Quarentena. O meu gato é melhor do que o teu
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Hoje não vou falar do coronavírus. Não vou falar de notícias, de políticos, de medidas ou do comportamento das pessoas. Aliás, hoje nem sequer ainda liguei a TV. Estou farto de estar todo o dia a ver todos os canais noticiosos, a ler tudo o que é jornal online, a ter o twitter sempre actualizado para possuir sempre a actualidade na ponta da língua, vir para aqui escrever e vocês lerem. Ou não. Ora, isso faz com que, neste momento, o meu dia a dia pareça o de um assessor político ou comentador e eu não sou nem uma coisa nem outra, até porque tenho valores morais. E é por isso que hoje não vou falar do covid-19. E também porque vocês já devem estar mais fartos do vírus, de políticas e de economia do que de atum. Sendo assim, hoje vou falar de algo bem mais importante e que me tem ajudado não só a passar este período de clausura, mas também outros: o meu gato.
Eu não queria um gato, que fique isto bem assente. Nunca quis um gato, não gostava de gatos, não me despertavam a mínima empatia e, para mim, eram todos ingratos desde que aquele que encontrei atropelado, levei para casa e curei me arranhou e fugiu para sempre mal conseguiu andar. Gatos têm as bruxas, os divorciados e o pessoal que não bate bem da cabeça. Mas depois a minha ex namorada, com quem vivia na altura e já depois de acabarmos (uma excelente ideia e que resulta muito bem nas séries, mas que na vida real é mais coisa de filme. Especialmente o “Exorcista” ou o “The Shining”, mas com mais terror psicológico), decidiu adoptar um gato, só para me chatear. E conseguiu, acreditem.
Passadas duas semanas desta ideia brilhante me ter sido comunicada, vieram entregar o bicho numa transportadora gigante. Eu estava numa ponta da sala, amuado, ela estava na outra, a fazer vozinhas e a falar à bebé para a transportadora. Odiei-a muito naquela altura, confesso. A ela e ao bicho dos infernos que vinha ali só para me atazanar a cabeça e o qual ainda nem tinha visto. Ela poisou a transportadora no chão, abriu a porta e afastou-se. Gato? Nem vê-lo. Estava cheio de medo e não se atrevia a sair para uma casa com cheiros estranhos e com um cágado que gostava de ouvir The Cure (saudades tuas, Godzilla). Eu provavelmente faria o mesmo na sua situação. Lembro-me que a minha ex namorada ficou ali à frente da caixa, insistiu, chamou, mas o gato nem tugiu nem mugiu, o que faz sentido porque ele é um gato, não uma vaca. Eu desisti. Na verdade, nem sequer tinha muita curiosidade de ver o rafeiro por isso comecei a ver stand up ou a jogar FM ou a fazer qualquer outra coisa extremamente importante ao computador. Ela levantou-se, foi à cozinha buscar leite para ver se conseguia fazer com que o gato saísse da toca e eu fiquei no nosso sofá rasteiro ao computador. De repente, enquanto ela lá andava a bater portas na cozinha e a escolher a taça mais bonita para dar ao novo inquilino, senti algo a fazer-me cócegas nas pernas que tinha cruzadas numa posição importada da China antes de isso suscitar receios na população. E foi quando olhei para baixo e constatei que aquele pêlo não era meu, mas sim de uma bola de ténis arrepiada e com olhos e que a tremer procurava um lugar para se sentir quente e protegida que a minha vida mudou.
Desde esse dia que o meu gato (sim, agora é só meu porque, quando finalmente nos separámos, a minha ex ainda tentou ficar com ele, mas mudou de ideias mal o sacana a começou a morder e a arrancar o próprio pêlo por não me ver) é, para mim, mais do que um gato. É um amigo, uma almofada, um companheiro, um psicólogo, uma constante numa vida incerta e, acima de tudo, é quem mais me faz rir quando cai para a sanita ou tenta discutir comigo ao mesmo tempo que eu estou a discutir com ele, normalmente com berros que mais parecem saídos de um leão marinho com azia do que dum gato meio obeso.
O meu gato é o melhor gato do mundo, não há muito mais a dizer. Sim, ele esfarrapa tudo o que é sofá; sim, os meus amigos chegam a ter medo de vir a minha casa porque ele ataca toda a gente que não seja eu; sim, ele precisa de mais atenção do que uma princesa filha única; sim, ele obriga-me a fazer horários sempre que tenho de me ausentar porque não o posso deixar com ninguém; sim, ele rouba-me comida quando me distraio e vira o caixote do lixo; sim, ele morde-me as mãos quando estou a falar ao telefone porque ainda o odeia mais do que eu; sim, ele espalha areia pela casa toda e tira a ração da taça para comer no chão só os flocos que acha merecedores do seu fino palato; sim, ele é irascível, mimado, idiota, tem a mania e não gosta de ninguém, mas gosta de mim e eu dele e isso é que importante. E por isso é que ele é melhor gato do mundo.
Se não fosse o meu gato, todos os períodos maus que tive nos últimos anos teriam sido bem piores. Se não fosse ele, as noites teriam sido mais solitárias e os dias insuportáveis. Se não fosse ele, teriam havido semanas inteiras em que não tinha saído da cama, mas com ele isso é impossível porque há a areia, a comida e aqueles barulhos que ouves na cozinha e que sabes que das duas uma: ou os fantasmas existem ou aquele felino pouco gracioso partiu mais um copo. Se não fosse ele, nem sequer teria tema para a crónica de hoje. E mesmo agora, nestes tempos em que nos encontramos em quarentena e sem poder sair de casa, é ele que está aqui, ao meu lado, a olhar para mim com aquele ar de enjoado que só os gatos e algumas betas sabem ter, mas a um toque de ronronar mais alto do que um motor de barco, como que a garantir que está tudo bem.
E é por isso que hoje escrevo sobre ele, porque no meio de toda esta confusão, de toda esta loucura e preocupação, é este filho indesejado por mim que, mais uma vez, me ajuda a manter são, como o fez em tantas outros momentos pedindo apenas em troca comida, total domínio da casa, da minha vida, horários mais flexíveis do que uma prostituta russa, um caixote de areia limpa e… Merda. Eu bem sabia que ainda tinha alguma coisa para fazer hoje…
E pronto, antes de ir vestir a armadura para tentar ir comprar sílica para o monsenhor da Beira Serra defecar, aqui ficam as sugestões do dia.
Comédia:
Mitchel Hurwitz – Arrested Development
Música:
Uncle Acid & The Deadbeats – Blood Lust
Cinema:
Irmãos Cohen – The Big Lebowski
Literatura:
Alan Moore – Watchmen