Quando os racializados criam e protagonizam
Em 2020 saímos em massa à rua para denunciar o racismo, usámos as plataformas a que temos acesso para anunciar como o devemos combater e assistimos com desconfiança quando agentes corporativos se posicionaram do nosso lado. Em 2021, a expectativa era de que uma das principais reivindicações fosse materializada — a representatividade. A representação que tanto reclamamos não é conquistada pelo simples facto de termos alguém com o nosso tom de pele num ecrã, catálogo ou palco. Na verdade, existem várias formas de representação. A chegada do pivot Cláudio França à Sic Notícias, ainda em 2020, foi uma representação simbólica. Apesar de crianças e jovens negras poderem rever-se nessa figura com quem partilham a identidade racial, a sua posição não lhe permite interpelar pela nossa causa, porque é uma de executante da norma — uma conquista pessoal, essencialmente. A representação efetiva, a que cobramos e sempre cobraremos, enquanto for necessário, é que as nossas considerações sobre mudança das estruturas sociais tenham real poder para se concretizar e connosco como agentes dessa mudança. No entanto, a representação na qual quero que reflitamos neste momento é outra — a ficcional.
Maior representatividade na ficção tem sido umas reivindicações mais ouvidas, principalmente por aqueles que nela intervêm — atores, guionistas, realizadores, etc. De facto, o movimento #OscarsSoWhite teve o impacto pretendido, conseguindo tornar mais diversa a composição das produções em Hollywood e, consequentemente, dos indicados para as categorias principais dos conceituados prémios de cinema. A paisagem cromática nos ecrãs pode estar diferente com a criação de mais personagens para minorias étnicas, mas e se essa representação não é a que queremos ver? E se não estivermos confortáveis com uma criação, mesmo que seja de um nosso semelhante?
“A violência racista explícita não ter lugar de destaque nessas criações é um alívio para nós que queremos ser consumidores de ficção também sem ter de revisitar traumas.”
As condições socioeconómicas de sujeitos racializados em sociedades ocidentais são delimitadas pelo racismo. Mais do que isso, também dá significado às dinâmicas das relações interpessoais. Admitimos que o racismo limita muito as nossas vidas mas as nossas vidas não se limitam ao racismo. Na ficção ainda se comete muito este erro de justificar a presença de uma personagem racializada e quase sempre das mesmas formas: a personagem vai cumprir um estereótipo, um fetiche ou para ser alvo de discriminação racial, se não são todas em simultâneo. Sendo os protagonistas negros, o cenário é ainda mais desolador quando não saem do eixo escravatura, segregação e a vida nos bairros sociais.
E se dissermos que nas nossas vidas também existem outros dramas? O antagonista de um romance entre duas pessoas negras não tem de ser um dono de escravos; a criptonite de um jovem negro num coming of age não tem de ser a violência policial e uma personagem forte de mulher negra não tem de ser uma que é resiliente à subjugação racial em contexto de trabalho. O desafio é que não tornem sempre as tensões raciais no centro de todos os enredos que envolvam pessoas racializadas, especialmente pessoas negras, porque a ficção é ainda o que nos permite ter um escape da realidade.
Quando essas pessoas têm oportunidade de criar, nós, os seus semelhantes, temos a felicidade de nos sentirmos representados nesses enredos. Ainda mais importante do que é representado é o que se escolhe não dar protagonismo na tela. A violência racista explícita não ter lugar de destaque nessas criações é um alívio para nós que queremos ser consumidores de ficção também sem ter de revisitar traumas.
Um bom exemplo de conteúdo que nos permite ter uma viagem tranquila é Insecure. Issa Rae, criadora e atriz protagonista da série, deu-nos cinco temporadas de uma narrativa centrada na vida de jovens adultos negros em Los Angeles. Dilemas amorosos, limites da amizade, instabilidade profissional e financeira foram os tópicos principais da série que terminou no final de 2021. Personagens complexas, humanas e com problemas reais para lá daqueles que costumam justificar as suas presenças noutras ficções.
“A mulher negra na maioria das sociedades ocidentais carrega dois fardos: racismo e misoginia. Nenhum vem antes do outro, porque a condição é única. No entanto, raras são as vezes em que a segunda tem mais atenção que a primeira.”
Outro bom exemplo, mas focado numa personagem masculina, é Ramy. Também protagonizado pelo seu criador, Ramy Youssef, é a história de um jovem adulto filho de imigrantes egípcios em Nova Jérsia. A série “oferece uma nova perspetiva que explora os desafios de um homem apanhado entre uma comunidade muçulmana que vê a vida como um teste mortal, e uma geração millennial que pensa que a vida não tem consequências.” Os tramas da vida amorosa, perspetivas de carreira, a busca pela fé e mais uma brilhante prestação de Mahershala Ali é com o que podem contar.
A mulher negra na maioria das sociedades ocidentais carrega dois fardos: racismo e misoginia. Nenhum vem antes do outro, porque a condição é única. No entanto, raras são as vezes em que a segunda tem mais atenção que a primeira. Michaela Coel em I May Destroy You expõe a cultura de violação num drama protagonizado por si — Tendência? Dos limites do consentimento ao silêncio e constrangimento dos violentados, a série explora esse terror tanto em relações heteressexuais como homossexuais.
Na segunda temporada de Love Life o protagonista é William Jackson Harper, que também é um dos 3 argumentistas não brancos do quarteto que escreveu o roteiro. A história segue a vida de um jovem adulto recém divorciado à procura de uma segunda oportunidade no amor. Assistimos a várias tentativas de um novo relacionamento e a culpa dos falhanços nunca é remetida para a sua tez, mas antes para a complexidade que é encontrar o amor em si enquanto se está num período de luto de outra relação.
Todos estes exemplos recusam-se a dar protagonismo ao racismo, no entanto o fenómeno não ficou completamente fora da fotografia. Está presente, mas se calhar só visível para quem está habituado a lidar com ele diretamente. Em Insecure, só quem conhece o conceito de whitesaviour e como se manifesta é que é capaz de o reconhecer na ONG em que Issa Dee trabalha. Ou em Love Life, quando a mulher com quem Marcus tem uma relação de sexo casual engravida e propõe criar a criança sozinha, mas ele recusa perpetuar o estereótipo de pai negro ausente.
Concluindo, isto são formas necessárias de se abordar o racismo e a discriminação na ficção, porque permite que pessoas não brancas vejam outros dramas das suas vidas representados e que pessoas brancas tenham noção de outras de formas de como o racismo se manifesta, o reconheçam na vida real e o erradiquem em si.