‘Peterloo’ tem um lado pedagógico inegável e é um enorme retrato do respeito pelos desfavorecidos
O Festival de Veneza ofereceu-nos já um trio de filmes que souberam tratar bem o poder da palavra. Desde logo no discurso fervoroso dos valores político sociais de Mike Leigh, no monumental e urgente Peterloo, mas também no filme de denúncia a preto e branco Whay You Gonna do When the World’s o Fire? do italiano radicado nos EUA, Roberto Minervini,. Ou até, finalmente, de uma outra forma, no vigor da oralidade do actualíssimo e preocupado Doubles Vies, do francês Olivier Assayas.
Peterloo é mais uma prenda da Amazon, filme que foi recolhendo alguns rumores depreciativos, sugestões de tesoura para cortar meia horinha, ou até o lado mais pomposo, palavroso, discursivo. Um filme a evitar, asseguraram-me. Opiniões talvez passageiras de colegas fatigados que com o andar do festival terão, sabe-se lá, até passado pelas brasas. Felizmente recuperámos este autêntico monumento, um verdadeiro quadro em cada frame e cada cena devolvida por um cast extremo (a merecer no seu conjunto um prémio de interpretação) pela forma como recordou este episódio “pouco presente” na sociedade britânica.
Leigh que nunca abandonou um cinema engagé regressa ao massacre de Peterloo, em 1819, para falar do básico. Esses que já viviam os efeitos da Revolução Francesa, que deu o golpe final do regime absolutista, mas também da Revolução Americana. Nesse sentido, o filme tem até um lado pedagógico inegável, bem como um dedo acusador bem firme ao poder político da época que permitiu uma manifestação absolutamente pacífica de perto de 100 mil britânicos na praça de St. Peter’s Field, daí o nome de Peterloo (para rimar com a recente vitória frente aos franceses em Waterloo). Esses mesmos manifestantes foram juntamente com as suas famílias para ouvirem o discurso de Henry Hunt (um Rory Kinnear imperial) e exigirem representação popular no Parlamento, no entanto essa demonstração pacífica acabou por ser recebida por uma carga de cavalaria de sabres em riste. Consequência? Perto de duas dezenas de mortos e várias centenas de feridos.
É claro que pelo meio, Leigh não resiste a acentuar a mesquinhez das classes abastadas, dos proprietários, mas também dos magistrados capazes de aplicar penas bárbaras (e mesmo capitais) por bagatelas, que agiam com total liberdade e impunidade, podendo, por exemplo, suspender o habeas corpus por decreto. O que não retira uma pinga do seu mérito. E isto a acontecer muitas décadas antes de Marx e Engels escreverem o seu tratado de ciência e economia política.
Peterloo é um filme que vive da palavra, da exaltação, ainda que esta esteja devidamente ancorado nesses ‘quadros vivos’ captados pela câmara rigorosa de Dick Pope. E que apesar das duas horas e meia de duração, não se sente o peso de um frame a mais. Apenas o imenso respeito pelos desfavorecidos.Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt.