Quando a figura de estilo bate à porta
Nos dias de hoje não é muito discutível sermos uma das gerações que mais lê, todos os dias. Quando falamos em ler não estamos a falar do que se lê, efectivamente, e muito menos estamos a falar da qualidade (sempre subjectiva) do que é lido. No entanto, assim que entramos nesta última questão, facilmente vemos que lermos muito (falo sempre no geral e na globalidade dos casos) não é sinónimo de lermos bem, originando então um analfabetismo funcional, resultante de uma cada vez maior dificuldade em ir além de uma literalidade interpretativa do conteúdo que nos aparece diante dos olhos.
Lemos “por alto” o que aparece no nosso feed de notícias do Facebook, lemos as descrições de posts de Instagram e até lemos os títulos das notícias, as capas dos jornais/revistas ou o rodapé dos momentos noticiosos nas televisões. O problema? O problema é que nos ficamos por aí, e tudo o que aí vem escrito está brutalmente simplificado até à última letra (reforço, “letra” e não “palavra”) de forma a que o nosso cérebro não tenha que perder muito tempo a processar a informação lá contida e assim prender de imediato a nossa atenção ou seguir para uma próxima. Muitas das vezes passamos apenas os olhos pelas palavras sem sequer ler. “Tem uma foto agradável? Like. Tem um vídeo giro? Like. Tem muito conteúdo escrito e concordei com as primeiras palavras? Like.” É, portanto, uma leitura subentendida que muitas das vezes não corresponde à realidade.
Esse excesso de estímulos, de diversificação da forma de conteúdos que nos aparecem e de ânsia por informações novas levou a que tivéssemos o cérebro altamente viciado nessa constante busca por algo que é sempre insuficiente e que, ainda assim, nunca se esgota, prejudicando gravemente a nossa capacidade de manter um foco atencional durante muito tempo. Com efeito, este tipo de atenção é então uma hiperatenção, como refere o filósofo Byung-Chul Han no seu livro “A Sociedade do Cansaço”. Trata-se de um tipo de atenção dispersa, cujo foco muda bruscamente, respondendo aos vários tipos de estímulos exteriores com que minamos o nosso cérebro habitualmente.
O problema é que para corresponder aos utilizadores e leitores de hoje, todos esses meios informativos e possuidores de material de leitura também se adaptaram à mensagem e tipo de conteúdo que querem passar para – lá está – nos prender a atenção. O Twitter e o Instagram têm limite de caracteres, o Facebook diminui o alcance de posts com muito texto e todos esses meios privilegiam já uma mensagem que é curta ou, se possível, noutros formatos como imagem ou vídeo – algo imediato. Lutamos em várias frentes e as séries e filmes, se por um lado são excelentes formas de ler conteúdo de qualidade nestes formatos, são em larga escala também resultado e produto dos mesmos pela forma como são recepcionadas ou as queremos consumir. Privilegia-se em massa as produções fáceis, com acção, corridas e/ou muitas vezes pouco cuidadas nos diálogos e sem tempos mortos. O resto é já “uma seca”. A juntar a isso, e fruto da familiaridade e proximidade com a língua inglesa que acontece desde tenra idade, cada vez precisamos menos das legendas, perdendo – ao mesmo tempo que ganhamos de um lado – proximidade e hábitos com a nossa própria língua.
A falta de capacidade interpretativa que podemos constatar dia após dia nas imensas caixas de comentários a notícias são apenas alguns e boçais exemplos de todo o ambiente que é gerado em toda a nossa volta. Muitos desses comentários surgem como reacção imediata a títulos que minimizam ou persistem em sensacionalizar um conteúdo que não corresponde totalmente ao mencionado no próprio título ou que contém excepções importantes. Em comum está algo inerente a todas as redes e que os seus hábitos de consumo foram criando: uma cada vez maior falta de metalinguagem na vida de todos nós. Os gestos, os olhares, a entoação, a descrição, o reconhecimento de figuras de estilo pelo hábito de nos cruzarmos com elas, e a falta de tempo e paciência pela leitura (daquela a sério, daquela que exige tempo de reflexão) que é, cada vez mais, um acto de resistência contra os nossos próprios impulsos.