Racismo, Fernando Pessoa e Padre António Vieira
Este texto foi lançado, em primeira mão, na newsletter do Fumaça. Se quiseres receber estas crónicas, recomendações de reportagens, podcasts e filmes no teu email, subscreve aqui.
Há três ou quatro anos, propunha-se o nome de Pessoa para um programa de intercâmbio académico de tipo Erasmus, mas que envolveria apenas alunos e universidades pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Alguns angolanos manifestaram-se contra esta intenção, alegando que Fernando Pessoa era racista. Recorreram às seguintes palavras do poeta, publicadas postumamente: «A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização.»
O Diário de Notícias pediu a opinião de alguns pessoanos. Quase todos responderam que havia um equívoco, que Pessoa não era racista. Explicaram que as frases citadas pertenciam, provavelmente, a uma personagem de Pessoa e que as suas personagens se contradiziam. Ou que as frases faziam parte de um argumento meramente teórico, sem que o polemista acreditasse realmente naquilo que escrevera. Ou que o poeta bebera demais e que, quando bebia, escrevia parvoíces, coisas que não devemos levar a sério. E que Pessoa, como todos sabemos, gostava de provocar.
É verdade que Pessoa apoiava, na teoria, certas ideias cuja realização prática rejeitaria. O teórico pôde sustentar que a escravatura fora uma vantagem para algumas civilizações imperialistas; jamais apoiaria a reintrodução dessa instituição no século XX. No entanto, as frases acima citadas («um zulu ou um landim […] não é gente») são clara e inequivocamente racistas.
A escrita de Pessoa contém uma meia dúzia de outros comentários racistas. São poucos, considerando a vasta extensão da sua obra, ao longo da qual o autor foi dizendo tudo que lhe vinha à cabeça, sem se autocensurar. Pessoa não era um racista militante e não nutria nenhuma antipatia em relação aos negros africanos. Mas era, pelo menos, passivamente racista. Achava que os negros, de alguma forma, eram inferiores.
Negar o racismo de Pessoa é desrespeitar não apenas as vítimas do racismo — é desrespeitar o próprio. É negar-lhe a sua humanidade, com tudo o que esta tem de bom e de menos bom. Pessoa não era só teorias, raciocínio e literatura; era um homem do seu tempo. Educado na colónia inglesa de Natal, onde a minoria branca justificava a opressão dos negros e indianos com base na sua pretensa superioridade, Pessoa estava praticamente predestinado a ser racista.
Entre os muitos outros assuntos que preenchem as páginas de Pessoa: Uma Biografia, trato do racismo, desde os seus primeiros indícios, ainda na adolescência do biografado, quando vivia em Durban. É um assunto que, embora desagradável, enriquece o retrato que fiz de Fernando, o rapaz, e de Pessoa, o homem. Todos nós somos pessoas complexas e o género biografia tem a grande virtude de permitir — e até de exigir — um exame honesto e completo do indivíduo em apreço.
Em 2020, a estátua do padre António Vieira, erigida no Largo da Misericórdia, em Lisboa, foi vandalizada. Nunca tinha dado por ela e fiquei boquiaberto quando soube que a decisão de mandar erguer semelhante estátua não remontava aos velhos tempos do Estado Novo, mas antes ao ano de 2017. Não subscrevo o vandalismo, mas compreendo a indignação daqueles que desfiguraram a estátua, inscrevendo nela a palavra «descoloniza» a vermelho.
António Vieira foi um homem extraordinário, por variadíssimos motivos, entre os quais a sua luta contra a escravização de indígenas pela população branca no Brasil. Ação louvável, sem dúvida. Porém, Vieira, tal como os seus colegas jesuítas, empregou todos os seus esforços na conversão dos indígenas por forma a alterar o seu modo de vida, a sua cultura originária, o que também constituiu, em si, uma violência, uma forma de exploração. Quanto aos negros africanos do Brasil, o pregador, apesar de os reconhecer como seres humanos essencialmente iguais ao homem branco, aconselhou-lhes a via da aceitação da sua condição de escravos, a qual deveria existir por alguma razão divina imperscrutável.
A referida estátua mostra-nos o clérigo jesuíta rodeado de crianças indígenas — curiosa companhia. Será que se deve ao facto de todos os indígenas terem sido vistos como crianças bisonhas da proteção de um benévolo sacerdote — um padre que foi também uma espécie de pai? Seja como for, é difícil imaginar uma representação mais paternalista do que esta e, em última análise, insultuosa, até para a memória de António Vieira.
O problema com as estátuas é que estas não conseguem mostrar as figuras esculpidas em toda a sua complexidade e no contexto em que viveram. Há uma tradição milenar de mandar erigir estátuas e, sucessivamente, de as deitar abaixo. Não é de admirar, portanto, esta recente leva de estátuas derrubadas. Faríamos bem, creio eu, se erigíssemos menos estátuas. Padre António Vieira merece ser lembrado e celebrado, mas de outra maneira. Numa biografia, por exemplo.