“Quando precisam de nós [artistas] usam-nos, quando não precisam de nós mandam-nos embora”, afirma Ruy de Carvalho
O ator Ruy de Carvalho, que se mantém em atividade em vésperas de comemorar 96 anos, considera que a atual política cultural é marcada “por pessoas que não têm muito gosto para as artes, ou então só se servem delas“.
“Quando precisam de nós [artistas] usam-nos, quando não precisam de nós mandam-nos embora […], não nos ligam nenhuma“, sublinhou Ruy de Carvalho, em entrevista à agência Lusa, abordando a política cultural em Portugal, nos dias de hoje.
Em véspera de comemorar 96 anos, o que acontecerá na quarta-feira, dia em que subirá ao palco do Coliseu do Porto, para mais uma récita há muito esgotada de “A Ratoeira”, de Agatha Christie, Ruy de Carvalho é perentório: “Somos muito descartáveis, na Cultura, somos”.
“Qual é o orçamento da Cultura em Portugal? […] Tem alguma importância, enche alguma arca de tesouro de um país?“, questiona-se o ator, ao mesmo tempo que sustenta: “A arca do tesouro de um país é a sua cultura, não é verdade?“, numa crítica à política cultural dos governos portugueses, ao longo dos anos.
Por isso, Ruy Carvalho, o decano dos atores portugueses “e da Europa, senão mesmo do mundo”, afirma: “Tenho a impressão de que eles [os políticos] não têm muito interesse nessa arca da Cultura“. E vai mais longe, não hesitando mesmo em afirmar que após o 25 de Abril de 1974 “acabou tanta coisa“.
“Quando havia censura havia tanta coisa“, sublinha, numa alusão ao teatro radiofónico e televisivo que era transmitido na rádio e na televisão estatais, para de imediato acrescentar “agora, quando há liberdade, não há nada“.
“Não há rádio, não há televisão, não sei… Que mau gosto“, concluiu.
Ruy de Carvalho lembrou ainda o tempo em que os jornais publicavam rubricas ou folhetins de teatro ou contavam histórias, exemplificando com O Século e o Diário de Notícias. “Agora quase que não há jornais, os jornais foram todos acabando“, observou.
As “pessoas estão a ler não sei onde. Talvez no campo de futebol. É onde talvez leiam os anúncios“, ironizou.
Nascido em Lisboa, em 01 de março de 1927, Ruy de Carvalho, o ator com mais prémios em Portugal, fez a estreia profissional em 1947, na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, na peça “Rapazes de hoje”, de Roger Ferdinand.
A estreia como amador acontecera antes, em 1942, no Grupo da Mocidade Portuguesa, com a peça “O Jogo para o Natal de Cristo”, encenada por Francisco Ribeiro, conhecido como Ribeirinho
Frequentou em seguida o Conservatório Nacional, passou ainda pelo Teatro-Estúdio do Salitre, para interpretar peças de Luiz Francisco Rebello, Rodrigo de Mello e de João Pedro de Andrade, antes da profissionalização.
O reconhecimento do trabalho no Nacional D. Maria, com a companhia residente, Rey Colaço-Robles Monteiro, levou-o de imediato a palcos como os do Teatro Avenida, Monumental, onde contracenou com Laura Alves, Teatro do Povo e ao Teatro Moderno de Lisboa.
Em 1963, assumiu a direção artística do Teatro Experimental do Porto, onde fez a única experiência como encenador, em “Terra Firme”, de Miguel Torga.
Fez ainda parte de companhias como a do Teatro Maria Matos, onde se encontrava a companhia residente da RTP. Trabalhou com a Empresa de Vasco Morgado, com o Teatro do Arco da Velha, com a Companhia Rafael D’Oliveira – Artistas Associados, a Companhia de Comédia Assis Pacheco, a Companhia de Comédia Ligeira.
Em 1978, fez parte do relançamento do Teatro D. Maria II, onde permaneceu no elenco residente e do qual se despediu nos anos de 1999-2000, com encenações de “Rei Lear”, de Shakespeare, “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, e “O poder da Górgone” e “Real Caçada ao Sol”, ambas de Peter Shaffer.
Com o encenador Filipe La Feria, protagonizou os musicais “Passa por mim no Rossio” (1992) e “Maldita Cocaína”(1994), em que contracenou com Simone de Oliveira, e ainda “A Casa do Lago”, de Ernest Thompson (2002), que liderou com Eunice Muñoz, ao lado de Pedro Lima, Maria de Lima e Luiz Zagalo.
Estreou-se na televisão em 1957, com o aparecimento da RTP, onde fez o “Monólogo do Vaqueiro”, de Gil Vicente, cujo texto ainda hoje diz, com a mesma garra, na segunda peça que continua a representar em palcos portugueses, “Ruy, a história devida”, um texto de Paulo Coelho com encenação de Paulo Sousa Costa, que apresenta no Auditório 1 do Tagupark e que leva em digressão pelo país.
Se protagonizara a primeira peça apresentada na televisão, em Portugal, participou também na primeira telenovela portuguesa, “Vila Faia” (1982), dirigida por Nuno Teixeira, igualmente para a RTP, dando vida à figura de Gonçalo Lorena Marques Vila.
Em Espanha, participou num concerto de encerramento da temporada do Teatro Monumental de Madrid, onde levou “Orfeu”, com textos de Fernando Pessoa e música de Pablo Rivière, a convite do encenador Simon Suarez. Também foi “Fígaro”, de José Ramon Encinar, no Teatro Lírico La Zarzuela, na capital espanhola.
O filme “Eram 200 irmãos” (1951), de Armando Vieira Pinto, marcou a sua estreia no cinema. Entrou também nos elencos de “Pássaros de Asas Cortadas” (1963), de Artur Ramos, “Domingo à Tarde” (1965), de António Macedo, “A Bicha de Sete Cabeças” (1978), igualmente de Macedo, “O Cerco” (1969), de António da Cunha Telles, “Cântico Final” (1974), de Manuel Guimarães, filmes que marcaram a emergência e afirmação do Cinema Novo português.
No ano de 1990, entrou em “O Processo do Rei”, de João Mário Grilo, e “Non ou a Vã Glória de Mandar”, de Manoel de Oliveira, com quem trabalhou ainda em “A Caixa” (1994) e em “O Quinto Império – Ontem Como Hoje” (2004).
Ruy de Carvalho recebeu os prémios Imprensa de Teatro, em 1962, 1981, 1982 e 1986. Em 1962, recebeu o Prémio de Popularidade, bem como o Prémio da Crítica da antiga Revista Rádio e Televisão. Foi ainda distinguido com os Prémios da Crítica de Cinema em 1965, 1966 e 1971 e o Prémio da Revista Plateia, pelo desempenho em “Domingo à Tarde”.
Teve ainda os prémios Mais, da Rádio Comercial, em 1991, os Setes de Ouro do jornal Sete, em 1981, 1986 e 1990, o Prémio Nova Gente em 1991 e o Prémio da Rádio Comercial para Melhor Ator em Declamação.
Prémio Bordado de Imprensa de Carreira, em 1995, Globo de Ouro de Carreira e de Personalidade, em 1998, além do Globo de Ouro para Melhor Ator do Ano, pelo desempenho de “Rei Lear”, no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação do britânico Richard Cottrell, constam ainda do palmarés do ator.
Melhor Ator de ficção (2001), Medalha de Prata da Cidade da Covilhã, onde chegou a viver, Prémio Carreira do Festival de Almada 2009 são outros dos prémios do ator que, desde a estreia como amador, soma 81 anos de percurso artístico.
No ano passado, quando completou 95 anos, recebeu a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, entregue pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Em 2012, nos 70 anos de carreira, recebeu foi a vez da Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, entregue por Cavaco Silva, que se juntou à Comenda e ao Grande Colar da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada que recebeu, respetivamente, em fevereiro de 1998, do Presidente Jorge Sampaio, e em março de 2010, também de Cavaco Silva.
Em 1993, Mário Soares entregou-lhe o grau de comendador da Ordem do Infante, que juntou à Medalha de Mérito Cultural, atribuída pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1990.
Pai de dois filhos, Paula de Carvalho e João de Carvalho, também ator, Ruy de Carvalho é ainda avó do também ator de Henrique de Carvalho, contracenando com ambos em “A Ratoeira”, uma das peças que se mantém em cena há mais tempo e que, em Portugal, tem encenação de Paulo Sousa Costa.