Primavera Sound (dia 1): a intensidade de Kendrick Lamar, The Comet is Coming e da chuva
Em dia de regresso de Primavera Sound no Porto, São Pedro decidiu desforrar-se do clima perfeito que tivemos na edição passada e trazer-nos a chuva que marcou anos anteriores (ver Nick Cave à chuva em 2018 passou-nos pela cabeça). Apesar disso, o festival conseguiu reter a sua aura e entregar concertos que, apesar do alinhamento errático, mantiveram o público cativado e atento. As mudanças no recinto provaram ser eficientes em termos de gestão de espaço, evitando aglomerações caóticas como aconteceram na edição de 2022.
A nossa chegada ao festival fez-se ao som de Beatriz Pessoa. A jovem artista portuguesa editou este ano o seu segundo álbum, PRAZER PRAZER, no qual trabalhou com o cantautor brasileiro Marcelo Camelo. A sua música já tinha claras referências nos géneros musicais do outro lado do Atlântico, mas agora essa influência é incontornável. A ginga da bossa nova é notória em canções como “Dona da Verdade” ou “Passou Pequeno”, que embalaram o público ao longo de um concerto agradável, mas um pouco deslocado do ambiente do festival. Pelo meio, houve tempo para uma homenagem a Rita Lee, com uma versão de “Lança Perfume”.
Logo a seguir, os ânimos exaltaram-se com um concerto que só teria beneficiado de um horário mais tardio: o da britânica Georgia. Depois de várias tentativas de a receber ao vivo em Portugal — considerando os anos de pandemia e um cancelamento em 2022 — finalmente recebemos a sua marca de synthpop eufórico. Socorrendo-se de faixas pré-gravadas, Georgia focou-se mais no ritmo, adicionando pujança às suas batidas com um kit de bateria que a mantinha em pé e a forçava a dançar, impelindo o público mais energético a fazê-lo com ela.
Tirando o bonito momento em que se sentou ao teclado para dedicar uma balada a uma amiga que faleceu há uma semana, as octanas estiveram sempre em alta. “About Work the Dancefloor” ou o novo single “It’s Euphoric” (produzido por Rostam, ex-Vampire Weekend) foram dois dos momentos altos de um concerto que culminou na canção que lhe trouxe maior fama: uma cover de “Running Up That Hill”, canção de Kate Bush que tem tido um comeback meteórico em anos recentes.
Depois, Alison Goldfrapp presenteou-nos com outra marca de synthpop também proveniente da Inglaterra. Metade do duo Goldfrapp, a artista apresentou a solo alguns dos temas do seu álbum de estreia, The Love Invention, e, inevitavelmente, alguns dos grandes hits da sua banda. Contrastando com a euforia de Georgia, a postura de Alison foi glacial e sedutora, deixando as batidas mecânicas e baixo que ressoava nas nossas caixas torácicas fazer a maior parte do trabalho.
O alinhamento foi ideal para demonstrar as influências do seu disco a solo, intercalando as canções do mesmo com três diferentes fases de Goldfrapp: os sintetizadores látex de Black Cherry (com “Train” e “Strict Machine”, o glamoroso e reluzente Supernatural (“Ooh La La” e “Ride a White Horse”, em versão estendida) e o mais efusivo e colorido Head First (“Rocket”). Apesar de o público estar mais focado nos rappers que se apresentariam no mesmo palco mais tarde, Alison Goldfrapp conseguiu manter o interesse ao longo de um concerto francamente dançável e bom.
Entretanto, apresentou-se Holly Humberstone no palco Vodafone, o novo nome para o famoso palco da colina do Parque da Cidade. Tendo dezenas de milhões de reproduções no Spotify, assumimos que a sua música esteja a tocar bastantes pessoas — até porque realmente havia fãs dedicados na frente do palco — mas a verdade é que não vemos interesse na música que a artista (também britânica, num claro domínio dessa nacionalidade no alinhamento do dia) faz.
Ocasionalmente lembrando Avril Lavigne, Olivia Rodrigo ou, como um colega apontou, Taylor Swift, parece fazer parte do movimento de renascimento das cantoras-compositoras do início dos anos 2000 e, até certo ponto, do pop-punk. No entanto, até que ponto é que esse estilo de música é tão relevante hoje em dia? Existem tantas mulheres a fazer música melhor, mais interessante e mais transgressiva, que esta foi uma pobre aposta do festival em música feita com guitarras (um dos únicos dois concertos do dia que incluiu esse instrumento).
Já no horário nobre do festival, voltámos ao palco Porto (o novo palco principal) para ver um dos nomes mais aguardados da noite: Baby Keem. O rapper americano, primo de Kendrick Lamar, foi protagonista de um set focado nas batidas do trap, que usou e abusou das técnicas usadas por tantos outros artistas do mesmo estilo. Até certo ponto, o concerto parecia mais uma listening party que o rapper fez com os fãs, confiando demasiado nos vocais pré-gravados e adicionando alguns ad-libs e partes cantadas ao vivo. No entanto, a sua música tem alguma variabilidade de ritmos e melodias, bem-vinda numa paisagem musical já um pouco saturada.
As canções pequenas e o ritmo imparável funcionaram a seu favor, aumentando a energia de um público pronto para explodir a cada drop e cada explosão dos canhões de fumo. E realmente as canções mais pujantes foram mais interessantes, particularmente o duo final de “Vent” (“Have you ever been punched in your mothafuckin’ face?”) e “Family Ties”, sem a esperada aparição de Kendrick, o cabeça-de-cartaz da noite, que escolheu guardar-se para o seu próprio espectáculo.
Até então a chuva havia dado tréguas, mas os deuses decidiram manifestar-se em força durante o concerto de The Comet is Coming. Assumimos que o tenham feito por terem ficado agradados com o concerto, que não se desviou muito daquilo que já havíamos visto no ano passado em Paredes de Coura e adorado. Só que neste a experiência foi mais transcendental, por causa da dança da chuva que se instaurou na encosta do Parque da Cidade.
O público não arredou pé, motivado pelos ritmos fortes e jazz progressivo do trio de Shabaka Hutchings, Danalogue e Betamax. Enquanto que os sintetizadores cavernosos e ritmos frenéticos nos mantêm ancorados à terra, o saxofone levou-nos para um lugar mais espiritual ou cósmico, numa reminiscência do místico nome da banda. Por mais que tenhamos visto a banda ao vivo há relativamente pouco tempo, continua a ser absolutamente vital fazê-lo, cimentando a sua reputação como um dos melhores espectáculos musicais a que se pode assistir hoje em dia.
Depois de atravessar o pequeno dilúvio que se concentrou na praça de alimentação do festival, colocámo-nos a postos para assistir ao clímax da noite: o concerto de Kendrick Lamar, um dos maiores rappers de sempre. Ao contrário dos anteriores concertos do astro em Portugal, desta vez pisou o palco sem a companhia de uma banda, salientando ainda mais a diferença da qualidade do seu concerto para os de outros rappers que se apresentam da mesma forma, como foi o caso do próprio Baby Keem. Sem confiar em vocais pré-gravados, Kendrick atirou-se às suas barras destemidamente, sem perder o flow que o caracteriza.
Para além de o som estar ligeiramente mais baixo do que seria ideal, o concerto foi extraordinário. Entre canções, o rapper ficava estático no meio do palco, dando espaço ao público para respirar. É que o rap de Kendrick Lamar é mais do que uma simples fonte de entretenimento, é música para pensar e reflectir sobre nós e a sociedade. Cada pausa acrescentava um peso particular a cada música, assim como cada interacção com o público era ponderada. Ao longo de todo o espectáculo, a sua postura transmitiu a larga experiência que a sua galardoada e variada carreira lhe trouxe, assim como uma modesta superioridade de quem sabe encontrar-se no topo, mas não se gaba disso.
O foco do concerto foi o mais recente Mr. Morale & the Big Steppers, da qual destacamos a bonita melodia de “Count Me Out”, a energética “N95” e o final de “Savior”, em que assume não ser o salvador de ninguém, por mais que o queiram incumbir desse papel. No entanto, passou ainda pelo funk de “King Kunta”, a explosão trap de “DNA.” e o bravado de “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, entre muitas outras canções que não deixaram de arrancar grandes aplausos do público embevecido. Como esperado, no final trouxe o primo Baby Keem ao palco para uma actuação conjunta, enaltecendo a importância que a família tem para si.
Entretanto, molhados até às orelhas, decidimos passar a actuação de ¥///0 $#£[[ \/\/&$ #£>3, mais conhecidos como Two Shell. A sua electrónica variada e bastante online terá de ficar para outra ocasião. Hoje o Primavera Sound regressa ao Parque da Cidade com concertos de Rosalía, Bad Religion, The Mars Volta, Fred Again.., Japanese Breakfast e Alvvays, entre muitos outros.
Kendrick Lamar e Baby Keem não permitiram fotografias nos seus espectáculos.