Primavera Sound (dia 3): música e activismo de mãos dadas
Em condições normais, por esta altura do Primavera Sound Porto já estaríamos a escrever um texto de conclusão. Mas este ano a festa fez-se mais longa, para comemorar os 10 anos do festival em solo português. Neste terceiro dia, notou-se uma menor afluência de público, talvez menos motivados pelos cabeças-de-cartaz Pet Shop Boys que pelos dos outros dias. Apesar disso, foi mais uma vez um dia cheio de óptimos concertos.
Depois de Meta_ e Margarida Campelo terem inaugurado os palcos Vodafone e Plenitude, respectivamente, em língua portuguesa, o projecto conjunto de Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, Deixem o Pimba em Paz, prosseguiu nessa onda. Afinal, é mês de Santos Populares, não é verdade? É por isso que chegamos ao seu concerto ao som de “Comunhão de Bens”, canção de Ágata, tocada com o tom jazzy e de big band a que o projecto tem habituado plateias por todo o país. Claro que para o público português este projecto tem maior relevância, porque mesmo que muita gente não admita, o malogrado pimba é realmente acarinhado pelo público como um marco cultural.
No entanto, as reconversões deste projecto vão além do kitsch, demonstrando verdadeira qualidade musical. Por exemplo, “Já Não Sou Bebé”, canção de Romana, começou de forma tão atmosférica que parecia o início de uma canção dos Radiohead. Não deixa de ter graça ouvir uma versão baladeira d’”A Garagem da Vizinha” ou uma versão caixinha de música d’”A Cabritinha”, também. Para o final, a rapsódia de “Pito Mau”, “A Padaria” e “Bichos da Fazenda” deu uma oportunidade a Manuela Azevedo de se soltar, cantando freneticamente sobre “a porca da tua irmã” e o “porco do teu cunhado”, chegando a um clímax rítmico que não deixou ninguém indiferente.
Depois, para algo completamente diferente, pudemos sentar-nos na relva de novo (sem chuva!) para ouvir o concerto de Wednesday. Próximos do grunge, tocaram canções abrasivas e pejadas de ruído. A vocalista Karly Hartzmann aplica umas afectações à sua voz que se encontram algures entre o rock mais pesado e o country, tanto que até nos perguntam se gostamos de country, antes de se atirarem a uma versão de “She’s Actin’ Single (I’m Drinking Doubles)”, de Gary Stewart.
Essas afectações vocais apontam à vulnerabilidade, mas, talvez pelo facto de estarem há sete semanas seguidas em tour e estarem bastante cansados, fazem as canções soar pouco genuínas, um pouco como se os gritos fossem meramente performativos. Apesar disso, Karly interagiu de forma bonita com o público e elogiou o recinto, dizendo que provavelmente seria onde daria um concerto nos seus sonhos. Será que éramos todos produtos da sua imaginação?
Mais uma vez, para algo quase no espectro oposto de géneros musicais, fomos ver o concerto de Pusha T, logo de seguida. O rapper apresentou-se acompanhado do seu hype man dedicado, sempre pronto a puxar por nós. No entanto, não foi preciso muito esforço, pois o público já estava mais que convencido por estar à frente do King Push. Aliás, ao longo do festival foi notório que o público dos concertos de rap tem uma dedicação e energia acima do normal. No início, Pusha manteve-se calado, como se estivesse a ver se o público era merecedor do seu melhor, mas pareceu ter ficado genuinamente impressionado com o público do Porto. A certa altura, chega a dizer-nos que só nos dá a energia que nós lhe demos.
Passando por canções de Daytona, como “If You Know You Know”, e até por canções dos seus primórdios (“quem é fã desde o dia 1?”), Pusha T esteve presente de corpo e alma em palco, fazendo o único encore que vimos até agora no festival. Esse encore trouxe as maiores descargas de energia, com o rapper a incentivar o público a fazer moches ao som das últimas canções, nas quais se incluiu “Runaway”, de Kanye West.
Continuando na vibe do hip hop, os NxWorries apresentaram-se a seguir no Palco Vodafone, com uma energia mais lenta e sensual. A música do duo é essencialmente sobre destilar energia sexual, usando para isso o poder do funk e de ritmos que se movem como melaço, como por exemplo nos mais recentes singles “Daydreaming” e “Where I Go”. Por vezes, Paak desaparecia de palco por uns minutos, deixando o produtor e beatmaker Knxwledge a fazer misturas inusitadas entre funk e canções como “Wonderwall”, “I Wanna Dance With Somebody” e “Again”, de Lenny Kravitz. A certa altura, depois de um desses interlúdios, Anderson regressa ao palco com uma fileira de cerca de trinta mulheres, chamando uma a uma para dançar com ele. Se ele pudesse, acreditamos que teria chamado toda a gente do público para subir ao palco e sentir o groove.
Entretanto, os Pet Shop Boys convidaram o público que se aglomerou em frente ao palco Porto para uma terra de sonhos. O vocalista Neil Tennant falou-nos como se nos estivesse a ler a introdução de um livro de contos, pejado de referências às suas canções mais emblemáticas. Não tivemos opção senão seguir com o duo nessa jornada musicada por um pop electrónico retro-futurista e de melodias esperançosas. Fomos passando por diversos sucessos da larga carreira dos Pet Shop Boys, que têm lançado álbuns continuamente desde 1986.
Logo de início, ouvimos “Suburbia” e “Opportunities (Let’s Make Lots of Money)”, mas mesmo as canções que não reconhecemos soam a autênticos clássicos. Por mais que o som e conceito por detrás das canções sejam algo datados, são executadas de forma tão apaixonante e dramática que nos transportam para a época em que foram feitas. Apesar de o nome dos Pet Shop Boys não ter atraído tanto público como esperado, principalmente quando comparado com os cabeças-de-cartaz dos dias anteriores (Kendrick e Rosalía), deram um concerto animadíssimo e de bastante qualidade, que esperamos ter colocado o seu nome na cabeça de quem os desconhecia.
Apesar de St. Vincent se encontrar numa das fases menos interessantes da sua carreira — o retro rock do mais recente Daddy’s Home — temos de admitir que as canções funcionam bastante bem ao vivo. Como sempre, Annie Clark encarnou a sua personagem, desta feita menos robótica que na sua fase electrónica dos álbuns St. Vincent (2014) e Masseduction (2017), e deu ao público um concerto apaixonante e, como sempre, tecnicamente impecável. Guitarrista por excelência, é difícil não ficar impressionado com os seus dotes em canções como “Birth in Reverse”, “Pay Your Way in Pain” ou “Marrow”. Mas nem por isso se fecha na sua bolha musical. Sabendo ser amada pelos seus fãs dedicados, desceu até ao público para cantar a encantatória “New York”, partilhando um momento emotivo com eles.
Não se resignando apenas às canções mais recentes, fez um apanhado da sua carreira, chegando a todos os seus álbuns. Dois dos melhores momentos vieram pela mão daquele que é possivelmente o seu melhor álbum, Strange Mercy. “Cheerleader”, canção dedicada a todas as mulheres do festival, e “Year of the Tiger” não perderam nenhuma da sua potência característica. A penúltima canção foi uma “Your Lips Are Red” carregada de negrume, uma das canções de Marry Me que melhor se traduz no contexto actual da carreira de St. Vincent. O final, reservado para “Melting of the Sun”, cimentou o estatuto da canção como novo estandarte dos alinhamentos da artista. Cantada por público e banda a uma só voz, foi um momento de comunhão verdadeiramente tocante.
Outro dos momentos mais aguardados do festival foi o regresso de Le Tigre, que se reuniram para a sua primeira tour em dezoito anos. O palco Super Bock encheu-se para ouvir o electroclash aguerrido da banda nova-iorquina, que capturou a energia do virar do milénio em batidas rápidas e teclas e baixo desorientantes. A questão era se se continuaria a traduzir bem numa apresentação ao vivo, mas a verdade é que, ao final de todos estes anos, a energia crua da sua música continua intacta.
Para além de impelirem as pessoas a expurgar as ansiedades e problemas do mundo através da dança, a mensagem da banda continua pejada de activismo, como sempre. Antes de “Keep on Livin’”, a vocalista Kathleen Hanna estendeu o seu apoio a todas as pessoas sobreviventes de abusos sexuais, tal como ela. “Há dias nos quais não quero nem sair da cama”, disse, antes de deixar uma mensagem de força para quem passou pelo mesmo, instando-as a continuar a lutar sempre.
Noutro momento, incentivou todos os artistas a continuarem a propagar a sua arte. Contou-nos como, ao longo da carreira das Le Tigre, foram reduzidas a meras cantoras de karaoke pela indústria, quando na verdade eram elas que faziam todas as suas músicas, vídeos, coreografias e imagética. Talvez por isso tivessem feito questão de ter as letras a passar no ecrã por trás de si. Talvez fosse apenas para ajudar o público a relembrar-se das suas músicas. Certo é que toda a gente se relembrou e matou as saudades, particularmente quando soou a última canção, “Deceptacon”, mais um êxito recente do TikTok e que as apresentou a um público mais amplo.
Entretanto assistimos a parte do espectáculo de Tokischa, a rapper dominicana que ascendeu a fama global graças às colaborações com Rosalía (“Linda” e “LA COMBI VERSACE”, que não deixou de apresentar no concerto). No início, assistimos a uma mensagem de Tokischa, apresentando-se como presidenta do partido Popola, um partido para todas as malucas que apela ao amor como a força maior, incentivando as pessoas a amar e a expressarem-se como bem entenderem. Aliás, a carga política sentiu-se ao longo do concerto, com coreografias e letras que usam a liberdade e revolução sexual como objecto de luta contra a repressão. Para além de tudo isso, foi ainda um espectáculo divertidíssimo. Depois de Le Tigre, foi óptimo ver outra artista feminina a usar a sua plataforma para passar uma mensagem de progresso.
Para terminar o nosso terceiro dia de festival, ainda vimos o concerto de Darkside. Depois de em 2014 terem dado um dos melhores concertos do festival (e de sempre, talvez), a expectativa estava alta. Dave Harrington e Nicolas Jaar (quase irreconhecível na sua indumentária formal) fizeram-se acompanhar de um baterista para um concerto que teve a pompa de um evento meteorológico ou geológico raro. As canções cresciam com a paciência de um acumular de tensão tectónica, eventualmente desembocando em ritmos rápidos. Mesmo não tendo a aura misteriosa da última vez, foi um concerto muito bom de qualquer forma, um em que a música parecia transcender o trabalho da banda. Como se a música simplesmente estivesse a acontecer naturalmente e eles tentassem usar os seus instrumentos como veículo para a passar ao público.
Hoje há mais concertos a ver no Parque da Cidade. O último dia de Primavera Sound Porto 2023 contará com artistas como Blur, Halsey, New Order, Yves Tumor, Marina Herlop, Yard Act, Daphni, entre muitos outros.