do pai da futura pintora. Tudo isto serviu para criar uma distância entre si e o catolicismo, não obstante possuir o sentimento de culpa católico e a crença da existência do diabo em pequena.
Com 16 anos, emigrou para o Reino Unido para a Sevenoaks, escola que se especializava em formatar as mulheres para os costumes e comportamentos em sociedade. Desagradada com a mesma mas motivada por uma docente de lá a seguir a sua ambição criativa, tentou no ano seguinte inscrever-se na Chelsea School of Art, em Londres, mas foi contrariada pelo seu guardião legal no país, David Phillips, porque este tinha ouvido rumores de que uma jovem se tornara grávida enquanto a frequentava. Como tal, o mesmo sugeriu aos seus progenitores que esta fosse para a The Slade School of Fine Art, considerando-a uma opção mais respeitável e capaz de lhe garantir o êxito esperado. Assim, a futura artista esteve na mesma de 1952 a 1956. Foi nesta que conheceu o seu futuro marido e pintor Victor Willing, voltando com este para Portugal em 1957 e ironicamente engravidando ainda enquanto estudava. O casamento de ambos decorreu em 1959, após o inglês se ter divorciado da sua primeira esposa. Três anos depois, o pai da lisboeta comprou uma casa para o casal em Londres, na Albert Street situada em Camden Town, e o tempo de ambos tornou-se dividido entre Portugal e Inglaterra.
Salazar a vomitar a pátria (1960)
Após a morte do pai da portuguesa, em 1966, o negócio da família foi assumido pelo marido dela, apesar deste se encontrar constrangido por uma esclerose múltipla. Este negócio não resistiria à Revolução de 1974, mesmo apesar do fervor republicano que a sua família nutria. Os trabalhos produtivos foram assumidos pelas forças revolucionárias e o casal de Paula Rego e Victor Willing, já com três filhos, emigraram permanentemente para Londres e por lá ficaram na maioria do seu tempo até à morte do segundo, em 1988. Desde então, a portuguesa repartiu o seu tempo entre Lisboa e Londres, granjeando prestígio pelo seu êxito criativo em quantidade e qualidade. Alguns dos principais espaços em que proporcionou exposições da sua autoria foram na Fundação Calouste Gulbenkian (1988), na National Gallery (1991) e na Tate Britain (2004).
Quanto à sua carreira artística em concreto, a portuguesa, enquanto estudante, realizou uma série de murais em grande escala para decorar a cantina dos trabalhadores da fábrica de eletricidade do seu pai. No entanto, o seu trajeto iniciou-se formalmente em 1962, com 27 anos, quando começou a expor algumas das suas criações no âmbito do The London Group. Esta associação de artistas integrava em si nomes como David Hockney, Lucian Freud, Frank Auerbach e Craigie Aitchinson e caraterizava-se pela versatilidade e liberdade como valores da sua produção artística. Em 1965, foi selecionada como uma das seis artistas num espetáculo de grupo realizado pelo Institute of Contemporary Arts (ICA), para além de ter a sua primeira exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), em Lisboa. A notoriedade que havia conquistado em terras lusas era já significativa ao ponto de representar o seu país de nascença na Bienal Internacional de Arte em São Paulo, em 1969. Nos anos 70, período conturbado no país, foram mais de dez as exposições entre Lisboa e Porto mais as realizadas em terras de sua Majestade nos anos 80, em especial em Londres e em Bristol.
Em 1988, tanto na Fundação Calouste Gulbenkian como na londrina Serpentine Gallery, Paula Rego teve exposições retrospetivas da sua carreira, tornando-se também a primeira Associate Artist à National Gallery em 1990. Aqui, desdobraram-se duas séries do seu trabalho, sendo a primeira relativa a pinturas e obras cujo tema se prendia com as canções de criança e a segunda inspirada em pinturas de grande escala do artista renascentista italiano Carlo Crivelli. Para além dos já rotinados Portugal e Inglaterra, também o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia de Madrid foi local de retrospetiva do trabalho desenvolvido pela artista, para além de, no outro lado do atlântico, ser importada para o National Museum of Women in the Arts, em Washington, D.C. e para o Marlborough Chelsea, em Nova Iorque. Outros locais que receberam as suas obras foram a École Superiéure des Beaux-Arts, na cidade francesa de Nimes, o Museum of Contemporary Art em Monterrey, no México, e na Pinacoteca de São Paulo, no Brasil. Atualmente, o mesmo pode ser visto permanentemente em diversas instituições públicas e privadas espalhadas pelo mundo, em especial no British Council, na Tate Gallery e no Arts Council of England.
War (2003)
A artista portuguesa especializa-se nas pinturas e gravuras, tendo até começado por produzir algumas colagens. Nos anos 60, a influência surrealista no trabalho da lisboeta era evidente, em especial do trabalho do espanhol Joan Miró. Esta revelava-se não só na imagética (forma e cor que compõem a imagem) expressa mas essencialmente no método de criação artística. A premissa do desenho automático em que a produção surrealista se baseava era primordial nesta primeira fase da pintora, com a tal premissa a designar o exprimir do inconsciente na construção da imagem ao invés do consciente. A base que tinha obtido com a London School levava-a a cenários rocambolescos, pintando casos sinistros e abstratos a partir dessa orientação inconsciente. Assim, o pendor das figuras pintadas pela lusa eram substancialmente abstratas e, para além disso, traduziam mensagens adversas à política ditatorial de então. A narrativa era, assim, uma vertente fulcral na sua expressão artística, conferindo-lhe significado e sentido num contexto sempre bem destrinçado.
Existiam duas razões que sustentavam a deriva da pintora por um estilo semi-abstrato nesta década. Primeiro, era o estilo abstrato que dominava os círculos artísticos confluídos nas posições avant-garde, tornando a arte figurativa mais defensiva do que ofensiva e pungente. Contudo, era também uma forma da artista se contrapor à formação recebida na Slade School of Art, na qual se enfatizava em demasia o desenho anatómico. Com o apoio do seu marido, foi efetivando, ao lado dos restantes cadernos académicos, uma sebenta na qual continha diversos desenhos cujas formas eram livres e espontâneas. O seu estilo tornar-se-ia algo mais expressionista e até similar aos tradicionais comics, importando algumas influências de artistas como o francês Jean Dubuffet e o russo Chaim Soutine e abandonando o rigor retratista e detalhista.
The Maids (1987)
Grande parte do seu trabalho inclui, como temáticas, o folclore tradicional e os contos e efabulações que havia conhecido em criança, contrastando o novo com o velho e juntando o humano com o animal. Este ênfase foi dado em especial a partir dos anos 90, numa fase mais nostálgica e reflexiva da pintora. Nesta fase, o trabalho da forma sempre foi destinado a vincá-la com clareza e força, contrastando com o menor rigor e afirmação da forma desenvolvida outrora. Esta alteração deveu-se principalmente devido ao seu primeiro compromisso como Associate Artist na National Gallery de Londres, tornando-se envolvida num contexto que se designa como artist-in-residence. Neste, a portuguesa deteve-se num período de reflexão, de pesquisa e de experimentação e, como tal, acabou por ser a sua conceção produtiva profundamente alterada.
O estilo tornou-se doravante mais claro e linear, tornando-se reminiscente daquilo que havia aprendido na escola artística onde se formou. Esta reformulação resultou nas séries de trabalhos supracitadas, onde a superação feminina foi amiúde tema, assim como a exposição de situações nas quais a vulnerabilidade da mulher se verificasse. Desta forma, é com regularidade que a apontam como um canal artístico do feminismo, defendendo-o com subtileza e firmeza e apontando Simone de Beauvoir como o nome que lhe abriu as portas para a posição da mulher na sociedade. Uma outra das influências artísticas que embebeu no seu registo criativo foi o espanhol Diego Velázquez, em especial no que toca à abordagem da matéria e na exploração espacial da representação da forma e da figura.
Agonia no Horto (2002)
As colagens com as quais iniciou a sua carreira foram sendo menos empreendidas no final dos anos 70 em detrimento do uso do pastel como meio de construção das suas obras. O seu uso tornou-se normalizado até aos dias de hoje. Este material tornou-se veículo de materialização de muitas narrativas que se cruzavam com a crítica ao psicanalista Sigmund Freud relativamente aos postulados deste sobre a mulher. Assim, baseou-se em autoras como Griselda Pollock para formalizar as obras literárias com as quais havia contactado. Para exprimir também aquilo que assumia como a realidade física da mulher, desenhou-as de forma animalesca e brutal, estabelecendo um paralelismo com os padrões dos desenhos do homem. Desta forma, abulia quaisquer idealizações por parte das mentes masculinas e colocava as mulheres em total pé de igualdade física e mental com os homens.
Paula Rego é uma das principais figuras da ribalta artística portuguesa. Com um repertório vasto e que representa a expansão imaginativa de toda a sua personalidade, encheu os mais reputados espaços museológicos do mundo com obras da sua autoria. A sensibilidade apurada permitia-lhe estudar a sociedade nas suas obras, em especial as discriminações, e envolver-se numa diversidade de registos expressivos e de técnicas de desenho e de cor. Foi com isto que conquistou várias instituições académicas, recebendo um doutoramento honorário na Winchester School of Art, na Universidade de Oxford e na Rhode Island School of Design. Para além disso, e em terras que a viram nascer, recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago de Espada em 2004 e assistiu à construção da Casa das Histórias Paula Rego em 2009, pela parte do arquiteto m. Contudo, o ponto (ainda) mais alto de todo o conjunto de condecorações chegou em 2010, quando foi nomeada Dama do Império Britânico. Todo um repertório envolvente e subsequente de uma artista que se dá à causa, à forma e à reforma da pintura em todas as dimensões conhecidas e das demais que estão por se conhecer.