Refugiados: um risco ou uma oportunidade para a União Europeia?
A parceria entre a Federação Nacional de Estudos Europeus (FNEE) e a Comunidade Cultura e Arte tem como objetivo alertar, questionar e debater questões sobre a União Europeia. Foi por isso que desafiámos três personalidades a darem o seu ponto de vista sobre a problemática da crise dos refugiados e sobre os desafios e vantagens que nos poderá trazer. Em primeiro lugar, temos a opinião de Vasco Malta, na qualidade de Chefe da Missão da Organização Internacional para as Migrações em Portugal, seguida da opinião de Rafael Dias, licenciado em Estudos Europeus com menor em economia na Faculdade de Letras da UC, Vice-Presidente da Juventude Popular (JP), e de João Maria Jonet, licenciado em Ciências Políticas e Relações Internacionais.
“Migrantes: vamos falar de factos?” por Vasco Malta, chefe da Missão da Organização Internacional para as Migrações em Portugal.
Todos os dias ouvimos falar de migrantes. Muitos poucos sabem exatamente o que significa. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações — a Agência das Migrações da Nações Unidas — não existe uma definição comum na legislação internacional, mas o termo “migrante” reflete o entendimento generalizado de uma pessoa que se move do seu local de residência habitual, quer seja dentro de um país ou para outro país, de forma temporária ou permanente pelas mais variadas razões.
O termo inclui ainda várias categorias legais reconhecidas e definidas do ponto de vista legal tais como migrantes laborais e também outras categorias que poderão não estar especificamente definidas na legislação internacional como por exemplo estudantes internacionais.
A conceptualização dos motivos que levam uma pessoa a migrar é dinâmica e reflete a interação entre vários fatores que têm que ver com o individuo, com o contexto onde se insere e que interferem em todo o processo migratório. Os “motivos ponderados” influenciam a decisão de migrar quer o processo migratório seja interno ou internacional, regular ou irregular, temporário ou permanente. O termo é usado de forma comum pela academia, decisores políticos e profissionais para descrever as condições que progressivamente contribuem para a migração. Podem também ser entendidos como os “determinantes” para o processo migratório. Quando falamos de motivos para a migração poderemos estar a falar de um desejo positivo de mudança que inclua empreendedorismo, reagrupamento familiar, mas também uma reação a uma determinada emergência que poderá estar relacionado com a pobreza, insegurança alimentar, desastres naturais, etc.
Existirão, no mundo, cerca de 272 milhões de migrantes internacionais (dados de 2019 de acordo com a UN DESA), 52% são homens e 48% mulheres, sendo que a grande maioria (74%) são adultos entre os 20 e 64 anos.
Em Portugal, o stock de migrantes em 2019, segundo dados do SEF, era de 590 348, total esse que tem vindo a aumentar nos últimos anos – de 2018 para 2019 o aumento foi de 22% – sendo que, parece clara a tendência de crescimento, como é facilmente observável em 2020, ano em que a população estrangeira a residir em Portugal aumentou 12%, mesmo considerando o impacto da pandemia e as restrições à mobilidade global associadas. Assim, de acordo com os últimos dados, teremos em Portugal, cerca de 660 mil imigrantes com uma autorização de residência.
Na Europa, de acordo com algumas estatísticas da UE, estima-se que 20 a 25 milhões de terceiros nacionais vivam na UE, o que equivale a 4% a 5% da população total da UE. No entanto, a população europeia tende a sobrestimar a presença de imigrantes nos seus países numa proporção de 2 para 1 e, de acordo com o barómetro 469 da EU – 76% dos europeus consideram que existem tantos ou mais migrantes irregulares como migrantes regulares.
É inegável que a migração se tornou um tema central para a Europa (infelizmente nem sempre pelos melhores motivos), mas trata-se um tema que provavelmente regerá as políticas e agendas políticas por muitos anos. Por isso mesmo, a migração é também cada vez mais apresentada, tanto em debates públicos como de peritos, como um desafio que requer respostas europeias coordenadas, envolvendo tanto os Estados-Membros como as instituições europeias. Defendo, por isso, a necessidade de continuar a construir as bases de uma política migratória mais inteligente e abrangente que não deve basear-se apenas em emergências, mas sim numa base forte cooperação entre a UE e os Estados-Membros.
Termino, como comecei: O que é um migrante? Bem… de uma forma ou de outra, e usando a expressão de Mohsin Hamid: Todos nós somos migrantes ao longo do tempo. Sem exceção.
“Refugiados” por Rafael Dias, licenciado em Estudos Europeus com menor em economia na Faculdade de Letras da UC, Vice-Presidente da Juventude Popular (JP).
A maturidade e a experiência empírica que a vida nos oferece vai-nos consolidando a ideia fundamental de que — e a política como fenómeno extensível às mais variadas temáticas não é excepção- nada é a preto e branco, o cinzento é quase sempre a tonalidade predominante em qualquer análise. Desta feita, a crise dos refugiados é tanto um risco como também pode constituir uma oportunidade, o que se deve esperar das chefias políticas nacionais e internacionais é a sapiência e moderação com que encaram este problema — agora ainda mais estrutural dado o regresso da política externa bélica com a nova administração americana (tendo já retomado os bombardeamentos em solo sírio) —, livres do ruído e da histeria do politicamente correcto da espuma dos dias.
Para uma abordagem séria do problema dos refugiados urge, desde logo, fazer a destrinça entre refugiados económicos, refugiados políticos e refugiados humanitários, bem como encarar o dilema hobbesiano entre Estado e a sua segurança, aqui consubstanciado no acolhimento de indivíduos estranhos à nossa cultura, valores fundacionais e padrões ético-morais. Se o dever moral de solidariedade, que emana das raízes judaico-cristãs da sociedade ocidental, para com aqueles que se viram espoliados dos seus lares, separados das suas famílias, privados dos seus meios de subsistência e que fogem da guerra é um imperativo categórico que merece uma resposta conjunta dos estados e das organizações internacionais a que dão vida, o mesmo critério não se deve aplicar aos restantes casos que, como se sabe, têm regras e trâmites acordados internacional e nacionalmente a que devem obedecer. Não devendo coibir-se os estados ocidentais de pedir responsabilidades políticas aos responsáveis pela desestabilização geopolítica e patrocínio bélico de pretensos rebeldes “democráticos” que ninguém conhece verdadeiramente, aqui convém lembrar o caso da Líbia, durante tanto tempo nas bocas do mundo, que hoje constitui um trágico caso de um Estado falhado, controlado por gangues e bandos de mercenários ao serviço de interesses promíscuos e desconhecidos da cena política. É, por isso, em primeiro lugar, dever das chefias políticas portuguesas e europeias impedir que casos como o da Síria ou do Iémen não se transformem funestamente em novas Líbias, pois poucas dúvidas restarão quanto à vontade dos refugiados humanitários que desembocam nas nossas costas de restituir os seus lares e laços familiares nas suas terras natais.
É, também por isso, fundamental não tratar por igual o que é diferente nem contribuir para a confusão que pode dar aso a ameaças externas à nossa segurança, das nossas famílias, dos nossos vizinhos e amigos e, por maioria razão, de todos os nossos compatriotas, além da imoralidade que acarreta ignorar os problemas de subsistência socio-económica de muitos portugueses sem tecto, sem salário, à mercê da miséria. Pelo que a nossa solidariedade singela não deve, em circunstância alguma, transformar-se em ingenuidade perigosa — todos nós temos na memória as violações e assaltos sexuais bárbaros que ocorreram em Colónia, Alemanha, na passagem de 2015 para 2016 — e injusta para quem entre nós sofre na pele as mais amplas injustiças económicas que vão da mendicidade à precariedade, e nenhum destes portugueses deve ser obliterado face a qualquer imigrante económico que, estando no direito de poder procurar uma vida além-fronteiras, deve ser sujeito às regras há muito estabelecidas por todos os estados para a imigração. Afinal, por detrás de qualquer veleidade romanceada não pode ser escamoteada a realidade crua dos factos de quem sofre entre nós.
“A minha vida por um passaporte” por João Maria Jonet, licenciado em Ciências Políticas e Relações Internacionais.
A ideia de um Mundo sem fronteiras, como todas as ideias que tornam o Mundo mais justo, tende a ser caricaturada por aqueles cuja maior prioridade política é a manutenção de privilégios que nada têm a ver com mérito e tudo têm a ver com sorte.
Convencionou-se, há relativamente pouco tempo, que para além do conceito de propriedade privada temos um conceito semelhante para os Estados, dando-lhes o direito de erguer muros de forma a proteger as “comunidades nacionais” de qualquer “impuro” que se apresente para tentar entrar. Engraçado, se considerarmos que o Estado-Nação é uma invenção propagandística do Século XIX.
Dirão, os historicistas da loja dos 300, que sempre que houve entidades políticas houve muros e que faz todo o sentido vedar a entrada de espaços políticos a quem não lhes pertence. Não me parece propriamente verdade. Se assim fosse, Marco Polo não tinha passado de Pola e Fernão Mendes Pinto tinha de inventar com mais criatividade, porque também não ia além de Badajoz.
A verdade é que as migrações foram sendo interpretadas com base nas intenções dos migrantes. Se a investida não fosse bélica, a coisa fazia-se sem problema. Se fosse, aí já teria de haver batatada.
É cómico para quem lê defensores da preservação das identidades nacionais e da matriz étnica das sociedades ler também um bocadinho de História do Mundo. De forma mais ou menos violenta, as pessoas sempre se juntaram livremente em comunidades em que a pureza genética era mito. Aliás, é particularmente cómico num País em que foi precisamente essa herança multicultural que permitiu a sua viabilidade histórica.
Os que reclamam a herança de D. Afonso Henriques e incham o peito com os Descobrimentos, esquecem que o pai do primeiro veio de França sem ser importunado na alfândega e que os segundos não se faziam sem tecnologia desenvolvida no Médio Oriente.
E não é só pela História que se vê o disparate.
Empaticamente falando, é difícil defender que uma pessoa que procura uma vida melhor para a família deixa de ser “legal” porque não cumpriu um processo burocrático. Isto condena às sombras estas pessoas, criando um mercado negro que desumaniza e vota à vulnerabilidade quem já estava frágil. Isto faz particular comichão ao meu liberalismo, mas não me faria menos nos meus tempos de catolicismo conservador.
Podem dizer que os argumentos humanos ou históricos não vos dizem nada e que a política não se faz de emoção, mas sim de razão.
Tudo bem, racionalmente há poucas coisas que façam mais sentido do que a liberdade de movimentos. O economista Michael Clemens tem um estudo a mostrar que o fim de todas as fronteiras duplicaria o PIB global. A avaliar pela experiência da União Europeia é difícil contra-argumentar. A ausência de fronteiras físicas permitiu que o local de nascimento não seja um entrave ao talento e ao trabalho.
Numa Europa envelhecida, fechar-nos sobre nós próprios representa um suicídio social e cultural, condenando-nos a uma morte lenta, mas com um fim potencialmente abrupto, quando aqueles a que fechámos egoisticamente as portas nos ultrapassarem.
A experiência europeia mostra que o fim das fronteiras não representa a anarquia total. Teses apocalípticas sobre a abertura de fronteiras a outras partes do Planeta tresandam a darwinismo social.
Acabar com fronteiras não significa acabar com o Estado ou com forças de segurança. Não pressupõe acabar com a regulação dos comportamentos sociais que atualmente existem nem com a vigilância perante potenciais crimes. Significaria apenas que quem se quer mover sem intenções violentas entre territórios o pode fazer, sem limitações burocráticas que impeçam que o talento impere sobre a sorte.
Isto depende claro, se achamos que ser português, europeu ou qualquer outra coisa está diretamente ligado a valores humanistas e respeito pelo próximo ou se escolhemos definir a nacionalidade com base na cor de pele, na fé ou no signo. Eu não acredito neste tipo de discriminação arbitrária, até porque não quero levar com ela. Quem a defende devia fazer uma auto-avaliação para perceber se defenderia uma “Europa Fortaleza” se estivesse do outro lado da porta.