Quando defendes liberdades individuais dos artistas, mas não te interessas muito pelo seu rendimento
Escreveu neste sítio Rui André Soares uma crónica onde, supostamente criticando as ideias dos liberais, faz por defender a quotização de 30% de música portuguesa imposta às rádios pelo governo nestas últimas medidas de emergência. Sai em defesa das quotas principalmente devido à liberalização do mercado de streaming, mercado onde os artistas vão expondo os seus trabalhos quase sem retorno absolutamente nenhum. Ou seja, contra os liberais, venham as quotas na rádio. Por que isto está errado é o que tentarei mostrar.
Primeiro, olhemos para a rádio. Em Portugal existe já a estação pública, subdividida em três, a terceira da qual tendo dos papéis mais importantes na promoção e divulgação da produção musical em Portugal (o slogan “a primeira vez é sempre na 3” parece ainda fazer sentido). A Antena 3 cumpre o seu papel de exibir artistas nacionais, elaborando programas, podcasts, conversas e outros meios de entretenimento que cumprem a divulgação e a amostra justa da produção nacional (dentro, claro, do que é a seleção estética da estação, cada vez mais abrangente).
Temos igualmente outro ponto relativo à rádio. Impor a quota de 30% traduz-se efetivamente em mais ouvintes e, por corolário, em mais benefícios para os artistas? Sim? Não. Ora porque – importante – é pouco o que se recebe da música passada na rádio, ora porque aqueles que ouvem rádio não se traduzem necessariamente naqueles que irão garantir ouvintes ou seguidores aos artistas. Explico-me: parece claro que não são as gerações mais novas aquelas que ouvem mais rádio, gerações essas que, pela sua natureza, tendem a ouvir música mais recente e não artistas estabelecidos no mercado. Os artistas estabelecidos, por já estarem estabelecidos, não tendem a ser aqueles com maiores necessidades de afirmação no meio nem de vingar nesse próprio meio. Por outro lado, os artistas emergentes, perdidos na volatilidade das plataformas de streaming, são aqueles que, dadas as características das gerações que os vão descobrindo e seguindo, não tendem a ser descobertos nas rádios nem consumidos maioritariamente nas rádios. A quotização vê-se anulada no seu efeito, uma coisa quase inútil. Assim, a quotização na transmissão não se traduz em audiências quotizadas, muito menos em rendimentos quotizados.
Rui André Soares pergunta: “Queremos ser o produto duma indústria (streaming) não regulada, que não paga impostos cá, que usa e vende os nossos dados pessoais, que usa algoritmos para «ouvirmos o que queremos», ou queremos um Estado que defina uma quota mínima de música portuguesa (feita por artistas portugueses) a ser exibida nas rádios?” A isto eu respondo: nem um nem outro. Essa quota, validada a sua existência, terá de o ser na estação pública, que tem precisamente essa função e tem cumprindo o seu dever de maneira exemplar (aqui é muito flutuante o que poderá significar “exemplar”). A ausência de regulamentação nas plataformas de streaming – essa sim, urgente – não pode ser a base argumentativa para se obrigar várias entidades a seguirem regras completamente arbitrárias e completamente sem-efeito para os artistas. Sim, porque a quota é arbitrária e porque é sem efeito.
Mais ainda, Rui André Soares parece fazer uma mistura alucinante entre os conceitos. Quando pergunta “por outro lado, preferimos estar do lado do mercado global não regulado ou na promoção (com máximos e mínimos estabelecidos) do mercado nacional? Um artista português, que também é um empreendedor, que não consegue fazer chegar o seu trabalho aos ouvintes, ao público, ao cliente, onde é que tem liberdade individual com o seu trabalho no seu próprio país?”. O que quer realmente dizer com isto? Desde quando o facto – triste, assuma-se – de não se conseguir fazer chegar a sua música aos seus ouvintes é o mesmo que ter a liberdade individual enquanto criador em causa? Podemos não ser liberais na política mas não sejamos desonestos e não afirmemos coisas destas.
Há, claramente, questões de maior fundo aqui, mas o não singrar no mercado anárquico, que o é, não significa que as liberdades individuais enquanto criador sejam postas em causa. É preciso arranjar alternativas para direitos dos artistas, que produzem e pouco retorno veem dessa produção, tratá-los com mais respeito e valorizar o seu trabalho. Isso passa mais por regulamentar o streaming do que quotizar as rádios, passa mais por, por cada passagem numa estação de rádio se receba mais, do que quotizar as rádios, passa mais por olhar para a Sociedade Portuguesa de Autores e escrutinar o seu funcionamento do que quotizar as rádios. Entre outros.
Os problemas associados aos rendimentos dos artistas não podem justificar esta imposição tendencialmente autoritária em outros meios que, à sua medida, contribuem para que esses rendimentos, de forma direta ou através de divulgação, sejam garantidos. São coisas que não podemos confundir.
Temos um Ministério da Cultura em Portugal que é uma comédia. Se perguntarmos o que fizeram pelos artistas, muito certamente a introdução de quotas na rádio não ficará no pódio.
Crónica de João Ferreira
O João cresceu na Covilhã e é quase licenciado em Filosofia, em Lisboa.