Quem tem fôlego para o Milhões?
Mais um dia, mais uma senha de acesso ao céu na Terra; é mesmo em Barcelos, caso restassem dúvidas. O despertar chegou com aguaceiros algo inesperados: “isto não estava no boletim metereológico”, comentava alguém no espaço contíguo à zona de campismo.
Já foi feita alusão à total ausência de filas neste festival? No duche, nas casas-de-banho, nas cervejas, na entrada do recinto. Embandeirar-se-á a tipologia “festival de pequena dimensão”, numa forma irreflectida de tentar explicar o fenómeno. É bem mais do que isso. Há no MdF um respeito recíproco, transversal a todos os intervenientes e muito sui generis.
Tal como no alinhamento musical – onde a excusa de hierarquias é manifesta – também nas interações com o próximo isso é, por demais, evidente. Áreas restritas à parte, artistas, staff, imprensa e público convivem como velhos conhecidos – ou novos estranhos – e ainda que tal passe por mero detalhe, o resultado é um ambiente inenarrável de tão natural que é.
A miúda que ultrapassou o gradeamento que limitava a frontline e saltou para o palco, no decorrer do concerto dos Graveyard, certamente concordará. No intento de capturar o momento junto do vocalista do grupo – visivelmente encantado com o acto – materializou toda a aura latente no ecossistema próprio que reina em Barcelos por estes dias.
Fazemos um rewind na linha temporal do dia e recordamos a abertura pujante do Palco Piscina, pelos MQNQ (MMMOOONNNOOO + Quim Albergaria). O soundcheck só esteve acessível a certa (e rara) estirpe de festivaleiros, capaz de se movimentar em pleno antes das 13h, e assim aceder à piscina antes do certame musical.
Enquanto o sol se ia mostrando, Quim Albergaria ia dando umas pistas sobre o que esperar do concerto que iniciaria dentro de minutos: batidas cruas, retumbantes, repetidas. Consumadas as 14h30, grunhia o sistema de som. Envolvendo os presentes numa manta de bateria bruta e sintetizadores eléctricos, o baterista e o produtor encetaram uma exibição com muito de experimental, mesmo tendo sido capaz de expulsar os restos de preguiça que o público ia suando.
Horas mais tarde, no Palco Taina, a música era outra. Quando os Brutal Blues entraram em palco, já o arroz de cabidela tinha entrado em jogo há muito.
(Nota breve para a zona de restauração situada junto ao referido palco, onde se ia disponibilizando um cozinhado regional por dia.)
Numa sintonia invejável, a sonoridade feita a quatro mãos conta com uma bateria irrequieta e uma guitarra cujos acordes arrepiam, despertando o headbanging até do mais preguiçoso dos festivaleiros.
A abertura do Palco Milhões esteve a cargo dos Black Focus, capazes de fazer limonada com toranjas. Apesar de distantes do seu habitat natural, souberam (en)cantar para um público parco – espantado até -, entregando com mestria um jazz fresco, que uns chamarão de vanguardista, outros de experimental. Destaque para a coragem do grupo.
Por muito que vagueássemos e fôssemos surpreendidos aqui e ali, era sabido que o momento da noite estava reservado para mais tarde. 23h10, hora de Graveyard.
A prova de que o concerto da banda sueca estaria entre os momentos mais aguardados da noite, era a pequena multidão que se ia aglomerando junto ao Palco Milhões, mal bateu a hora certa. Joakim Nilsson e companhia perceberam que aquela gente estava ali para ouvir os velhos Graveyard, agarrarando-se ao álbum ‘Hisigen Blues’ com unhas e dentes.
Entraram com a faixa homónima do disco e, de seguida, “No Good, Mr. Holden” levanta os primeiros coros da plateia. Visivelmente felizes pelo regresso a Barcelos, e ao Milhões de Festa, os Graveyard atiraram-se ao seu mais recente trabalho ‘Inocence & Decadence’.
Repleto de solos orelhudos que fazem renascer os Pink Floyd ou Deep Purple. No entanto, e por oposição aos álbuns anteriores, este aproxima-se de um registo descaradamente mais pop. A passagem por ‘Lights Out’ trouxe “Goliath” e agitou as filas da frente. No final, uma passagem pelo primeiro disco ‘Graveyard’ e “Satan’s Finest” abraçou a audiência, que gerou o primeiro e único crowdsurfing da noite. “Uncomfortably Numb” acabou por ser o momento da noite, unindo público e Joakim Nilsson. A semi-balada da banda foi entoada em uníssono, não deixando ninguém indiferente às harmonias apaixonadas, de cordas distorcidas. Uma despedida, que ainda assim, soube a pouco para celebrar com a banda sueca.
É que mesmo com pouco mais de uma década de existência, os Graveyard demonstraram neste concerto já ter atingido um patamar de culto incontornável. Não que alguém ainda duvidasse disso.
Goste-se ou não, é inevitável reconhecer nos artistas que se apresentam no Milhões uma nítida aura de satisfação pessoal, por norma aquando do término dos concertos. É certamente mais gratificante tocar para poucos que ouçam, do que para muitos que derivem da principal premissa d’um festival: dar música a ouvir.
Fotografias de: João Horta e Joana de Sousa / CCA