‘Peter Grimes’, ópera de Britten no S. Carlos, é bilhete só de ida para o mar
O Teatro Nacional de S. Carlos foi, por uma noite, porto do mar do norte. ‘Peter Grimes’, ópera de Benjamin Britten, estreou na passada terça-feira diante de uma plateia praticamente esgotada. A obra, estreada originalmente em 1945 e hoje considerada parte do reportório padrão, conta a história de um pescador acusado de ser responsável pela morte do seu aprendiz. É uma narrativa envolvente – em três actos – sobre o confronto entre o indivíduo e a sociedade, que, num crescendo dramático, nos faz pensar nas nossas próprias negligências e ambições. Em cena até dia 7 de Junho.
O início do espectáculo é acompanhado de um choque já expectável. A Orquestra Sinfónica Portuguesa no fosso, um elenco de aproximadamente seis dezenas de artistas em cima do palco, cenários de tirar o fôlego, numa das salas mais esplendorosas de Portugal. Uma ópera que se apresenta como um espectáculo que quer abranger o todo, múltiplas expressões artísticas a marcar presença em dimensões abundantes. A humanidade consegue contar uma história em surdina, numa conversa ao canto de um quarto; por meio de páginas e caracteres, encadernados ou não; ou da forma excêntrica e ambiciosa com que a ópera se comunica: pela música, pelo teatro, pela cenografia, por uma centena de pessoas a participarem à vista dos nossos olhos, e outras tantas escondidas. E vale a pena contar histórias assim, desta forma; como que nos desacomodam, à sua maneira; desafiam-nos, com os seus tempos específicos. A ópera vale a pena. A ópera importa.
Diante dos nossos olhos, a comunidade da vila piscatória, das várias classes sociais. Estamos no século XIX, reina uma estranha harmonia entre a população, como se cada um reconhecesse o seu lugar numa sociedade estratificada e o aceitasse como natural. No porto, no pub, nas praças da cidade – sempre perto do mar – somos testemunhas desta acusação que assombra o protagonista da peça, Peter Grimes. Do seu lado, apenas uma jovem viúva, Ellen, apaixonada por ele, disposta a defendê-lo diante do coro de vozes que lhe atribui a culpa. O primeiro acto apresenta-nos todos estes primeiros dados, e acaba por se focar muito num retracto pervertido da sociedade. O que move cada pessoa é diferente – o dinheiro, o sexo, a fé, os gostos e os sonhos – e é absolutamente o mesmo. Num jogo entre a incerteza e a confiança, avançamos. A beber no pub da Auntie até cair para o lado (ou para cima de Mrs Sedley), a ir à missa no dia do Senhor, ou a dançar pela noite dentro em recantos escondidos e vielas da cidade – o texto apresenta-nos estes momentos como práticas de uma comunidade, que conseguimos ver sob um olhar externo. Afiguram-se-nos vazias de sentido, porque temos a oportunidade de assistir a um zoom-out do indivíduo: estamos no campo do colectivo, das práticas culturais como enzimas do quotidiano e da vida.
Peter Grimes é a janela que temos, como espectadores, para o campo do conflito interno. Estamos certos de que a esmagadora maioria das personagens também sente os seus sonhos, também questiona a sua existência. Mas a Grimes vemo-lo por dentro – assim como a Ellen, de certa forma. Os momentos mais poéticos do texto chegam-nos por meio destas personagens, com bonitas e intensas reflexões interpretadas pelo tenor e pela soprano, que não raro ascendem ao domínio verbal da cosmologia. Grimes não é muito menos mundano que a populaça – mas, no papel de vítima e de cordeiro abandonado, apresenta-se como a mais humana das personagens.
A encenação de David Alden é dinâmica, movimentada e cativante. A direcção musical de Graeme Jenkins cumpre com brilho a execução de uma composição que varia de intensidade ao longo dos três actos. É absolutamente essencial destacar o trabalho cenográfico de Paul Steinberg, de tirar o fôlego. O piso inclinado do começo ao término da peça constitui um trunfo visual, que torna o espectáculo quase cinematográfico. O jogo entre os ângulos do chão e das laterais acaba por brincar com a perspectiva, adicionando profundidade aos cenários. Utiliza sugestivos fundos metálicos e uma iluminação intensa. Na segunda metade do espectáculo, recria fulgurantes visões do céu e do mar. A cenografia é um dos pontos fortes da ópera, deixa-a respirar e convoca mesmo as emoções que envolvem o texto em cada um dos seus momentos chave.
Saímos mais ricos de ‘Peter Grimes’. Com uma narrativa linear e fácil de seguir, temos oportunidade de reflectir sobre os limites dos nossos sonhos, e sobre os obstáculos que somos para os sonhos dos outros. E como esquecer o mar, personagem principal do espectáculo? O mar entrou no S. Carlos, na tempestade que ameaça a costa, na fonte de rendimento que é para a comunidade, no abismo mortal que engole e não devolve, no simulacro que permite ao homem a fuga, na praia, no passeio marítimo. O mar, incontornável para a humanidade enquanto não fugirmos de vez para as estrelas, é metáfora e agente da narrativa do palco e da história de quem assiste; e lá se afoga, por lá foge, ou junto a ele continua a marcar passo.
Fotografias de Sara Camilo / CCA