Reportagem. As dobragens em Portugal: a indústria existe, mas em pequena escala com salários cada vez mais reduzidos

por Ana Monteiro Fernandes,    11 Novembro, 2024
Reportagem. As dobragens em Portugal: a indústria existe, mas em pequena escala com salários cada vez mais reduzidos
Son Goku e Vegeta em “Dragon Ball”

A história da dobragem em Portugal ganhou um novo impulso nos meados dos anos 90, apesar de alguns trabalhos prévios realizados pelos canais de televisão, nomeadamente a RTP. “O Rei Leão”, da Disney, foi a primeira longa metragem animada a ser dobrada em Portugal e, a partir desse momento, os filmes animados passariam a ser dobrados em português europeu. O “Dragon Ball”, transmitido pela SIC, estabeleceu um marco mas, actualmente, será que se pode falar de uma indústria em Portugal e será que os actores de dobragens conseguem viver apenas desse trabalho? Os actores avisam que os cachés são menores. Alguns conseguirão, mas uma parte significativa não, ou apenas conseguiria se conseguisse garantir as dobragens de um leque alargado de séries. Desde “O Rei Leão”, passando pelo “Dragon Ball”, sem esquecer as plataformas de streaming, a Comunidade Cultura e Arte (CCA) falou com alguns dos principais actores de dobragens.

Os desenhos animados fazem parte da infância e, não raras as vezes, acompanham também a vida adulta de quem gosta do género, nem que seja nas alturas em que a nostalgia nos impele a procurar aquela canção ou aquela cena em especial que nos emocionou ou marcou para sempre. Podem ensinar e podem entreter, fazem parte do crescimento emocional também, criam-se memórias e, claro, associações com momentos geralmente mais despreocupados, durante os quais se desfrutava daquela felicidade simples de ser fim-de-semana, o que significava que se podia estar descansado a tomar o pequeno-almoço enquanto se viam os “bonecos” da manhã. Ou então, significavam a alegria sentida, quando se chegava à escola e a professora ou o professor dizia que, naquele dia, era para se ir ao cinema numa sessão escolar, porque o grande filme do qual todas as crianças falavam tinha, finalmente, chegado à cidade.

À magia do desenho, junta-se a afinidade que se cria com a voz, que é responsável pelo cariz humano da imagem. Ao recordarmos um personagem animado, é muito comum pensar-se logo no timbre da voz e tenta-se imitá-lo em brincadeiras com os amigos. Também é verdade que, muitas vezes, certas entoações ou inflexões usadas na fala provocam uma reacção e emoção, além de poderem contar uma piada só por que sim ou despertar um riso instantâneo que não pede licença para se exprimir. Ou seja, quer se trate ou não da voz original do personagem, aquela voz passa a ser responsável por uma identidade. Mesmo que um desenho animado seja produzido num país diferente, com uma voz original distinta, o vínculo especial é estabelecido com a voz com a qual as crianças associam o seu personagem de eleição, e são essas vozes as responsáveis, muitas vezes, por estabelecerem a ligação necessária com o contexto cultural no qual as crianças estão inseridas.

Desde o “Rei Leão” até ao “Dragon Ball”, passando por séries mais recentes como “Lilo & Stitch” e longas metragens como “Turning Red: Estranhamente Vermelho”, a indústria das dobragens ganhou um novo impulso desde os anos 90 e tem evoluído desde então. A Comunidade Cultura e Arte falou com alguns dos principais dobradores da praça para, assim, perceber como é que, em meados dos anos noventa, esta indústria ganhou um novo impulso com a primeira longa metragem animada dobrada, “O Rei Leão”, e o fenómeno anime “Dragon Ball”, passando pela evolução das dobragens em Portugal e os desafios do presente com o streaming.

As dobragens em Portugal e o impulso dos anos 90. “O Rei Leão”, a primeira longa metragem a ser dobrada: “Para cada personagem tivemos de escolher três vozes, porque eles pediram assim, mas depois de as encontrarmos, o processo correu bem, normalmente.”

Eram os meados dos anos 90, mais propriamente 1994 e, pela primeira vez, Portugal teve a oportunidade de realizar a sua primeira dobragem para um filme animado, “O Rei Leão.” Como Carlos Freixo, a voz do personagem “Simba” e o director de dobragens do filme da Disney, relembrou à CCA, “já tinham sido feitas dobragens para a RTP. Naquela altura já existiam a SIC e a TVI, e já tinham sido feitos trabalhos para as televisões, mas nunca tinha sido assim para cinema com esta dimensão.” O fim dos anos 80 e os anos 90 também são comumente chamados como a “Renascença” da Disney com os filmes “A Pequena Sereia” (1989), “A Bela e o Monstro” (1991), “Aladdin” (1992), “O Rei Leão” (1994), “Pocahontas” (1995) e Mulan (1998). A história de Simba, Nala, Mufasa e Scar estabeleceria, então, um marco, uma vez que se deixaria de receber as dobragens feitas pelo Brasil e Portugal passaria a ter as suas.

Carlos Freixo / DR

Mas porquê esta altura para a realização da primeira dobragem portuguesa? Carlos Freixo relembra que “o estúdio para o qual trabalhava, o ‘Estúdio da Matinha’, era filial de um grupo espanhol”. Pelas suas próprias palavras, afirma que “os espanhóis já tinham passado pelo mesmo processo há uns anos. Os estúdios espanhóis estavam a trabalhar com a Disney e nós, na altura, também já tínhamos alguns trabalhos para a Disney, mas para televisão. Suponho que tenha sido a parte comercial do estúdio que tenha pensado desta forma: ‘temos um estúdio em Portugal. Já que fazemos os trabalhos de dobragem em Espanha, podemos fazer também em Portugal. Aí a Disney pediu para experimentar”, recorda Carlos Freixo.

Esta era uma altura em que, embora já existissem trabalhos de dobragem para televisão, Portugal ainda não tinha uma indústria propriamente dita: “Tínhamos muita poucas dobragens, tínhamos três estúdios em Lisboa, maiorzinhos, e depois uns pequenos. Havia a RTP, a SIC encomendava, a TVI encomendava e havia, portanto, muito pouco mercado”, revela Carlos Freixo.

Raul Barbosa, fundador da empresa de dobragens “On Air”, estava no cinema Tivoli quando estreou “O Rei Leão” e confessa o espanto da altura, tal como muitos portugueses ficaram espantados, uma vez que era de assinalar esta dobragem em português europeu, já que recebíamos as dobragens do Brasil. Relembra os trabalhos já desempenhados para a RTP, como a “Heidi” ou a própria “Rua Sésamo”, mas não existia uma pequena indústria como hoje existe. “Isto é fantástico”, pensou Raul Barbosa na altura. A par do “Rei Leão”, o fundador da “On Air” relembrou também o “Ar de Rock”, de Rui Veloso, o que representou na altura em que foi lançado, e afiançou que quando os conteúdos têm qualidade em português, as pessoas aderem.

“O Rei Leão” (1994), filme de Roger Allers e Rob Minkoff

Mas uma vez lançada a possibilidade para a realização da primeira longa metragem animada em português, o processo de casting seria fulcral, caso contrário voltaríamos às dobragens do Brasil. Carlos Freixo considera que o primeiro desafio foi encontrar as vozes, uma vez que estas teriam de ser aprovadas nos Estados Unidos: “Sabia que tecnicamente éramos capazes, porque eu e a minha equipa andámos anos a aperfeiçoar o que sabíamos na altura — hoje teríamos feito melhor, acho — a nível técnico.” E complementa que “o casting tinha de ser perfeito para eles, portanto, o primeiro desafio foi encontrar as vozes, que acabaram por ser as que já conhecemos. Para cada personagem tivemos de escolher três vozes, porque eles pediram assim, mas depois de as encontrarmos, o processo correu bem, normalmente.” Como um dos pioneiros em Portugal, em 1994 Carlos Freixo já estaria habituado ao processo de direcção das dobragens. Recorda que o estúdio, então, era novo e tinha material topo de gama, salientando que a gravação já era toda em digital, recordando que até aos anos 90 “a gravação era toda em modo analógico, em fita, e o nosso estúdio já tinha material topo de gama para a altura”. O processo tanto correu bem que a versão portuguesa d’O Rei Leão foi considerada das melhores a nível mundial, tendo ficado em segundo lugar, apenas atrás da versão original. Desde então, os filmes de animação da Disney a estrear em Portugal teriam a sua própria versão portuguesa.

Um dos principais desafios, confessa Carlos Freixo, prendeu-se com os aspectos da tradução. Para o director de dobragens, este é um trabalho “artístico”, acima de tudo, e confessa que “houve fricções” com o tradutor que foi “arranjado pela Disney”, para fazer o trabalho da tradução. Tecnicamente, Carlos Freixo teve de fazer alterações que não foram bem recebidas pelo tradutor, mas foi possível chegar a um consenso final.

Henrique Feist, tendo uma carreira profícua no teatro, teatro musical e passando pela televisão, tem sido um dos dobradores com presença assídua nos filmes de animação dobrados em português. Não constou no primeiro filme d’O Rei Leão, mas constou no “Rei Leão II” (1998), fez também vozes para as dobragens posteriores de filmes antigos que já haviam estreado, mas ainda precisavam de ser relançados em DVD, como a Branca de Neve e A Bela e o Monstro, sem esquecer que é também a voz para as canções de Olaf, o boneco de neve de “Frozen, o Reino do Gelo”, só para citar alguns exemplos.

Henrique Feist / Fotografia via Facebook do artista

Para Henrique Feist, “há um boom nos anos 90 e o próprio mercado é o espelho disso, pelo que surge em termos de volume de séries, porque também começaram a abrir mais empresas de dobragens de séries infantis em Portugal”. No entanto, enfatiza: “Acho que nos 70 e 80, as poucas séries infantis existentes, as que eram transmitidas no horário que a televisão disponibilizava para desenhos animados, faziam com que essas séries perdurassem também de outra forma. Existe outra magia quando pensamos no “Vickie”, na “Heidi”, no “Tom Sawyer”, na “Abelha Maia”, nesses mais antigos, porque também não havia muito mais que isso.” Já em relação aos filmes de longa metragem, avisa que “claramente, é nos anos 90 que passam a ser dobrados para português de Portugal e não português do Brasil, portanto, aí, sim, há uma mudança clara”, complementou.

O fenómeno do “Dragon Ball”: “Ainda hoje, a frase mais bonita que temos dos fãs, e continuam a ser centenas a escreverem-nos, é esta: ‘Vocês fizeram a minha infância muito feliz. Foi muito importante para nós todos aqueles anos de ‘Dragon Ball'”

Além d’”O Rei Leão”, em 1994, estreava no ano seguinte, em 1995, a série que revolucionaria por completo a entrada do anime em Portugal, pelo enorme sucesso que conseguiu alcançar. Fala-se de “Dragon Ball, Puro Cristal”, a primeira temporada de “Dragon Ball”, dobrada pela então empresa Novaga, agora Digital Azul, que além de atrair a atenção do público infantil, atraiu também o fascínio de adolescentes e jovens adultos que faziam questão de assistir aos episódios não só em casa, como também nas escolas e nas próprias faculdades, que paravam a essa hora. Henrique Feist fez a voz de Son Goku, João Loy a voz de Vegeta e Ricardo Spínola a voz de Tartaruga Genial, apenas para mencionar algumas das personagens principais a quem deram voz, porque o elenco de dobradores era bastante reduzido. Além da voz de alguns dos personagens, Ricardo Spínola também foi responsável por cantar a música do genérico da temporada “Dragon Ball GT”, com letra adaptada por si próprio.

Son Goku em “Dragon Ball Z”

“No ‘Dragon Ball’, todos os actores fizeram dezenas de personagens, porque éramos seis, no máximo, quando a série tinha 120 ou 130 personagens. Tínhamos de dividir por esses cinco ou seis esta quantidade toda que havia.” Quem o diz é João Loy, a voz de Vegeta que, aliás, já estava a dobrar outras personagens com outros registos quando o Vegeta apareceu na série: “O Vegeta aparece mais tarde e, por isso, é que pergunto, ‘o que é que faço’. Já fiz não sei quantos registos para outros personagens, o que é que faço para o Vegeta. É então que o director me diz, ‘esta personagem aparece em dois ou três episódios, no máximo. Faz com a tua voz natural, que ele depois desaparece.’ Enganámo-nos [risos].” Actualmente, João Loy canta fado e tem, também, um projecto musical chamado “Maria José”, com Emanuel Ribeiro, que mistura fado e heavy metal, ao mesmo tempo que a “música tradicional portuguesa não é esquecida”.

João Loy / DR

Mas quanto ao facto de, na altura, existir ou não, em Portugal, a consciência de que o anime era e é também uma cultura, ou subcultura, que agregava e agrega comunidades inteiras incluindo pessoas de todas as idades, Henrique Feist explica que não sabia “se havia, ou não, consciência do anime, porque como acho que o anime em Portugal existe e é um nicho, na altura, se existia, não tinha consciência disso. Tinha consciência deste tipo de desenho animado, mas não sabia se havia, ou não, uma tão forte legião em Portugal quando surge o Dragon Ball, nos anos 90.”

Complementa, no entanto, que tinha consciência de que o Dragon Ball “tinha tido um grande êxito em França e que se ia apostar em Portugal também nisso. Atenção, que quando digo França, posso dizer, obviamente, Japão, mas a razão pela qual se estava a fazer a dobragem era porque estava a ser um grande êxito também em França, até porque a dobragem que recebíamos estava em francês”, avisa Henrique Feist. “Obviamente que quando nos começámos a aperceber do êxito do Dragon Ball, esse mundo dos animes que já existia estava silenciado. De repente, com todas estas séries de anime que apareceram a partir do “Dragon Ball”, essas comunidades ganharam vida. Não tinha consciência de que existiam antes, mas claramente existiam, porque é na altura em que surge o Dragon Ball que nos apercebemos da quantidade de coisas que os fãs deste mundo anime já sabiam sobre a série: o que é que ia acontecer, quem era as personagens e por aí fora. Aí tomei consciência, sim, do fenómeno do público anime.”

Ricardo Spínola, a voz de Tartaruga Genial, atira logo, “não, não havia a consciência do que o anime representava. Pelo menos da nossa parte, não.” João Loy confirma que, na altura, “nem sequer internet havia [em Portugal, pelo menos não de forma tão disseminada como hoje]. Não sabíamos nada daquele tipo de séries, nem se falava em anime. Para nós, estávamos a dobrar desenhos animados”, diz.

A adaptação portuguesa do “Dragon Ball” ainda hoje é conhecida pelo bom humor e algumas referências que acabavam por derrubar a chamada “quarta parede”, ou seja, a linha imaginária que separa os actores e personagens dos espectadores. Frases icónicas como, “atenção, que eu hoje vou cantar o fado” ou “Vegeta, olha bem”; assim como referências ao programa “Big Show SIC”, por exemplo — um talk show que, na altura, era transmitido pela SIC — ou a certos aspectos próprios da língua ou cultura popular portuguesa ainda hoje são lembrados pela larga comunidade de fãs que a série tem.

Vegeta em “Dragon Ball Z” / DR

Sobre isto mesmo, Ricardo Spínola explica como essas frases surgiram para fazer corresponder o texto com o batimento das bocas dos personagens, o chamado Lip Sync: “Púnhamos o texto mas não era o suficiente. Tínhamos de preencher o resto do Lip Sync, de acordo com a história que estávamos a dobrar, com a história daquele dia, da dobragem. Depois, começámos a pôr algumas coisas que foram pegando, como a frase, ‘não percam o próximo episódio, porque nós também não'”, recorda Ricardo Spínola. Sobre a liberdade para esses mesmos diálogos espontâneos, “desde que não ultrapassássemos os limites do decente e da educação, deram-nos essa liberdade. Existiam, no entanto, muitas reclamações por parte dos pais, devido a algum palavreado, mas nunca nos impuseram entraves na linguagem como hoje. Hoje, há uma lista enorme, nas dobragens, de palavras que não se podem usar. Na altura não havia isso, graças a Deus, porque acho que é uma tontice. Desde que estejamos a dobrar com a noção de que não estamos a ultrapassar os limites da decência e da educação, não concordo. Acho que é comprometer a liberdade de expressão. Há termos que podem ser utilizados sem ofender ninguém, e que são do léxico diário de toda a gente. Se calhar, até pode haver casos em que essa noção do bom senso não existe, mas nós tínhamos essa noção”, colmata Ricardo Spínola.

“Havia total liberdade, na medida em que o elenco do ‘Dragon Ball’ era composto por pessoas que tinham experiência de teatro”, acrescenta Henrique Feist. “As pessoas podem interpretar isto como quiserem ou acharem que é insuficiente”, enfatiza, “mas o que aconteceu é que o António Semedo, o director de dobragem, assistiu e dirigiu os primeiros cinco ou dez episódios. Percebeu que estava com pessoas que sabiam agarrar aquilo sem precisar de direcção, porque tinham a noção de actor, porque eram pessoas que já tinham trabalhado em teatro, como actores”, explica. Obviamente, sabemos até onde podemos ir, ou temos, mais ou menos, uma noção do que pode fazer algum sentido ali. Foi nessa medida em que havia a total liberdade”. Mas Henrique Feist conclui: “Não obstante isto o que digo, o António Semedo era sempre dos últimos a gravar episódios porque depois ouvia tudo aquilo que tínhamos feito. Se ele realmente achasse alguma coisa chamar-nos-ia de volta, como é obvio. Nunca o fez. Reitero, éramos pessoas com alguma experiência enquanto actores, para saberemos minimamente o que estávamos a fazer.”

Já João Loy explica que “pelo facto de ser uma coisa tão desconhecida, a SIC insistiu que aquilo tinha de ser para a família toda, transversal, algo que pudesse juntar os avós, netos e pais, a família toda em casa para assistir. A primeira reacção, depois da nossa dobragem, é que estava um bocado violenta demais para o que queriam, o que é natural, porque aquilo, de meiguinho, não tem nada. A única forma que encontrámos que desse para juntar desde o avô ao neto mais novinho — como também não tínhamos noção do que era o anime — era transformar aquilo em comédia e brincámos o mais possível. Passados 15 dias, a SIC e todos nós começámos a perceber que as pessoas adoravam a nossa parvoíce, a nossa brincadeira, o nosso jogo de improviso em torno de um desenho animado que, para nós, era completamente desconhecido.”

Ricardo Spínola complementa: “A série teve imenso sucesso e se toda a gente parava para ver, por alguma razão era. Embora tenha sido um desenho animado de grande sucesso mundial, em Portugal foi especialmente um grande sucesso por tudo isso, pela linguagem que nós usávamos.”

Quanto ao facto do tom humorístico ser ou não utilizado para aligeirar o tom violento da série, Ricardo Spínola complementa: “Claro que foi e se calhar, também, não foi assim tão inconsciente porque havia partes em que dizíamos e comentávamos isso mesmo, ‘isto é de uma violência’. Por isso, se calhar, até nem foi inconsciente que puséssemos muita coisa para aligeirar essa violência”, revela.

E continua que “é verdade que havia uma violência mais explícita nesta série — também os tempos são outros, as exigências de mercado também eram e são outras, e estão a mudar para uma maior violência como vemos — mas o princípio é sempre o mesmo, quer seja na Disney, quer seja em outro desenho animado, que é o bem contra o mal. O bem ganha sempre ao mal, em qualquer tempo. Nos desenhos animados da Disney de 1940, como no ‘Dragon Ball’ de 1995, como agora no ‘Naruto’. A base de todas essas séries é a luta do bem contra o mal, claro, de forma actualizada”, remata Ricardo Spínola.

Quanto a Henrique Feist, afirma que “em relação a aligeirar o tom da série, se o fizemos para atenuar a violência, pode ter sido de forma inconsciente pela quantidade de vezes que ouvíamos que a série era muito violenta. Se isso aconteceu, portanto, foi de forma inconsciente. Nunca deixava de ser o lipsync porque, lá está, existe a violência física e a violência emocional, e acho que o Dragon Ball tinha imensa violência emocional e, nessa, raramente mexíamos. Se for ver, é mais nos discursos normais do dia-a-dia que improvisávamos, ou nas lutas, uma vez ou outra. Mas mesmo que aligeirasse, logo a seguir sabíamos como voltar aos personagens”, confessa.

Mas João Loy constata que “ainda hoje, a frase mais bonita que temos dos fãs, e continuam a ser centenas a escreverem-nos, é esta: ‘Vocês fizeram a minha infância muito feliz. Foi muito importante para nós todos aqueles anos de ‘Dragon Ball'”. Ajudámo-los na própria educação e valores, percebe o que eu digo? Valores educacionais.”

Ainda hoje, os fãs relembram as vozes de “Dragon Ball”, mas não só. Anos mais tarde, a música do genérico da temporada “Dragon Ball GT” ainda perdura na mente das gerações que cresceram com o “Dragon Ball”, sabendo-a de cor replicando-a sempre que possível.

Ricardo Spínola, além do dobrador de Tartaruga Genial, Tenshinhan e o Avô San Gohan, entre outros, foi ainda o responsável pela adaptação da música do genérico da saga “GT” que, originalmente, é uma canção de amor da banda japonesa “Field of View”, intitulada “Dan Dan Kokoro Hikareteku”. A versão portuguesa do genérico ganhou, assim, uma letra original escrita e interpretada pelo dobrador, e Ricardo Spínola explica o porquê da decisão de assumir esse trabalho: “O ‘GT’ foi a terceira série que gravámos do ‘Dragon Ball’. Primeiro foi o “Dragon Ball’ com aquela música, ‘Dragon Ball, de puro cristal’, que achava que era um genérico muito fraco para aquele estilo de desenho animado e não gostava, sinceramente. Disse, por isso mesmo, lá na empresa de dobragens que se houvesse uma próxima série gostava de cantar e adaptar o genérico”, recorda Ricardo Spínola.

Ricardo Spínola / DR

No entanto, veio o “Dragon Ball Z” e o dobrador também não gostou do genérico: “Fui perentório em dizer na empresa que o próximo, ‘faço eu a letra e canto, não se esqueçam.’ No ‘GT’, deram-me a escolher, tinham mais um genérico que queriam colocar. Eu disse, não, é este que a gente vai pôr. Assim foi. Fui para casa, fiz a letra e depois gravei. Queria ter sido eu porque achava que os outros genéricos eram muito fraquinhos, e tanto eram que esse teve o sucesso que depois se viu”, enfatiza Ricardo Spínola.

Quanto ao tema da letra, na música original, ser diferente, a voz de Tartaruga Genial explica que nem sabia se falava ou não de amor: “Aquilo vinha em japonês e nem sabia qual era a letra, o que significava. Inspirei-me na música e no próprio desenho animado, o que representava. Nem sequer soube o que era a letra do original, nem quis. Fiz algo à medida do que achava que era o desenho animado, ‘o bem contra o mal’ e, claro, tive a preocupação de encaixar as palavras na métrica da música, isso sempre.”

Os desafios da indústria: há ou não uma indústria em Portugal e que incentivos faltam?

“Antigamente, podia-se viver das dobragens, mas neste momento, se os actores fizerem 500 ou 600 euros por mês, perto do ordenado mínimo, assim não compensa para uma pessoa se dedicar só a esta actividade, excepto em alguns casos específicos”

A primeira longa-metragem dobrada em português de Portugal, “O Rei Leão”, foi em 1995, e Carlos Freixo recorda que o desenvolvimento da indústria das dobragens também se deu com o aparecimento das televisões privadas “que criaram um novo mercado”, além de lembrar que a RTP já teria transmitido séries japonesas. Mas, a partir daí, “o mercado teve de se abrir”, explica, quando antes só existiam duas ou três equipas de dobragens em Lisboa e uma no Porto. “Começaram a aparecer mais equipas e houve a necessidade de se formar mais actores de dobragens”, lembra.

Fazendo a ponte para os dias actuais, Carlos Freixo diz que, “hoje, pode-se dizer que é uma indústria.” “Nem sempre de qualidade”, admite, “mas uma indústria”. Explica, no entanto, que, a seu ver, “tem havido alguns retrocessos”, principalmente porque há “uma pressão económica para se fazerem as coisas rapidamente”, e acrescenta: “Se fazemos rapidamente, não se pode fazer com muita qualidade. Às vezes, os prazos de entrega são para ontem.” Além do tempo, há outra questão que o dobrador aponta, a questão económica: “Antigamente, podia-se viver das dobragens, mas neste momento, se os actores fizerem 500 ou 600 euros por mês, perto do ordenado mínimo, assim não compensa para uma pessoa se dedicar só a esta actividade, excepto em alguns casos específicos”, explica.

Tartaruga Genial em “Dragon Ball”

Sobre se é ou não possível viver-se da dobragens em Portugal, actualmente, Henrique Feist complementa: “Se conseguires fazer aquilo das 09 às 18 horas com vários trabalhos, todos os dias, eventualmente, conseguirias. Digo isto porque as pessoas, sejam os directores ou o que for, são contratadas para a série A ou B ou C e pronto, depois ficam à espera que chegue a D. Acho que para viverem das dobragens, tinham de ter a certeza que iam dirigir a série A, B, C, D, E, F, todas. Ou então, entrar em todas e ser o protagonista. Aí, sim, caso contrário não consegues.”

Carlos Freixo acrescenta ainda: “Felizmente, tenho o meu lugar. Há mais pessoas que têm o seu lugar mas, para uma pessoa de fora, fica desabrigada”, explica. E complementa: “Nos anos 90, inícios dos anos 2000, existiam tabelas de dobragens, mas foram completamente queimadas. Passou a ser de bem pago a não valer a pena.”

João Loy declara que, “até mesmo aqueles que, normalmente, pertencem ao estúdio de dobragens e têm trabalho contínuo, mesmo assim começa a ser complicado porque a redução foi imensa”, avisa, acrescentando que “não é por acaso que isso nos leva ao abandono, não direi a meio da série, mas a três quartos da série, quando regressámos”. João Loy refere-se a “Dragon Ball Super” que estreou em Portugal em 2016. Henrique Feist, Ricardo Spínola e João Loy acabaram por deixar a série.

Ricardo Spínola lembra ainda a questão dos direitos conexos: “Por lei, ninguém pode prescindir dos seus direitos conexos. Mas actualmente, ainda — uma coisa que não consigo compreender nem admitir, também já não faço dobragens há muito tempo e sou muito reivindicativo nessas coisas — é que todas as agências de dobragens exigem que assinemos um papel para prescindirmos dos nossos direitos conexos. É algo que vai contra a lei. Nós, mesmo que assinemos esse papel, se resolvermos ir a tribunal, eles perdem porque não podem fazer isso. Mas as empresas servem-se disso para não pagarem os devidos direitos às pessoas, aos actores, o que é gravíssimo”, aponta Ricardo Spínola.

Revela ainda que “quando começámos a dobrar o ‘Dragon Ball’, a empresa exigiu que assinássemos um papelinho para prescindirmos dos nossos direitos conexos. A única pessoa que teve a noção disso fui eu, que disse que este desenho animado não é como os outros. Disse ao Henrique, disse à Cristina Cavalinhos e à Fernanda Figueiredo. Recusei-me a assinar e, até, disse inclusivamente ao Henrique: ‘Não vou assinar este papel, não quero, porque este desenho animado é diferente dos outros. Este desenho animado vai ter um grande sucesso.’ Mas não tinha a ideia absoluta do que era o anime. Não quis assinar e tanto que em 2003/04, quando começaram a vender as VHS e depois os DVD, colocámos as empresas em tribunal, principalmente a Prisvídeo que vendia as cassetes, e ganhámos a causa no ano passado”, recorda.

João Loy complementa: “Foi um bocado isso e ignorância da nossa parte. Não prevíamos que se fizesse, sequer, mercado do ‘Dragon Ball’, não tínhamos consciência nenhuma. Continuo a dizer, recuem 25 ou 30 anos atrás e imaginem que alguém nos diz, ‘vamos fazer aqui umas cassetes’, daquelas que eram em VHS. Alguma vez nos passou pela cabeça que aquilo fosse uma mina de ouro para a empresa que gravou uma cassete connosco e que nos pagou à parte da série? Nunca nos passou pela cabeça chegar a um hipermercado e ver uma torre de cassetes VHS, na altura, que eram maiores do que as árvores de natal, e que aquilo não parava de esgotar. Nem tínhamos noção de que podíamos ganhar dinheiro com isso, sequer”, afirma.

Sobre se, actualmente, se pode dizer que há uma indústria em Portugal, Raul Barbosa diz que “não podemos chamar uma verdadeira indústria quando Espanha, Alemanha, Itália e França estão muito à frente de nós, há muitos anos, e têm, realmente, uma indústria monstruosa montada há 30, 40, 50 anos. Portugal está nisto há menos tempo, tem 10 milhões de habitantes, dobra menos, maioritariamente a produção é para jovens, para um público infantil, mas também vão os filhos e os pais, portanto, o target é sempre a família.”

Complementa que há a pretensão “dos pais se divertirem no cinema e os filmes permitem isso”, recordando que, em Portugal, não há tantos filmes dobrados em imagem real como em outros países e há, sempre, a preferência pela voz original, quando se vê a cara real. Mas enfatiza que embora se dobre menos em Portugal e a população seja reduzida, “ao fim de vinte e tal anos já há muitas empresas em Portugal a trabalhar em dobragens”, focando o surgimento das plataformas de streaming como a Netflix, que produzem séries, afirmando que “já há umas centenas de actores a viver disto, às quintas aqui, às terças ali.” Dessa forma, continua, já se pode considerar que há uma pequena indústria a funcionar.

Sobre as plataformas de streaming e se, de facto, vieram alterar significativamente a indústria das dobragens, Raul Barbosa explica que “por coincidência vieram um pouco antes da pandemia [a Netflix chegou a Portugal em Outubro de 2015] e depois, em 2020, tornou-se mais importante e real o seu crescimento, quando os cinemas praticamente pararam com as exibições e a indústria de cinema tremeu. Não havia filmes para cinema, não se ia ao cinema durante algum tempo. Na mesma altura em que estávamos a viver esse momento, foi quando as plataformas começaram a trabalhar com as dobragens, caso contrário, muitos dos estúdios teriam fechado. Ou seja, houve uma crise, ninguém ia ao cinema e, muita gente não se lembra disso, mas era um facto, um filme no cinema é mais caro do que um filme em streaming em termos de dobragens, de direitos de actores e, por isso, nessa altura, as plataformas de streaming foram ganhando mercado”, explica.

Son Goku e Vegeta em “Dragon Ball”

E complementa: “As plataformas de streaming, nomeadamente a Netflix, a primeira, a Amazon e outras, acharam que Portugal seria um bom público-alvo, pois o importante é ter espetadores, por isso decidiram dobrar em Português europeu. Aliás, a política deles até é diferente. Eles dobram para o mundo todo, mesmo que não seja rentável num determinado país por ter pouca população. Aqui ou na Tailândia, vamos supor, a ideia deles é dobrar no máximo de línguas, para o maior número de espetadores a nível mundial. Isso veio oferecer muito ao mercado. Arranjou muito mais trabalho, mesmo com um nível financeiro diferente de um filme de cinema, porque os orçamentos são mais baixos, mas quanto à qualidade mantém-se. Nas plataformas também temos séries e filmes de grande qualidade”, diz Raul Barbosa.

Como já explicado, há 20, 30 anos as televisões generalistas nacionais tinham um espaço televisivo dedicado às séries animadas infantis. Programas como o “Buereré”,da SIC, ou o “Batatoon”, da TVI, eram exclusivamente para as crianças mas, com o surgimento dos canais temáticos infantis e com a possibilidade de, hoje em dia, as crianças poderem ter acesso a desenhos animados sempre que o desejarem, essa foi uma prática que findou, salvo a programação infantil da RTP2, o Zig Zag. Questionado sobre se este facto acabou por prejudicar os actores de dobragens, Henrique Feist respondeu: “Por norma, as televisões generalistas pagam muito melhor do que os outros canais. Está respondido”, esclareceu o actor.

Quanto à forma como encara a evolução da indústria: “Com certeza, as coisas vão sempre evoluindo e com certeza que as coisas vão sempre melhorando e progredindo”, avisa. Mas aponta, também, para a diminuição dos cachés dos envolvidos na indústria: “Com certeza que há sempre muita coisa a desenvolver, para já, no sentido dos cachés de todos os envolvidos, sejam eles os directores de dobragens ou os directores musicais, quando aplicáveis.” E recorda, “há sempre o perigo, quando a pessoa fala em melhoramento salarial, de se pensar que estamos a pedir fortunas. Não é isso, estar-se-ia só a pedir um melhoramento. Não digo ‘estamos’ porque não faço parte constante do mundo das dobragens, faço on and off”, explica Henrique.

Diz lamentar ainda “não haver, a nível nacional, filmes animados de longa metragem ou séries animadas à semelhança da Disney ou Dreamworks, seja o que for, seja qual for a produtora que faça longas metragens de animação, mas com a dimensão a que me refiro, isto que fique claro. Portanto, quando falamos da Disney e de séries de anime, estou a falar na dimensão em que elas nos marcam. Gostava de ver porque sei que há gente que o pode fazer a nível nacional”, revela.

“Sempre achei que todas as dobragens que fazemos e fazíamos são mesmo muito boas”

Beatriz Frazão, desde a série “Conta-me como Foi” até “Morangos com Açúcar”, além do seu trabalho profícuo enquanto actriz, fez dobragens começando no “My Little Pony: The Movie – A Magia dos Póneis”, de 2017, passando por “Turning Red: Estranhamente Vermelho”, de 2022. Um actriz da nova geração, portanto, que também passa e já passou pela experiência de dar a sua voz a personagens animadas. À CCA contou que “quando comecei a ser atriz, foi em novela e sempre trabalhei muito com o naturalismo. Quando cheguei às dobragens, tinha medo de fazer desenhos animados. Comecei assim um bocado mais tímida, com mais vergonha, porque não sabia muito bem como é que havia de fazer a voz de um desenho animado. Mas depois, com mais anos de experiência, fui conseguindo ganhar mais confiança”.

Beatriz Frazão / Fotografia via IMDB

Mas revela que, este, foi “o seu meu melhor desafio porque tinha mais dificuldade em fazer desenhos animados do que personagens reais”, confessa. Beatriz Frazão explica que, no entanto, sempre teve “muita sorte, porque a minha voz já é muito fininha e já parece muito de desenho animado. Então, pediam-me sempre para dobrar os desenhos mais fofinhos.”

Explica ainda: “Lembro-me que no “My Little Pony” fiz a princesa Skystar e ela tinha uma voz que, na minha cabeça, era muito parecida com a minha. O meu maior desafio creio que foi quando fiz o “Turning Red”. Para si constituiu um desafio porque “porque era um protagonista e nunca tinha feito um protagonista de dobragens”, revela.

Sobre se o trabalho enquanto actriz acaba por ser uma mais valia para quem dobra, Beatriz Frazão explica que sim, “sem dúvida. Os atores têm melhor dicção e nas dobragens é muito importante ter uma boa dicção2, enfatiza. Complementa ainda que “nós, os atores, temos uma sensibilidade maior para representar os personagens, por isso acho que isso ajuda muito.” Revela que “sempre achei que somos, talvez, os melhores a fazer dobragens. Sempre achei que todas as dobragens que fazemos e fazíamos são mesmo muito boas. Mas eu já achava isso desde o início”, explica.

João Loy partilhou com a CCA que a música, na sua vida, “surgiu exatamente ao mesmo tempo que a representação”, e que quando veio para Lisboa procurou os dois ambientes, o teatro, sem esquecer o fado por influência da sua tia, uma que, na altura, há 40 anos atrás, “mal se fazia televisão.” Acontece que, naquele tempo, ganhava-se mais no teatro do que nas casas de fado e, por isso mesmo, “como tanto o teatro e o fado eram à noite, o fado acabou por ficar para trás”, mas a vontade do fado sempre ficou dentro de si. Agora, que já não depende tanto “de apanhar tudo para sobreviver”, regressou ao fado e mantém o projecto musical Maria José, com Emanuel Ribeiro, que resulta numa simbiose entre fado, heavy metal e música tradicional portuguesa, em modo acústico também, para uma nuance mais portuguesa: “Já estamos em todas as plataformas, neste momento com um dos temas, que se não chegou às 50 mil visualizações no Youtube, deve andar lá muito próximo”, revela. “Está a ser muito bom para nós, está a ser um êxito que não estávamos à espera. Fizemos um tema quase de Verão, que as pessoas facilmente cantam e dançam, e é um projeto que queremos que comece a fazer estrada a partir de Outubro, Novembro deste ano.

São as vozes que ficaram na mente das crianças de várias gerações e, como João Loy e Ricardo Spínola confirmaram, contribuíram para passar valores, sempre com a premissa do “bem contra o mal”. Mais do que tudo, apesar dos desafios crescentes no que diz respeito à diminuição dos salários, são as vozes responsáveis pela adaptação cultural que permite extrair as gargalhadas mais genuínas dos mais novos e graúdos.

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