“Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos: uma provocadora odisseia pelo absurdo humano
Este artigo pode conter spoilers.
Para o espectador atento ao panorama cinematográfico desde a última década é difícil evitar o nome de Yorgos Lanthimos. Da estreia do filme Canino (2009), retrato voyeurístico do dia-a-dia de jovens isolados do mundo externo, o modus operandi absurdista do autor grego havia sido descoberto. Na ingressão no cinema inglês, com A Lagosta (2015), tal única e transgressiva imagem adquiriu projeção até à tela do comum cinéfilo, vindo com sucessivos filmes a atingir novos picos em popularidade e aclamação. O seu mais recente trabalho, Pobres Criaturas (Poor Things), serve o derradeiro disparo e estrelato alvo.
Numa injeção de requintada vida sobre a sátira, um spin do conto do monstro de Frankenstein, de Mary Shelley, serve de palco para aquela que é das grandes películas de ficção modernas. Em simbiose com um artifício visual e sonoro ao nível do melhor que o cinema maximalista consegue prestar, a condição feminina e exploração da realidade encontram um odisseico retrato de histórica execução. Com alcance universal e poder cicatrizante, este é um filme cuja manufatura e subversão relembram e reforçam as virtudes e propósitos da sétima arte.
O pálido rosto de uma mulher, nas rédeas de uma ponte, contempla de modo suicida a sua prestes-a-ser campa. Somando a coragem, ela salta, azul veludo do seu vestido engolido pelas profundezas. As seguintes imagens cénicas, restritas na cor por um preto-e-branco de contraste, remontam para uma Londres vitoriana fictícia. Max McCandles (Ramy Youssef), um convencional estudante aspirante a medíocre médico, aceita servir de assistente o seu professor, Godwin “God” Baxter (Willem Dafoe), cirurgião cujo génio científico está circunscrito a uma infância de abuso. Ao entrar na loja de horrores que é o apartamento de God, entre bizarros experimentos como animais domésticos, Max avista a protagonista do filme, Bella Baxter (Emma Stone). Estonteado com a sua beleza mas perplexo com os maneirismos infantis, a apaixonada confusão do jovem atinge o apogeu quando recebe uma punhada na forma de cumprimento.
O assistente fica encarregue de monitorizar o progresso da sua peculiar tágide, desde as palavras que vai adicionando ao seu léxico ao crescimento do cabelo violeta escuro. A primeira descoberta digna de anotar, Bella mira em paralisado espanto o vasto horizonte diante do telhado do apartamento e, no momento, Max encontra uma cicatriz na traseira do seu pescoço. Na irritação das dúvidas, o jovem interroga o patrão. God cede de livre gosto paternalista, explanando que Bella era então a mulher suicida que abrira o filme, ressuscitada sim, mas com o cérebro da criança que trazia no seu ventre. Acusações de “monstro” sucedem. Entretanto, com uma insaciável vontade de explorar, Bella implora ao criador que a leve ao mundo fora dos muros do lar.
Uma viagem ao parque terminada em birra e anestesia forçada depois, Bella acorda com impulsos adultos a sobreporem-se, mãos nas partes íntimas a exploradora faz outra descoberta. Receoso com o arbítrio crescentemente livre, God aproveita a paixão amorosa de Max para propor o casamento. Bella nunca mais sair do apartamento fica como condição, o jovem cobarde aceita a prisão matrimonial. Por sua vez, na assinatura dos duvidosos papéis que acorrentam o futuro da mulher-criança, um autor perverso dá-se a conhecer. Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), advogado como passatempo, boémio como ofício, procura pela nova acompanhante, gratificação instantânea face à beleza que encontra, infantil inocência da vítima a servir apenas de incentivo. Com um toque grosseiro nas partes íntimas como introdução, Duncan sugere a Bella fugir da prisão numa viagem até Lisboa. Com os horizontes de novo despertos, a aventureira aceita. Resignando-se à perdição de controlo, em nome do rigor científico, God deixa a experiência querida partir. Vibrante cor preenche a tela.
Raras vezes o cinema reúne tal diverso e delicioso banquete sensorial. O esforço conjunto da produção cenográfica e efeitos especiais abastecem todo o mundo de uma estonteante estética surrealista retro-futurística. O tom cromático dourado e natureza urbana movimentada relembram Metropolis (1927), os horizontes e edifícios são dotados de uma detalhada teatralidade quase retirada de Os Sapatos Vermelhos (1948) e os céus ondeantes de cores melancólicas garantem ao ambiente uma qualidade pitoresca, de sonho, própria de Mishima (1985). A fotografia de cores com vibrante saturação e uma panóplia de lentes, ângulos e composições diferentes conforme o contexto, fomenta a extravagante bizarria. A cosmética e moda prestam metódicos toques sobre a credibilidade das personagens, desde as mutilações do abusado God ao cabelo e vestidos de Bella consoante o seu progressivo desenvolvimento e independência. A música com os seus guinchos agudos e ressonos graves de harpa, para além da novidade sonora, encaixa de modo nato o absurdismo vivaço da película enquanto densifica a sensação de surpresa dos seus eventos. Uma aplicação das ferramentas cinematográficas para além de notável.
Tal extravagante e impecável estilo conhece uma substância equivalente. Um aprendiz de Luis Buñuel, agora com Belle de Jour (1967) como clara referência, Lanthimos retoma a crítica social na forma de provocação irónica, típica do seu trabalho. Porém, aqui o cineasta aproveita a superior escala para colocar combustível na fogueira da subversão. Da sociedade machista, hipocrisia aristocrática dos costumes, cinismo cobarde, conformismo com miséria alheia, à religião empirista, o leque de alvos a queimar é vasto. Tal protesto é esfregado na cara do espectador na forma de comédia degradante sobre os infratores. Desconforto cómico o objetivo. Contudo, afastando-se da fria norma, a direção também vai injetando em escala crescente drama terno e otimismo à complexa confecção tonal, numa ode à mulher intelectual e emocional, ao idealismo na resolução dos males do mundo. O argumento adaptado de Tony McNamara resulta pela estrutura narrativa e o seu metódico malabarismo dos tópicos analisados, mais precisa caracterização com foco na unicidade e progresso da protagonista. Por fim, o expoente máximo da película megalómana, o elenco não podia ter atribuído mais marcante vida aos seus protagonistas. Do veterano Willem Dafoe ao renascido Mark Ruffalo, espontaneidade total no cerne dos papéis, credíveis em absoluto. Depois, o coração que bombeia todo o organismo, Emma Stone é intocável em tudo o que faz, sempre com um mistificante e hipnótico vigor excluído das escolas de atuação norte-americanas desde Gena Rowlands.
Não obstante o desgaste do espectador pela natureza extremada na exposição, Pobres Criaturas é dos grandes feitos maximalistas em cinema moderno. Numa elevação do potencial da crítica divertida no campo satírico, o filme serve como exemplo do poder artístico do formato cinematográfico. Da desconstrução da condição e aparelho humanos. Do estímulo intelectual capaz de provocar questões e reflexão internas, fomentar o debate público. Do corpus emocional e cicatrização do espírito do espectador.
Difícil projetar limites para a dupla de Yorgos Lanthimos e Emma Stone, nomes já eternizados nos registos da sétima arte apesar das curtas carreiras. Resta ao amante de cinema, aquando do emocionado silêncio nos créditos finais, a feliz gratidão por partilhar da existência temporal destas duas almas.