Por Este Rio Abaixo cruza o tradicional e o contemporâneo de forma eficaz
Ao ouvirmos “Barca”, de Pedro Mafama, há algo que nos soa familiar. Poderia estar a referir-me ao auto-tune que permeia o seu tom que nos alicia a embarcar, mas a cadência rítmica deste tema tem muito mais que se lhe diga. Revela um olhar atento sobre a rica herança musical portuguesa, evocando elementos do malhão e da chula e trazendo-os com força e alento renovados para o século XXI. É nesse cruzamento entre o tradicional e o contemporâneo que a música de Mafama persiste, e onde o artista encontrou o seu lugar.
Por Este Rio Abaixo foi o culminar de uma caminhada de autodescoberta para Pedro Mafama. Depois de apresentar uma fusão que bebia de géneros como o tarraxo e o trap nos seus dois primeiros EPs, o seu álbum de estreia assegura-nos que os seus objectivos são outros. Ao perceber que queria encontrar esta harmonia entre o imutável sagrado tesouro sonoro português e a cultura com que cresceu, Mafama descobriu a sua vocação. “Comecei a perceber que se eu queria mesmo homenagear a cultura popular que eu admirava, tinha de devolver a minha cultura popular”, disse-nos sobre este seu manifesto. Para quem o ouve, é claro este equilíbrio entre o tradicionalismo e o modernismo musical.
As provas estão à vista desde o primeiro momento, em que “Noite Escura” nos introduz a este mundo de forma absolutamente fenomenal. Há um negrume de homem do saco na entrega de Mafama, sedução assombrada de um pessimista que dança ao som de um pandeiro infernal. É esse o ponto de partida para um álbum sobre enfrentarmos os nossos demónios e seguir em frente. “Leva” é um clamar pelo hecatombe pessoal, uma reflexão adornada por cânticos guturais que assenta sob um costume algarvio, enquanto que na chorosa e intimamente bonita “Algo Para a Dor” imaginamos o autor a caminhar por uma cidade vazia, adornando o chão de lágrimas ao estilo de Hansel e Gretel, para nunca esquecer o caminho para a miséria.
A primeira parte é marcadamente derrotista, com vislumbres de optimismo em temas como a hedonista “Cidade Branca”, que, com a sua sonoridade mais arábica, é um convite para um brinde barulhento de copo cheio. Mas, em “Ribeira”, o álbum atinge o seu ponto de viragem: o “pirata do mar” insurge-se contra a apatia e recusa-se a aceitar a derrota na vida, culminando na energética “Contra a Maré”. Esta música de combate com um hook dançável fala-nos sobre sermos a melhor versão de nós mesmos possível, remando contra tudo e todos. “Até virar o barco eu estou aqui para lutar”, ouvimos Mafama cantar resoluto em falsete. Ou, como sempre se disse: “Até ao lavar dos cestos é vindima”.
Pegando nessa homenagem ao tradicional, foquemo-nos naquilo que menos folclore tem, o auto-tune. Ao percebermos o propósito da música de Mafama, percebemos também o uso deste efeito. É uma ferramenta sonora cada vez mais presente na música contemporânea e, ainda que actualmente seja muitas vezes usado até à exaustão, é possível inovar sem atabalhoar os temas. Ouvimos isso mesmo nos gritos exasperados de “Borboletas da Noite”, no trautear profético da fatídica “Estaleiro” ou nos caricatos trejeitos vocais de “Que o Céu Não Caia”, que rivalizam com as virtuosas melodias de guitarra portuguesa. Há uma clara procura de uma ponte entre dois mundos que nunca se cruzaram desta forma, e Pedro Mafama é o arquitecto responsável por esse feito.
No entanto, não está sozinho nesta demanda, contando com o apoio indispensável de PEDRO na produção instrumental. Esta dupla — apoiada por nomes como Branko, Franklin Beats ou Beatoven — prova que a união faz a força e mostra uma sinergia entre dois dos mais interessantes artistas do panorama musical português. Por Este Rio Abaixo não é um projecto perfeito — o álbum perde um bocado de gás ao longo da sua duração e a sua força conceptual esmorece com o seu decorrer. Mas é uma potente estreia para um artista que, qual marinheiro outrora perdido em alto mar, encontrou agora a sua Estrela Polar.