Quarentena. Páscoa sem cabrito…

por Rui Cruz,    2 Abril, 2020
Quarentena. Páscoa sem cabrito…

Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

E pronto, vieram mais medidas de restrição. E estas vieram do ginásio, que vêm bem musculadas. E tudo por causa deste corona que até das tradições já dá cabo. O que é que vai ser desta Páscoa, agora? Sem cabrito em casa das tias, sem bebedeira em casa dos amigos, sem acidentes de carro que acabem com uma família espetada contra uma pinheiro… E assim se perde uma oportunidade de entreter a malta que está há semanas fechada em casa, seja com um bonito espectáculo de luzes e sons com as ambulâncias do INEM, seja com um malabarismo com aquelas pernas marotas que ficaram presas ao rail, seja com apostas. “Quem é que vai matar mais esta Páscoa, o vírus ou aquela curva apertada à direita na IP3? Tu fazes as tuas odds!”. Mas não, vamos ser sérios e competentes e tentar atrasar o pico da doença até estarmos preparados e yada yada… Choninhas. E o pior é que com isto ainda nos arriscamos e descer os números da única estatística que lideramos na União Europeia. Depois não querem ouvir os Holandeses…

O que vale é que também é só a Páscoa, não é outra festa qualquer. Todos nós sabemos que a Páscoa é um Natal de contrafacção, é o perfume Pato Rabão das festividades religiosas em família. É aquela festa em que as crianças recebem umas prendas, mas menos do que no Natal porque são só padrinhos a dar; é a festa onde até comemos bem, um bom cabrito, um bom vinho, um folar, mas não há 300 doces, prova de águardentes e a necessidade de passar 3 dias de fato treino para não apertar o estômago como no Natal; na televisão repetem sempre os mesmos filmes, mas não são aqueles clássicos divertidos do Natal, como o “Home Alone” ou o “Die Hard”, são aqueles clássicos que nos matam a infância e nos mostram que o Mel Gibson afinal não libertou a Escócia, é só antissemita… É que até nas actividades religiosas a Páscoa é menos agradável. Um tipo, no natal, monta o presépio com a família para comemorar o nascimento do Jesus, na Páscoa levas com um padre que te entra pela casa adentro para saciar o seu fetiche por pés a ver-te ali a lambuzar as patas do messias. É no que dá o celibato.

Ainda por cima, na Páscoa, comemora-se a ressurreição de Cristo. Era de extremo mau gosto estar aí a festejar por causa de um gajo que voltou à vida quando há uma carrada de gente a morrer. Lê a sala, Jesus… E é que nem sequer é um truque por aí além. Ressuscitar quando o teu pai é Deus?! Fiquei bem mais impressionado com aquela senhora de 93 anos que recuperou do corona. E o seu pai nem sequer era médico, quanto mais O Criador!

E se é para comemorar a ressurreição de alguém, que seja a do Ramalho Eanes. Esse sim, voltou à vida e veio à televisão mostrar o que é um gajo sensato, com sentido de estado e coragem e deixar o Rodrigo Guedes de Carvalho a parecer o Raúl Minh’alma dos apelos. Toda a sua entrevista foi boa, ouvir a sua opinião sobre o que/qual é o papel do estado, o elogio ao que foi feito, mas com as críticas que achou por bem fazer, a força por trás de uma declaração como “Nós, os velhos (…), quando chegarmos a um hospital, se for necessário oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos”. Incrível, não é? Incrível o sexismo desta frase! E se for uma mulher? Mais!… E se for uma mulher solteira e sem filhos porque é uma mulher independente e que não se adaptou aos padrões sociais patriarcais que lhe foram impostos? Essa morre, não é Ramalho? Vá, estou no gozo, não fiquem já azedos… É humor de estereótipos.

Mas a verdade é que o Eanes falou muito e bem e eu até estava para o elogiar e gabar-lhe a sensatez com honestidade, mas depois fui ver a sua biografia e constatei que o homem já tem 85 anos. Não dá. Não posso. É que o meu agente está farto de me dizer que eu tenho de ver como a geração dos jovens adultos se comporta, para ganhar esse público, portanto não vou elogiar um velho, muito menos um velho que até tem dinheiro e teve poder, parece mal. Sendo assim, Ramalho, apesar de ter gostado do que te ouvi, vou acabar como é cool: OK, boomer!

Aqui ficam as sugestões para o dia:

Comédia:

Bill Hicks – Relentless

Música:

Dollar Llama – Juggernaut

Cinema:

Dennis Hopper- Easy Rider

Literatura:

Jack Kerouac – Pela Estrada Fora

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