Qual o futuro da mobilidade?
Desde sempre que a evolução dos povos progride de mão dada com o desenvolvimento da mobilidade e com as novas formas de transporte. Isto reflete a necessidade do ser humano, enquanto ser senciente, inteligente e social, de se deslocar. Mesmo com a passagem do nomadismo para o sedentarismo, o imperativo de nos movimentarmos prevaleceu; o que mudou foi ter-se concretizado a vontade de criar a noção de que um determinado espaço é nosso e nele temos soberania plena — ou seja, deu-se a origem da conceptualização da propriedade privada. No entanto, as relações sociais, apesar do individualismo inerente às novas dinâmicas, não foram totalmente quebradas, até pela inevitabilidade da carência do trabalho mal pago para produzir e acumular capital. Portanto, a origem da propriedade privada não abalou a necessidade de o Homem precisar de se deslocar, mas sim individualizou-a.
“Quando pensamos nos transportes e políticas para a mobilidade não podemos descartar a sua origem e em como os transportes coletivos foram amassados pelo “American Dream”. Um futuro mais justo e democrático tem que incluir políticas concretas e eficazes de transportes, numa perspetiva de coesão territorial e de desmantelamento da elitização da mobilidade.”
O capitalismo, mesmo antes de alcançar o seu expoente máximo de exploração e acumulação, potenciou a criação e a consolidação do transporte de uso individual. Precedentemente ao automóvel como hoje o conhecemos, os veículos de tração leve e pesada, serviam os agricultores, não apenas no seu trabalho no campo, mas também para o transporte de mercadorias. Os veículos de tração pesada, em particular, otimizaram e aumentaram a produção agrícola e também diminuíram distâncias temporais — embora muito longe da distância/tempo da atualidade — o que era sinónimo de riqueza e propriedade. A Era do Fordismo veio democratizar o automóvel para uso individual, através do processo produtivo em massa, onde todos poderiam ter o seu carro a um preço relativamente acessível. No entanto, esta democratização, como nos pretende vender o grande capital, é não mais que um normalizar do individualismo e da promoção da alienação da classe trabalhadora. O estímulo neoliberal é um foguete de endividamento ao povo e o início da destruição do processo de criação de uma sociedade transformadora, assim como foi a génese da crise climática que hoje vivemos.
“A origem da propriedade privada não abalou a necessidade de o Homem precisar de se deslocar, mas sim individualizou-a.”
Quando pensamos nos transportes e políticas para a mobilidade não podemos descartar a sua origem e em como os transportes coletivos foram amassados pelo “American Dream”. Um futuro mais justo e democrático tem que incluir políticas concretas e eficazes de transportes, numa perspetiva de coesão territorial e de desmantelamento da elitização da mobilidade. A repartição modal em Portugal, por exemplo, é das mais desequilibradas da Europa, sendo que até, dados da Comissão Europeia — em 2019 — exibiram o automóvel privado como o meio de transporte mais utilizado no nosso país. Os transportes coletivos, embora pobres em infraestruturas e limitados a nível de horários e na área abrangida, são, ainda assim, o companheiro fiel de quem não tem a possibilidade económica de ter um automóvel privado e precisa de se deslocar para o seu trabalho ou escola. É também, nas grandes cidades, que a rede de transportes coletiva se intensifica, fomentando um desequilíbrio regional e acentuando as desigualdades centro/periferia. As discrepâncias são ainda mais gritantes quando comparamos as duas grandes áreas metropolitanas com o interior de Portugal.
O sistema económico que criou estas desigualdades e normalizou o individualismo é o mesmo que nós temos de combater para construirmos um mundo melhor. Devemos afastar a mobilidade individualista e pensar na mobilidade como um motor para o desenvolvimento de uma sociedade mais cooperativa, justa e sustentável. É necessário adaptarmos os nossos modos de transporte à atualidade, renovando e ampliando as frotas, com vista a atingir a neutralidade carbónica o mais rápido possível. É fundamental a integração modal e adaptação dos horários e dos custos entre todos os meios de transportes. Nas áreas metropolitanas, a expansão das linhas de metro, assim como a melhoria das infraestruturas já existentes, são medidas necessárias se queremos tornar estes meios de transporte mais atrativos e mais funcionais. É preciso também garantir que a coesão territorial seja alcançada e a aposta na ferrovia pode ser a solução para uma mobilidade inter-regional sustentável e mais rápida. É para isso necessário investimento público na ferrovia nacional com o objetivo de requalificar integralmente a Rede Ferroviária Nacional e reforçar e estender a Rede a territórios que tenham sido esquecidos. É também crucial reequilibrar a Rede e a conexão da mesma com outros modos de transportes — a intermodalidade.
“O sistema económico que criou estas desigualdades e normalizou o individualismo é o mesmo que nós temos de combater para construirmos um mundo melhor. Devemos afastar a mobilidade individualista e pensar na mobilidade como um motor para o desenvolvimento de uma sociedade mais cooperativa, justa e sustentável.”
O debate sobre os transportes e a mobilidade que queremos é também um debate ideológico. A liberalização do carro é exibida como liberdade de escolha, excluindo quem não tem essa liberdade de escolha por impedimentos económicos, assim como o greenwashing das marcas pretende iludir o consumidor com a falsa preocupação ambiental. É um debate sobre em que mundo queremos viver: se pretendemos ficar no marasmo do cada um por si ou iremos construir uma verdadeira alternativa em comunidade.
O caminho para a transição energética e por uma mobilidade coletiva faz-se com um espírito revolucionário bem aceso, uma vez que a necessidade é urgente e a solução tem que ser radical.
Crónica de António Soares
Estudante universitário e ativista estudantil.