Relembrar o western clássico, ‘o cinema americano por excelência’
«O western ou o cinema americano por excelência». Foi assim que André Bazin intitulou um dos seus artigos, afirmação que nós podemos corroborar, não apenas pelo estatuto do western clássico americano enquanto um dos primeiros géneros narrativos da história do cinema. Esta afirmação prende-se também pela maneira como o western concentra em si características profundamente enraizadas na identidade norte-americana – nomeadamente o saudosismo relativamente ao passado dos Estados Unidos da América, que é materializado na fundação de um universo mitológico, recheado de símbolos e elementos profundamente enraizados no imaginário norte-americano, e, concomitantemente, pela influência que deteve noutros géneros que se desenvolveram nos Estados Unidos da América.
As suas convenções cinematográficas invadiram, desde a comédia e o musical, ao filme de gangsters (este último, através da representação do herói individualista, que vive segundo as suas próprias regras) ao terror e à ficção científica (lembremo-nos de Forbidden Planet (Planeta Proibido, de 1956), de Fred M. Wilcox, que reúne várias convenções do género). Alastrando-se além das fronteiras norte-americanas, o western pode afirmar a sua importância enquanto fonte de influência de outras cinematografias, como a japonesa (os filmes de samurais de Akira Kurosawa ou Masaki Kobayashi), ou a brasileira (os “filmes de cangaceiros”). Subsequentemente, as imitações directas do western norte-americano por algumas cinematografias, sendo o caso mais conhecido a cinematografia italiana, com o western spaghetti, onde encontramos, na sua vasta produção, Sergio Leone, o realizador mais afamado, trouxe Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo (O Bom, o Mau e o Vilão, de 1966) e C’era una volta il West (Era Uma Vez no Oeste, de 1968).
As paisagens do oeste norte-americano, sobretudo o Texas e o Arizona, tornam-se o palco destas histórias que remontam ao período da Guerra Civil Americana e aos processos de expansão das fronteiras internas da nova nação, inspiração que Roland Barthes enuncia a partir da maneira como o western projecta os cenários numa opção estética que naturaliza as políticas oficiais de expansão e a conquista territorial e do “Destino Manifesto” – através do qual o mito vai transformar o ideológico em algo aparentemente natural. Testemunha-se, simultaneamente, uma forte ligação com os valores rurais que se mantêm até àquele que é considerado o filme final do western clássico norte-americano, The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem que Matou Liberty Valance, datado de 1962, realizado por John Ford. Neste filme, Hallie (Vera Miles), no final do filme, reage com alegria quando Ransom (James Stewart) lhe propõe que abandonem Washington, a fim de irem viver para Shinbone, local onde ela sempre viveu. «As minhas raízes estão aqui. O meu coração está aqui», responde Hallie. Mesmo neste filme, que “encerra” o western clássico norte-americano, continuam presentes os fortes valores rurais, ainda que as paisagens mais idiossincráticas do western sejam talvez os desertos, o Monument Valley – no fundo, o Oeste selvagem que representa o habitat do cowboy errante, ao qual ele sente pertencer, não obstante lhe lançar árduos desafios.
O protagonista destas histórias vai ser o cowboy ou o westerner, figura ícone do Oeste Selvagem, ou do Velho Oeste, que combate a corrupção da sociedade humana que é representada ora pela autoridade, ora pelos foras-da-lei ou marginais que dominam a justiça. Exemplos disso são The Westerner (A Última Fronteira (1940), de William Wyler), ou The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem que Matou Liberty Valance (1962), de John Ford). O protagonista é o mesmo que enfrenta as “forças da natureza” que se imiscuem na sua travessia, como os desfiladeiros, a chuva, a neve, os rios, os índios, os animais, como verificamos em The Big Trail (A Pista dos Gigantes (1930), de Raoul Walsh), Red River (Rio Vermelho (1948) de Howard Hawks), ou The Searchers (A Desaparecida (1956) de John Ford), só para citar alguns exemplos. Todavia, para se compreender melhor o western, é necessária uma retrospectiva da sua evolução na história do cinema, a fim de melhor compreendermos como se formaram as suas convenções, assim como o simbolismo colectivo do género – seja através da representação da figura do cowboy, do westerner, ou através da representação do Velho Oeste, universo que funde várias épocas e regiões do oeste norte-americano, criando um mundo mitológico com o qual o público norte-americano se identificava fortemente.
O “primeiro” western, e aquele que representou o berço do género, foi The Great Train Robbery (O Grande Ataque ao Comboio do Ouro (1903) de Edwin S. Porter), que já antecipava a dimensão que esse género iria deter, no futuro. Este filme contava a sua história “visualmente”, isto é, sem recurso a intertítulos, e Edwin S. Porter já utilizava a montagem para efeitos dramáticos, num período em que não tinham sido feitos os grandes estudos das potencialidades da montagem. Além disso, a maneira estilizada como eram feitas as transições interior/exterior, e a meticulosa construção da tensão fizeram deste filme um dos pioneiros do género. The Great Train Robbery constituiu-se uma forte influência para os filmes seguintes do género, além de ter apresentado Max Aronson, a primeira grande estrela do western, cuja personagem já reunia as convenções e características essenciais do cowboy.
Posteriormente, Max Aronson dará vida, numa série de filmes de um rolo, a Bronco Billy, protagonista de filmes que iriam definir o padrão da trama e os aspectos técnicos característicos do género. D. W. Griffith e Thomas Ince, pouco referidos pela sua importância particular no western, vieram combater as críticas que eram feitas ao género – relativamente ao facto de os filmes se estarem a tornar repetitivos – ao realizarem filmes inovadores dentro do género. O western estava em plena expansão, e não demorou muito até que se afirmasse como um dos géneros mais profícuos do cinema norte-americano. Griffith e Ince, dois dos realizadores mais importantes deste período, viram no western um forte potencial cinematográfico, utilizando as suas qualidades e inovações técnico-narrativas para o enriquecer. Foi com o western que Griffith introduziu e aperfeiçoou muitos dos seus recursos técnicos e narrativos, concedendo ao género uma multiplicidade de meios para desenvolver as suas histórias sem que estas se tornassem repetitivas.
Além dos aspectos técnicos, sobressai igualmente a influência que as transformações culturais do país tiveram na construção do mundo mítico que é o Velho Oeste; e essas transformações culturais na sociedade norte-americana acabarão por influenciar determinantemente a evolução do género. Nos anos trinta, quando John Ford, James Cruze, Wesley Ruggles ou Raoul Walsh se revelaram, o percurso do cowboy encontrava-se bem traçado. Mesmo apesar da pequena estagnação do western aquando da oficialização do sonoro (se Edwin S. Porter não recorreu a intertítulos no seu filme The Great Train Robbery, foi porque desde logo percebeu que o western era um género, sobretudo, visual) depressa se assumiu que o trabalho de sonoplastia era crucial para reforçar a intensidade dramática da acção – os sons dos tiroteios, das perseguições a cavalo, a banda sonora. Logo nos inícios da década de 30, John Wayne tornou-se o símbolo lendário do western, posição que ocupou até à exaustão do género. Médias-metragens como West of the Divide (1934), The Trail Beyond (1934) ou Texas Terror (1935), todos de Robert N. Bradbury, entre muitos outros, supriram a nova era pós-sonora, aperfeiçoando as fórmulas – o herói solitário, a devoção à família, a vingança, como verificamos em West of the Divide, filme em que John Wayne dá vida a um cowboy sensível que procura vingar a morte do pai.
O cowboy de ideais ordeiros, devoto a um firme código de honra, sensível, humano, continua a ser o padrão a seguir, ainda que ele venha a sofrer uma metamorfose, anos mais tarde, quando o público e as transformações socioculturais assim o exigirem. Relembramo-nos de Stagecoach (Cavalgada Heróica (1939), de John Ford), filme que, ao explorar as potencialidades do western, apresentou um meticuloso exercício visual e sonoro, e também uma complexa e diversificada galeria de personagens, muitas delas figuras célebres do género: o médico alcoólico, o covarde, o banqueiro corrupto, a dondoca, a prostituta bondosa, o Sheriff, e, por fim, Ringo, o herói protagonizado por John Wayne, que procura vingar o assassinato do irmão e escapar de uma condenação injusta. A sua secura férrea, que não é intrínseca, mas fruto da injustiça e das desilusões que ele sofreu, é uma marca idiossincrática da personalidade do cowboy em vários destes filmes, como verificamos em The Searchers, também de John Ford. Todavia, essa peculiaridade não compromete o seu código de honra, os seus princípios, os seus valores; e, a determinado momento do filme, ele acabará por se revelar o elo central do reequilíbrio moral e social dos que o cercam. Neste sentido, Cavalgada Heróica vai rimar com The Big Trail, de Raoul Walsh, ao colocar o cowboy em conflito, não só com a “natureza” (em Cavalgada Heróica, os índios que perseguem a diligência) mas também com a corrupção da sociedade “civilizada” onde ele vive.
A exaltação da importância do western enquanto género cinematográfico vai ser indissociável do aperfeiçoamento visual e técnico. E, em filmes como Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray, The Searchers (1956) de John Ford, Rio Bravo (1959) de Howard Hawks, ou How the West was Won (A Conquista do Oeste (1962) de John Ford, Henry Hathaway e George Marshall), só para citar alguns, a cor concederá à narrativa uma dimensão de grandiloquência. Como vemos pelas palavras de João Bénard da Costa, a propósito de Johnny Guitar, «o contraste dos encarnados, dos verdes e dos castanhos (…) a prodigiosa presença do décor gruta, alucinantemente barroco, simultaneamente mausoléu, bordel e casa de feitiços». Este é um filme de “anti-heróis” (ainda que a protagonista e a antagonista estejam bem delineadas), que parece repercutir ainda as “mazelas” do fundo pessimista que alguns autores desvendam no western a partir da década de quarenta (se A Cavalgada Heróica de John Ford já tinha um fundo pessimista, apesar de ser encerrado com uma visão optimista, isso acabaria por mudar) quando o cowboy, mesmo depois de procurar uma reconciliação entre os dois polos da civilização, se apercebe que o melhor a fazer é seguir o seu próprio código de honra.
Essa revisitação da “fórmula clássica”, que urgiu por altura da Segunda Guerra Mundial, e que tingiu filmes como The Westerner(1940), de William Wyler, My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes (1946) de John Ford), ou High Noon (O Comboio Apitou Três Vezes (1952) de Fred Zinnemann), acabaria assim por redefinir todo o género. Ethan (John Wayne), em The Searchers (1956) é um personagem que nasce desse fenómeno, projectando a inadaptação do westerner à modernização, aos novos valores da sociedade norte-americana, que é talvez análoga do próprio desgaste do género, que seria “encerrado” poucos anos depois com O Homem que Matou Liberty Valance (1962).
São muitas as transformações que o cowboy – ou o westerner – sofre na década de cinquenta, assim como o próprio género. A Man of the West, de Anthony Mann), vai apresentar um cowboy que pertenceu a um grupo de marginais ou foras-da-lei, mas que acabou por mudar o seu código de honra. Por sua vez, Rio Bravo (1959) de Howard Hawks, juntamente com A Desaparecida, vai assumir-se uma das mais célebres expressões da versatilidade do western que nos referiu Gilles Deleuze, quando o considerou um género que explorou todas as direcções: o épico, o trágico, o romanesco. Em Rio Bravo, recordamo-nos dos amanheceres e dos crepúsculos que encadeiam o quotidiano dos personagens, recordamo-nos da canção My Rifle, My Pony and Me. Já em A Desaparecida, essa comunhão trágico-épica-romanesca, conjugar-se-á no que será talvez um ensaio do destino do cowboy, agora envelhecido, desgastado, incompatível com o mundo que o cerca – a duradoura e melancólica travessia de Ethan pela aridez dos desfiladeiros e das planícies desertas e pela neve que reveste as montanhas. A seu lado, as charnecas em A Desaparecida poderão ser também a própria travessia do espectador ao encontro do “novo” Oeste da futura era pós-Liberty Valence – o Oeste de autores como Sam Peckinpah e Robert Altman.