Que é já tempo de embalar a trouxa e zarpar

por José Valente,    14 Fevereiro, 2025
Que é já tempo de embalar a trouxa e zarpar

Em tempos ansiei testemunhar a opressão que os meus pais conheceram durante a ditadura. Um desejo ingénuo e ignorante, é certo, mas eu era um adolescente apaixonado por música, ateu, com uma forte consciência social e política, cheio de hormonas revolucionárias e, aparentemente, não havia nenhuma revolução em que eu pudesse participar. Che Guevara já estava enterrado há muito tempo e o seu rosto era estampado em cartazes de festas patrocinadas pela Coca-Cola. 

A década de 90 foi pacífica e suave. Além de uma ou outra incidência internacional que agitou os noticiários, os dias eram calmos e eu acabava por reagir somente a curtos incêndios de indignação, pequenas injustiças sazonais e locais, que eram geralmente melhor geridas por colegas mais partidários que eu e que cedo compreenderam a dinâmica de relações humanas, as nuances sociais obrigatórias para ascender a quaisquer cargos políticos.

Onde estavam os encontros clandestinos? Em que momento se compunham as canções incómodas que abalariam o sistema?

Se naquela altura era difícil a malta entregar-se a uma simples jam, proposta que nascia de uma alegria esporádica incentivada pelo convívio boémio e pela cerveja, quanto mais a uma reunião para criar a próxima obra grandiosamente revolucionária!

Hoje em dia, mais velho e com alguma experiência relativamente à criação artística, posso achar o pretexto exageradamente romântico e um pouco ridículo. 

É verdade que me atraem estes capítulos da história da arte em que os artistas, com um desprendimento circunstancial louvável, desenvolveram obra e pensamento porque foi emocionalmente, espiritualmente e artisticamente, necessário.

Ocorrências como a escrita das Novas Cartas Portuguesas das Três Marias [1], três autoras espectaculares e de referência, que almoçavam todas as quartas feiras para debater ideias e que, mais tarde, escreveram um livro porque era urgente edificar uma intenção artística inovadora e pertinente.

Durante anos, julguei que tais façanhas seriam impossíveis de se repetir.

A intervenção desapareceu do mapa da invenção artística. A oportunidade transformou-se no principal critério para a criação contemporânea.

O artista de vanguarda passou a ser tendencioso, alguém preocupado com temáticas superficialmente fracturantes, influências banais digeridas através de códigos ultrapassados e aceitáveis, respeitáveis aos olhos do status quo, da dita elite artística, afastada há muito das ruas do mundo, das dores alheias e dos contextos do dia-a-dia dos outros.

O artista de vanguarda passou a ser instragramável, influencer, um indivíduo super original que defende de forma agressiva o seu direito ao rótulo, à sua própria categorização, independentemente dos contextos. Grita que se farta nas redes sociais, mas, no fundo, deseja o conforto do não confronto, porque a sua expressão artística é restrita, gratuitamente abstracta ou minimalista e apenas entendida por aqueles que partilham da mesma condição monótona do desassossego por encomenda.

Exímios políticos dos jogos de aparências, estes artistas beneficiam da falta de visão, critério e exigência dos decisores públicos para edificar obras justificadas com termos vagos, misturados num cocktail de palavras vazias de significado.

Por outro lado, artista comercial ou de entretenimento, sempre se ocupou em demasia com o seu próprio negócio para sequer acreditar na ousadia de intervir ou de ter uma opinião menos popular. Se por ventura se manifesta a favor ou contra uma causa, é porque essa mesma exposição lhe traz algum tipo de vantagem económica.

Os concertos de solidariedade para angariar fundos, por exemplo, são, quase sempre, um embuste, uma mera montra de vaidades concebida para aliviar as consciências inconsistentes e frívolas dos participantes (espectadores, produtores e artistas).

As canções que carregam uma suposta revindicação são limitadas na sua profundidade, geralmente transmitidas na primeira pessoa, focadas para dentro, sem qualquer conexão ou observação do cenário exterior. Revelações narcísicas expostas em letras que choram por atenção, do tipo “olhem para mim, sou tão virtuoso e generoso”.

Eis que perante este cenário tão pasmaceiro e cruelmente estagnado, perante este estado da arte hipócrita e pouco deslumbrante, o mundo se torna num sítio muito perigoso, muito sacana e violento.

A população manipulada, também conhecida por massa ou homem-massa, ressabiada e ressentida pela falta de condições de vida (nalguns casos) ou pela ausência de um respeito hierarquizado através da posse material e consequente poder (noutros casos) e também pela falta de acesso às ilusões protagonizadas por essa pseudoelite muitas vezes extravagante e gratuita, decidiu empoderar uma série de líderes sociopatas, oferecendo-lhes a capacidade de escolher entre a paz ou a guerra.

Alguns destes presidentes, primeiros-ministros etc. foram exibindo o seu desejo de destruição em certos incidentes, ao longo dos últimos anos. Porém, a balança ainda pendia para um disfarce civilizacional. A palavra “liberdade” ainda não tinha sido usurpada pelos fanáticos de extrema-direita que se vitimizam de cada vez que alguém corrige as suas mentiras.

Não nos equivoquemos. A ascensão de figuras como Musk, Trump ou Bolsonaro, como Andrew Tate ou Paul Elam, nasce a par e passo com a insurreição do homem beta [2], esse mote anunciado pelos vários terroristas incel, antes dos homicídios que cometeram. 

São tudo representações de um só problema: o Homem branco [que tanto é representado por líderes masculinos (Milei, Orban) como femininos (Meloni, LePen)], ignorante, frustrado e falhado, ficou assustado com a possibilidade de uma futura sociedade onde as mulheres vivem numa total igualdade de direitos, donas dos seus corpos, das suas decisões, das suas vontades, com direito à ambição, ao sonho e à vida, entre outras evoluções imprescindíveis.

Estas personalidades, algumas extremamente ricas e poderosas, detestam, sobretudo, o progresso e a hipótese de a sociedade ocidental ser, um dia, um lugar mais justo e digno para todas as pessoas, independentemente da sua biologia, género, raça, ideologia, religião, ou modo de vida: um lugar sem escravos para trabalhar ininterruptamente para o enriquecimento destes lordes com baixa auto-estima.

Por isso legitimam o direito à reação agressiva, sem discussão, conversa ou convívio, à separação entre “nós” – os únicos detentores da verdade – e “eles” – os outros, os que não acreditam que tudo é uma conspiração contra, os que não vislumbram a realidade como ela é, os que não engoliram o comprimido vermelho e que continuam dentro da Matrix.

E o pior de tudo é que o fazem enquanto clamam por liberdade, afirmando que nos estão a salvar das amarras da existência em comunidade, do Estado, dessa esquerda que não nos permite negociar como nos apetece, ter o negócio que nos apetece, dessa direita que acredita na entreajuda, na solidariedade e na humanidade; enquanto ludibriam o consumidor que trabalhar por conta própria, ser dono do seu destino, empreendedor, mindfull, pró-activo, entre outras farsas provenientes da bíblia da psicologia positiva, é a solução, é o melhor caminho, omitindo que esta economia ultra liberal funciona pela lógica simplista da oferta e da procura, que impõe um ambiente profundamente injusto, alicerçado na lei do mais forte. Que cava um poço ainda mais fundo entre os mais pobres e os mais ricos e elimina a classe média.

No final do dia, esse é o único objectivo: sacrificar o espírito, a crítica e a reflexão, substituindo-os pela rudeza do trabalho básico que facilite o consumo de paliativos diversos que adormeçam a ânsia da descoberta ou a angústia provocada pela incompreensão da nossa existência.

E a arte não dá resposta porque foi, lentamente, afastada e se afastando da engrenagem palpável, da discussão quando esta ainda podia ser efervescente e solta de correções e preconceitos. A arte foi domada pela loucura da cultura de cancelamento e ostracizada pela estupidez de uma cultura de conservadorismo radical.

O cenário está cada vez mais escuro. Falta luz em todos as esquinas, falta utopia e irreverência. Comédia, diversão e tudo aquilo que irrita estes machos brutos que pretendem ser deuses. Falta uma resposta mais forte do que a violência. Falta ternura e amor. Falta imaginação.

Por isso, caros artistas, vamos continuar a nos cumprimentar nas galerias de arte ou nos concertos, enquanto provamos morangos e bebemos champanhe?

Ou vamos arregaçar as mangas e, finalmente, subverter com desatino e originalidade?


[1] Três Marias foram Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Para descobrir mais recomendo a leitura das Novas Cartas Portuguesas, claro, e a visualização do filme O que podem as palavras de Lu Sequeira e Luísa Marinho.

[2] pretexto aclamado nos manifestos partilhados nos fóruns geralmente frequentados por homens incel, pelos vários amoks que realizaram atentados nas escolas e nas ruas, a tiro ou por atropelamento. Segundo os incel, assim como segundo os seus líderes ideológicos, a mulher ostenta o poder da pussy. Por isso, a sua mera existência é, por si só, uma provocação. Os fóruns onde comunicam entre si, são plataformas assustadoras de ódio à mulher e de apoio à extrema direita. Para saber mais, proponho a leitura de A Revolta do Homem Branco de Susanne Kaiser.

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