Precisa de saco?
Qualquer adulto já se encontra familiarizado com a atividade excruciante que é fazer compras num supermercado. Estamos presos durante uma hora num ambiente fechado e hostil, ficamos demasiado tempo na fila para o talho, nunca mais conseguimos encontrar aquela marca específica de bolachas de chocolate e quando finalmente chegamos à caixa deparamo-nos com uma fila extensa, prolongando ainda mais a nossa estadia. Até que enfim, aparecemos, completamente exaustos, diante do empregado da caixa e somos bombardeados com mil e uma perguntas. Eu próprio trabalho numa caixa de supermercado há mais de um ano, e por experiência própria aquilo que provoca a maior perplexidade sucede-se na pergunta: «Precisa de saco?», se a resposta for negativa podemos esquecer o âmbito deste texto por completo. No entanto, se o cliente de facto precisar de comprar um saco emerge um dilema complicadíssimo e constrangedor: «Saco de papel ou plástico?».
“Parece-me que a vida quotidiana, apesar da sua superficialidade, apresenta no seu trajeto habitual alguns casos peculiares de tal modo que não há nada mais suscetível de investigação do que aquilo que parece rotineiro e mundano.”
Neste momento é que se manifestam os problemas, por um lado observamos clientes que desprezam absolutamente os sacos de papel afirmando a sua inutilidade. Por outro lado, temos clientes “envergonhados” que apesar de escolherem o saco de plástico mostram-se conscientes perante o efeito ecológico desta matéria-prima e demonstram uma certa culpa. Normalmente a decisão vem sempre precedida com alguma forma de explicação não-solicitada tais como: “Não aguenta o peso”, “Se ficar molhado, vai romper”, “Posso usar o saco de plástico para reciclagem”. Na escola primária aprendemos a obrigação de justificar sempre a nossa resposta, e aqui não é exceção certamente. A questão não se trata de determinar se o consumidor está certo ou errado, mas sim o motivo pelo qual uma simples pergunta atira o indivíduo para um abismo. Até em alguns casos, quando o cliente escolhe o saco de plástico e este já vem aberto previamente ou com um defeito mínimo, ouvem-se protestos e exige-se a troca por um saco intacto e novinho em folha. Nestes tempos em que o consumidor é obrigado a substituir o seu telemóvel a cada 2 anos, a sua televisão a cada 5 anos e o seu frigorífico a cada 10 anos; o cliente vê-se coagido a depositar as suas esperanças no imenso cemitério de sacos arrumado na sua despensa, que para a felicidade do consumidor permanecerá ileso para além do seu tempo de vida.
“Parece bastante mais coerente considerarmos esta renúncia num contexto de desaprovação espontânea dos discursos que centram as alterações climáticas na responsabilidade individual.”
Mas porque raio haveria eu de me preocupar com um assunto tão irrelevante como sacos de papel? Para me poupar de críticas e de modo a parecer que não estou apenas a desperdiçar o tempo do leitor, valerá a pena citar uma frase de Aristóteles (para que o leitor sinta que pelo menos aprendeu alguma coisa ao ler este texto): «As revoltas nascem de minudências mas não visam minudências: [visam] sempre grandes objetivos». Parece-me que a vida quotidiana, apesar da sua superficialidade, apresenta no seu trajeto habitual alguns casos peculiares de tal modo que não há nada mais suscetível de investigação do que aquilo que parece rotineiro e mundano. Ao debruçarmo-nos sobre o tema da rejeição dos sacos de papel não podemos simplesmente encostar tal facto aos pormenores relacionados com a própria composição do saco. Mais pelo contrário, parece bastante mais coerente considerarmos esta renúncia num contexto de desaprovação espontânea dos discursos que centram as alterações climáticas na responsabilidade individual. Parece persistir uma certeza inconsciente e ainda muito enterrada nas mentes dos consumidores de que é possível fazer muito mais pelo meio ambiente, sem que implique necessariamente a compra de um saco de papel. Ao fim e ao cabo, estas “mini revoltas” não estão propriamente distantes daquelas que têm sido transmitidas em horário nobre na televisão. Apesar de passarem muito mais despercebidas no decurso normal do quotidiano, a argumentação intensa e dolorosa do consumidor pela inutilidade dos sacos de papel partilha do mesmo carácter “inconveniente e chato” que os bloqueios de estrada e ataques de tinta. Atrever-me-ia a ir mais longe também e afirmar que o decurso normal do quotidiano demonstra-se muito mais inconveniente do que qualquer forma da sua interrupção.
É verdade que poderia ter-me limitado a citar a conhecida frase: “Ecologia sem luta de classes é jardinagem.” Por duas razões que não o fiz: a primeira centra-se obviamente na minha tentativa de aborrecer ao máximo o leitor; a segunda deve-se ao facto da frase em questão estar incapacitada de encapsular aquilo que está em jogo. Se a ecologia sem luta de classes é jardinagem, a luta de classes sem ecologia seria provavelmente uma fé prometeica no desenvolvimento tecnológico ininterrupto com o objetivo final de emancipar a humanidade. Isto é, tal convicção traduz-se na vida ocidental através do alargamento do poder de compra (novos telemóveis, televisões, frigoríficos, etc) que gera um sentimento de pura soberania sobre as circunstâncias da vida quotidiana. Por outras palavras, providencia conforto e bem-estar, que estão necessariamente ancorados na miséria e exploração de um determinado substrato da população mundial. Se reconhecermos o carácter infinitamente destrutivo do atual modo de produção baseado justamente na dominação de uma classe por outra classe a luta de classes e a ecologia não podem ser âmbitos meramente separados.
Em 2021, devido às alterações climáticas, 22 milhões de pessoas viram-se obrigadas a abandonar as suas casas, e isto, entre outros casos, obriga-nos a repensar seriamente o papel das alterações climáticas na crescente pauperização de certas camadas populacionais e, acima de tudo, na configuração geral das classes. Se isto não é um problema para o futuro, então o que é?
Por alguma razão tornou-se apelativo às grandes empresas a absorção das lutas ecológicas, vemos cada vez mais fenómenos de “greenwashing”. Mas eu também não me queixo e por agora obedeço às ordens do meu patrão, sugerindo sacos de papel aos clientes que atendo diariamente, mas mantendo sempre a convicção de que um dia poderemos exigir por algo muito melhor. Apesar de corresponder a uma cedência ligeiramente satisfatória por parte das empresas, demonstra-se limitada e insuficiente para aqueles inquietos com o atual rumo de auto-destruição do planeta. Se não existissem alternativas ao atual estado de coisas então provavelmente deixaria de ver a minha vida como desejável, mas para o meu regozijo e sanidade mental, disponho da crença inabalável de que não é só possível, como também é obrigatório lutarmos por um mundo melhor e qualitativamente diferente. A questão que se coloca agora é se estamos dispostos a ir “all-in” com as nossas fichas de poker ou se é muito mais conveniente mantermos relações de compromisso com a iminente barbárie.