Quarentena. A vingança da lamechice
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Então, como estão essas cabeças? Mal, não é? Eu sei… É estranho isto. Ainda há uns tempos, numa semana normal, dávamos por nós a dizer “este fim de semana não saio de casa. Vai ser pijama, Netflix e Glovo. É que nem sequer me levanto do sofá!”. Agora que estamos de quarentena é “foda-se! Foooooodaaaaaa-se! Agora não posso sair de casa para ir escalar o Evereste não é? E quem é que alimenta os pinguins da Antártida se eu não posso sair de casa?! Não consigo respirar! Estou-me a sentir preso! NUNCA VOU CONHECER A ILHA DO CORVO! FODA-SE! FOOOOOODAAAAA-SE!”. Vá-se lá perceber…
Bom, mas aviso já que hoje não vou falar mais desta quarentena/isolamento social. Não vou! Primeiro porque já estou naquela fase em que bater com a testa nas paredes me parece uma actividade lúdica, segundo porque hoje, apesar de todo o ruído, ainda é Dia do Pai.
Já disse várias vezes que não tinha muito jeito para estas coisas lamechas. Não tinha e continuo a não ter, que eu sou muito coerente nas minhas falhas, mas se há coisa que aprendi com o meu pai é que seres mau numa coisa não é impedimento para a fazeres. Normalmente, nesta altura, ele remataria a frase com algo do tipo “olha o Nuno Rogeiro, por exemplo. Nunca pisou uvas, mas era capaz de estar 3 horas a ensinar um enólogo a fazer vinho na TV”. Tem piada o raio do velho.
Não vou dizer que o meu pai é o melhor pai do mundo, até porque não conheço todos e porque um dia talvez eu também seja um e aí não vou dar hipóteses. E não vou dar hipóteses porque o meu pai sempre me disse para eu ser um homem melhor do que ele é. E eu, apesar de muitas vezes não o parecer, oiço o que ele me diz. Tirando quando o assunto é política, futebol ou as idiotas razões que ele me dá para eu deixar de fumar. Sim, idiotas. Porque o meu pai não me diz para eu deixar de fumar porque me faz mal, porque é caro ou porque a roupa fica a cheirar mal. Não, isso é para os outros pais. O meu pai diz-me para deixar de fumar porque, e cito, “se um dia fores num avião e ele cair numa ilha deserta e tu sobreviveres, ou se ficares perdido no meio de uma floresta sozinho, depois como é que vais fazer sem tabaco? Tens de pensar nestas coisas, um homem não deve ter vícios!”. É meio amalucado, o raio do velho.
Do meu pai herdei a maioria dos meus defeitos. A arrogância, o pedantismo, o ressonar, a teimosia doentia e o facto de ter sempre razão, mesmo quando não tenho, o que torna, por vezes, os nossos almoços em família numa coisa semelhante a alguns filmes do Tarantino. Mas também herdei algumas das minhas virtudes que me são mais queridas, como o sentido de humor, o espírito crítico e a maneira como consigo fazer amigos em qualquer lugar, se bem que eu preciso de ter um copo na mão, já ele só precisa daquela lata descomunal que tem e que dava para encher 10 sucatas. É simpático, o raio do velho.
O meu pai não é um herói, apesar de já ter salvo vidas; não é um homem lindo e escultural, apesar de ter passado uns genes incríveis aos 3 pequenos deuses gregos que fez; não é o mais inteligente ou culto do mundo, apesar de conseguir fazer a raiz quadrada de números com 4 algarismos e ganhar o Trivial numa ronda; não é o tipo mais prático ou com mais jeito para o bricolage, apesar de me ter ensinado a construir cabanas, armadilhas ou a fazer fogo; resumindo, o meu pai não é perfeito, mas é o meu pai e eu sou muito grato por me ter calhado este. Porque é o meu pai, o raio do velho.
E como hoje não lhe posso dar um beijo, fica aqui este texto em forma de miminho, porque já se sabe que os velhos são como as crianças, precisam de muita atenção. E em breve de fraldas. Velho.
E como continuamos em casa mais uns dias, aqui ficam umas sugestões para ajudar a passar o tempo. E hoje as sugestões vão ser as que tenho a certeza que o velho daria, caso escrevesse para mais algum lado que não o grupo da família… no messenger.
Comédia:
Blake Edwards – The Pink Pather
Música:
Jethro Tull – Aqualung
Cinema:
Nanni Moretti – Caro Diario
Literatura:
Albert Camus – A Peste