Quarentena. O mundo perdido
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Como é que é, malta? Cá estamos, não é? Mais uma volta, mais uma viagem… da sala para o quarto e do quarto para a sala, com um desvio pela cozinha para atestar o copo de vodka e o bucho de patê de atum.
Hoje completo 7 dias de isolamento. Atenção, não me estou a queixar, estou apenas a dizer que começo a compreender a relação do Tom Hanks com uma bola de voleibol. Não que eu precise, tenho um gato. Um gato que está tão farto de mim que temo que aproveite as poucas horas que durmo para me arrancar um olho. Aliás, estou convencido de que ele já ligou aos seus advogados para saber como funcionam os despejos ou se pode obrigar-me a pagar-lhe uma renda da casa que lhe ocupo.
A verdade é que, mais do que assustados, estamos todos aborrecidos. Quer dizer, todos os que, tal como eu e vocês, não têm de apanhar autocarros à pinha de manhã para continuarem a trazer algum dinheiro para casa. Sim, porque é muito bonito dizer que estamos todos no mesmo barco quando nós ficamos num apartamento a ver filmes ou vamos para as casas de praia e campo que herdámos dos nossos pais enquanto centenas de desgraçados continuam a sair de manhã para limparem as casas que sujamos ou deixámos vazias. Até podemos estar todos em barcos, mas há uns que navegam em iates, outros em canoas feitas com restos de madeira que deram à costa. É bom que nos lembremos disso. E de ver menos CMTV também.
Sim, porque se a maioria das empresas está pelas ruas da amargura com a visita do COVID-19, a CMTV está a passear numa Yellow Brick Road, aos saltinhos e a cantar de braço dado com o vírus. Desde filmarem um funeral à distância, a fazerem directos de casas de tias que fazem bolinhos de chocolate com as filhas betas, passando por comentários com gente que diz coisas como, e cito, “eu não tenho qualquer formação científica nem percebo nada de medicina, maaaaaaas….. (e agora podem inserir aqui a opinião mais parva e desinformada que se lembrem e que assuste até os organizadores do Motel X), eles fazem tudo. Tudo menos um bom trabalho jornalístico. Aliás, eu até fiquei admirado por não terem metido uma GoPro na vagina da mãe infectada com o COVID e que deu à luz, só para mostrarem se o bebé nasceu a tossir.
Mas se a CMTV é, digamos, parva, também o são muitos dos velhotes que têm aparecido em vídeos um pouco por todas as redes sociais. Desde a dona Augusta que só ia para casa porque queria, ao velhote que não tinha medo do vírus porque lutou no ultramar, ao casal de velhotes que passeava pelas ruas de caçadeira na mão, numa bonita homenagem ao Texas, já se viu um pouco de tudo. E eu percebo que é difícil convencer alguns velhotes que passaram a vida toda a lutar, seja contra a ditadura, seja contra os baixos salários, seja contra o abandono, de que este vírus não é propriamente uma brincadeira, mas alguma coisa tem de ser feita. E eu tenho a solução. Se eles não ouvem políticos, jornalistas ou polícias, só nos resta uma opção: chamar o Cesar Millan da terceira idade, o encantador de cidadãos seniores. Sim, vocês sabem de quem é que estou a falar. Ele mesmo, o Fernando Mendes. Costa, Marcelo, Temido, deixem os egos de lado e façam o que é preciso! Na próxima comunicação ao país, fiquem atrás e deixem o homem falar. Porque ele é o herói que Portugal precisa, não o que merece. E também porque é a garantia de que até o meu avô o vai ouvir. E ele é surdo! E por isso que eu é que devia estar no lugar do Guterres.
Bom, e como o gelo está a derreter e o copo de vodka quase no fim, despeço-me com as sugestões para passar o dia, que tenho de ir atestar. Até amanhã!
Comédia:
Paulo Almeida – Ódio de Estimação
Música:
Liam Gallagher – Why me? Why not?
Cinema:
Miguel Gomes – Aquele Querido Mês de Agosto
Literatura:
Filipe Homem Fonseca – Se não podes juntar-te a eles, vence-os.