Re-Creio: o ar livre de que o humor precisava

por Comunidade Cultura e Arte,    27 Julho, 2020
Re-Creio: o ar livre de que o humor precisava
Miguel Esteves Cardoso e Bruno Nogueira – Fotografia da organização H2N

Lisboa foi finalmente palco de um novo Festival de Humor e, Covid-19 oblige, ao ar livre. O campo de rugby do Jamor foi adaptado para receber as 3500 pessoas que por lá passaram entre os dias 23 e 26 de Julho, com o devido distanciamento e fluxos de entrada e saída bem definidos e necessários.

Ao primeiro toque para o Re-creio surge Luana do Bem. A humorista abriu o espetáculo de Salvador Martinha, com cerca de 20 minutos de stand-up. Apesar de ainda não ter a experiência de humoristas já consagrados, Luana do Bem já está bastante à vontade em palco e demonstra uma identidade na maneira como se expressa em palco. Tem atuado muitas vezes em bares de Lisboa, mas também já foi ao “Levanta-te e Ri”, na SIC, e apresenta o Curto Circuito, na SIC Radical. Tem também uma rubrica no YouTube – “As Fases da Lua” – e um espaço no “Relatório DB”, de Diogo Batáguas, sendo ambos agenciados pela KILT.

De seguida surge a estrela da noite – Salvador Martinha. O humorista que, em nome próprio, tinha estado afastado dos palcos desde “Cabeça Ausente”, compôs muito bem o estádio de rugby do Jamor. A sua energia não desapareceu com o hiato e fez stand-up por mais de 1 hora e 15 minutos. Grande parte do texto (se não a totalidade) era novo, com alguns temas a serem repescados de “Stand-up na Hora”, a rubrica que tem nas manhãs da RFM. Salvador Martinha não desiludiu, só confirmou que está cada vez mais livre em palco – e dá gosto ver este desprendimento.

Salvador Martinha (Gustavo Carvalho/CCA)

Salvador Martinha – Fotografia de Gustavo Carvalho/CCA

O segundo dia de festival começou ao final da tarde, com Eduardo Madeira e A Pipoca mais doce. Se Eduardo Madeira se cingiu mais à guitarra, a letras irónicas, sarcásticas e por vezes um pouco ultrapassadas, também é verdade que não teve ali laivos de inspiração e acabou por não fazer jus ao portento humorístico que sabemos ter. O mesmo sucedeu com a A Pipoca Mais Doce. A influencer-blogger-humorista-agora comentadora do Big Brother é sarcástica, tem um humor muitas vezes cáustico e escreve muitíssimo bem. Mas o tom condescendente que imprime ao seu stand-up não é o mais agradável; as bengalas da linguagem que usa e o tom são algo repetitivos e estão nos antípodas da espontaneidade e – sejamos francos – humor que vemos, por exemplo, quando comenta, sem qualquer filtro, a prestação de um ou outro concorrente mais polémico do reality show da TVI. Quase que preferimos que não tenha um texto pré-definido, mas que improvise, livremente, como se estivesse a comentar a vida dos outros com os amigos.

Mas todas e quaisquer desmotivações que possam ter sido sentidas na primeira sessão do dia foram totalmente anuladas com a conversa de Beatriz Gosta e Rita Blanco. Marta Bateira, conhecida como Beatriz Gosta, tem vindo a fazer um percurso bastante interessante, captou ideias do confinamento e aperfeiçoou-as nas entrevistas em lives no Instagram, aqui e ali. Agora, aproveitou para catapultar o que aprendeu para o palco e o resultado não podia ter sido mais agradável e inteligente, com o à-vontade que lhe é característico e muito adjuvado pela Rita Blanco. Foi uma conversa bonita, honesta, interessante, com Rita Blanco a revelar o que raramente revela em público, com a dose certa de activismo ambiental por parte da actriz, com a dose certa de rebeldia e com a naturalidade que as duas emanam.

Rita Blanco e Beatriz Gosta (Gustavo Carvalho/CCA)

Rita Blanco e Beatriz Gosta – Fotografia de Gustavo Carvalho/CCA

No mais aguardado dia de Re-creio, que prometia um encontro entre Miguel Esteves Cardoso e Bruno Nogueira, coube a Tiago Almeida estrear o palco. O humorista fez a primeira parte de Carlos Coutinhos Vilhena. À semelhança de Luana do Bem, ainda está a dar os primeiros passos na stand-up comedy. Parte do texto que usou em palco tem sido rodado por vários bares em Lisboa, mas também já atuou no Porto. Tem ainda um podcast – “Prisão Preventiva” – onde junta o humor com a sua formação de advogado. Não comprometeu e passou bem o testemunho.

Ao final da tarde, Carlos Coutinho Vilhena subiu a palco. Seria de esperar mais público no Jamor, mas ainda assim o espetáculo não pecou por isso. Para além de experimentar algum texto de stand-up novo, criou momentos com o público, ao pedir perguntas e ao chamar uma pessoa a palco. Mais uma prestação sólida de um dos humoristas de topo da nova geração, que este ano abriu para Bruno Nogueira, no Altice Arena. E o sucessor em palco voltou a ser o responsável pelo “Bicho”, com a companhia do aniversariante Miguel Esteves Cardoso.

Carlos Coutinho Vilhena

Carlos Coutinho Vilhena – Fotografia de Linda Formiga/CCA

Miguel Esteves Cardoso e Bruno Nogueira voltaram a encontrar-se em palco para revisitar o programa da RTP “Fugiram de Casa dos seus pais”. A última vez que os tínhamos visto juntos em palco havia sido, justamente, no último grande festival de humor em Lisboa, no “The Famous Fest”. As saudades foram ultrapassadas com a espontaneidade, nonsense e irreverência da dupla. É um gosto imenso ver a linha de pensamento totalmente distorcida, que muitas vezes até pode parecer superficial, mas não o é. São dissertações sobre as pequenas coisas, os pequenos prazeres, os pequenos caprichos, que nos tornam humanos, falíveis e risíveis, sem que nos apequenem a condição. Em dia de aniversário do Miguel Esteves Cardoso – com direito a que se cantassem os Parabéns para deleite do aniversariante -, tivemos mais uma vez a certeza de que é uma dupla que queremos revisitar uma e outra vez, pelo sarcasmo de ambos e pelo orgulho com que despojada e inteligentemente fazem a tão humana smalltalk.

Para fechar o Re-creio, Diogo Batáguas e Guilherme Geirinhas juntaram-se em palco para uma conversa sobre temas propostos pelo público e ainda alguns jogos interativos, em que competiam um com um outro. No final deu empate. Os dois humoristas decidiram experimentar este novo formato, sem stand-up. Acreditamos que o espaço possa ter influenciado essa decisão, visto que não ser o ideal para stand-up: normalmente querem-se espaços fechados, com as pessoas juntas, para potencializar o riso. Devido às restrições impostas pela pandemia, este foi o melhor espaço possível, e os dois humoristas acabaram por dar bem a volta ao assunto, ficando com um formato que pode funcionar para outros propósitos.

Guilherme Geirinhas e Diogo Batáguas (Gustavo Carvalho/CCA)

Guilherme Geirinhas e Diogo Batáguas – Fotografia de Gustavo Carvalho/CCA

O Re-creio levou o humor ao ar livre, mas também o ar livre ao humor, que estava a precisar de sair de casa, para respirar. Depois do “The Famous Fest”, a H2N voltou a apostar num festival de humor, que cumpriu eximiamente com as regras necessárias, e saiu por cima. Quem sabe, talvez se volte a ouvir o toque para o Re-creio.

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Texto: Linda Formiga e Gustavo Carvalho

 

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