Reportagem. Fado e as suas novas sonoridades
O Fado, intitulado por muitos como a canção da nação portuguesa, é reconhecido como um movimento artístico de alta importância, tendo até sido classificado pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade em 2011. Cantado há séculos, pelo Fado já passaram alguns dos maiores artistas da música portuguesa, e na atualidade muitos deles continuam fiéis ao género. Contudo, nos últimos anos, temos assistido à ascensão de artistas que possuem visões e influências que vão além do Fado. Artistas que nas suas obras incorporam o Fado em projetos mais experimentais que fundem o género tradicional português com outros elementos e sonoridades. Estes novos movimentos artísticos levantam diversas questões em relação ao seu futuro impacto na cultura fadista e sua veracidade perante a mesma. Deste modo, é crucial apurar o que a comunidade do Fado pensa perante estes novos artistas e suas obras, e o que preveem da fusão entre o contemporâneo e o tradicional. Em detrimento de alcançar respostas e conclusões sobre esta temática, recolhemos depoimento de artistas e especialistas na área como o musicólogo Rui Vieira Nery, e os fadistas Ricardo Ribeiro e Camané. Além dessas vozes mais conhecidas no meio do Fado, falámos também com novos artistas que utilizam estas novas vertentes musicais a seu favor, tais como, as Fado Bicha, Júlio Resende, e o produtor Stereossauro.
Origem do Fado
As origens do Fado vão além de Portugal. O especialista, Rui Vieira Nery, doutorado em Musicologia, e membro da direção do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, revela-nos que “as primeiras manifestações que conhecemos do Fado tiveram lugar no Brasil. Referem-se a uma canção dançada que começou por ser praticada por negros, mas depois ganhou grande popularidade no seio da população de origem europeia no Brasil”. No início do século XIX surgem as primeiras manifestações do Fado no contexto popular de Lisboa. Segundo Rui Vieira Nery, as primeiras manifestações do Fado em Lisboa possuíam ainda “muitas das características que nós encontramos nas descrições do Fado afro-brasileiro anterior”. Este tipo de música baseava-se bastante no quotidiano da vida urbana e boémia, tendo como palcos principais as tabernas e cafés, segundo informações disponibilizadas pelo Museu Nacional do Fado.
No início, o Fado começou por não ser bem visto perante a comunidade intelectual e a elite portuguesa, sendo diretamente associado a contextos mais humildes e marginais, com uma maior transgressão. Por volta da década de 1970, segundo informações do Museu Nacional do Fado, o teatro de revista apropriou-se do género, e começou a integrá-lo nos seus espetáculos, apresentando o Fado a um grande público. Desta união entre o Fado e o teatro nascem novas influências como o Fado dançado, e o Fado falado. Devido à abertura de novos espaços performativos, e uma maior incorporação na agenda comercial e cultural, que se deu nas primeiras décadas do século XX, o Fado começou a receber grande divulgação. Surgem então as companhias de fadistas profissionais a partir da década de 1930 que trazem uma maior promoção de espetáculos. Alguns dos grandes meios de comunicação da época, como a rádio, começaram a incorporar o Fado na sua programação. Noutros meios, como o cinema, o Fado também marcou a sua presença. Tomemos como um exemplo o filme de Leitão de Barros de 1931, A Severa, o primeiro filme sonoro português, e que conta a história Maria Severa Onofirana, considerada por muitos como a pioneira do Fado português. Outro exemplo importante da história do Fado no cinema é o no filme Fado, a história de uma cantadeira, de 1947 protagonizado por Amália Rodrigues.
Na década de 50 e 60, o Fado já era bastante apreciado a nível nacional, e com a aparição de artistas como Amália Rodrigues e Carlos do Carmo, o género musical português começa a ganhar popularidade além-fronteiras, obtendo uma maior projeção internacional. Na virada dos anos 90 para os 2000 surgiu toda uma nova geração de fadistas acompanhada de nomes como Ana Moura, Mariza, Camané, Marco Rodrigues, Sara Tavares, entre outros, que além de cantarem o Fado tradicional, começaram a importar novos elementos para o género musical. Em 2010, a comissão científica dirigida por Rui Vieira Nery submeteu a candidatura do Fado à lista representativa do Património Cultural da Humanidade da UNESCO. Aproximadamente um ano depois, em 2011, a UNESCO declara o Fado como Património Imaterial da Humanidade, tornando o Fado o primeiro património imaterial reconhecido em Portugal.
Fado Atual
Em pleno século XXI o Fado continua a possuir uma grande relevância perante o panorama cultural português. O Professor Rui Vieira Nery, declara que o Fado “foi um género que confluiu tradições muito importantes da cultura portuguesa, e da maneira de estar no mundo dos portugueses”.
Com o passar dos anos, a história do Fado revelou diversos altos e baixos em relação ao interesse do público para com o género. O fadista Camané revelou-nos que considera que “o público de hoje está mais interessado [no Fado]”, e relembra, “eu sou daquela geração em que tinha vergonha de dizer que cantava Fado. As pessoas da minha idade não ouviam Fado. Havia um certo preconceito”.
Com, ou sem preconceito, o Fado floresceu e fortificou-se na música portuguesa com o passar do tempo. Nos últimos anos, observamos ao florescer de uma nova geração de fadistas que ganharam bastante destaque mediático, e se consagraram como grandes estrelas do Fado. Artistas como Mariza, Ana Moura, Camané, Marco Rodrigues, Katia Guerreiro, Ricardo Ribeiro, entre outros, foram responsáveis por levar o Fado a alguns dos maiores palcos e premiações do mundo da música, obtendo uma enorme repercussão para o género a nível internacional, e levando o Fado a todo um novo público.
Nos dias de hoje podemos enumerar diversos elementos que fazem parte da memória coletiva do povo português, e que associamos diretamente ao Fado, e à sua cultura. Na perspetiva do musicista, e fadista, Ricardo Ribeiro, afirma que há cinco elementos que caracterizam o Fado enquanto expressão musical, sendo eles “a guitarra, a viola, o baixo, o cantador, e o poeta”. Porém, estas novas sonoridades têm vindo a quebrar fonteiras, apresentando o Fado a outros mundos, outros instrumentos, e outros sons.
O Fado estrangeiro
O Fado ganhou grande relevância a nível nacional tornando-se um símbolo da cultura portuguesa, e apreciado por muitos portugueses, e por muitos que visitam o país. Pelas suas características, o Fado chamou a atenção de diversos artistas estrangeiros que se encantaram pelo género.
Estes artistas, apesar da sua breve passagem pelo género, incorporaram o Fado em momentos pontuais das suas carreiras, e demonstraram que se o Fado é uma forma de linguagem, o mesmo muda conforme a língua de quem o canta.
Como principal exemplo, podemos mencionar a estrela da pop estadunidense, Madonna. Entre 2017 e 2019, Madonna viveu em Portugal e, durante a sua estadia no país, produziu o seu 14.º álbum de estúdio, Madame X. Segundo a artista, este álbum nasceu em Lisboa, e foi inspirado pelo Fado. No documentário The world of Madame X, a cantora afirma que sempre foi uma grande fã de Fado. O género musical português possui uma singela presença sonora no disco da artista, contudo, a estética fadista, assim como outros elementos da cultura portuguesa, são componentes estruturantes do universo de Madame X. Além destas influências do Fado que Madonna trouxe para o seu álbum, o género musical português também marcou presença na sua turné de 2019, Madame X Tour. Nos seus espetáculos Madonna cantava as canções Welcome to my Fado clube Fado pechincha acompanhada de uma guitarra portuguesa tocada por Gaspar Varela, bisneto da fadista Celeste Rodrigues. Incorporando, assim, o Fado em toda a sua obra, e levando o género a todo um novo público familiarizado com a cultura pop.
Noutros casos mais pontuais de artistas estrangeiros que utilizaram o Fado nas suas obras, podemos citar exemplos de cantores como Chico Buarque, com a sua canção Fado Tropical de 1973, ou Prince com a sua apresentação no Super Bock Super Rock de 2010, onde o artista, acompanhado por Ana Moura, preformou o tema Vou dar de beber à dor.
Fado e as suas novas sonoridades
Na atualidade, apesar do reconhecimento a nível mundial, o Fado continua a ser maioritariamente feito por portugueses. Portanto, para compreender melhor estas novas sonoridades, e a sua importância, é fundamental conhecer os artistas que dão voz a estes novos sons e estão por trás destas obras.
Ao longo dos últimos anos, vários fadistas, e artistas de outras vertentes, têm vindo a apresentar diversos projetos inovadores, e experimentais, que fundem o Fado a outros géneros musicais, transitando entre diferentes elementos da música portuguesa, e criando sonoridades ao redor do Fado. Dentro desta categoria de artistas podemos nomear alguns exemplos importantes para este movimento que tanto é experimental, por explorar algo novo, como vanguardista, por incorporar a tradição fadista.
O produtor Tiago Norte, mais conhecido por Stereossauro, apresentou em 2019 o seu álbum Bairro da Ponte. Uma obra que, no mesmo disco, une o Fado com o hip-hop e a música eletrónica. Este álbum é acompanhado pelas vozes de diversos artistas consagrados no Fado, como Gisela João, Camané, Ana Moura, entre outros, e artistas consagrados no cenário de hip-hop português como Slow J, Plutónio e Papillon.
As músicas apresentam uma fusão entre instrumentais, e samples de obras clássicas do Fado, com beats de hip-hop e Electro produzidos por Stereossauro. Sobre o feedback deste álbum, Stereossauro afirma que o projeto “foi muito bem recebido, e honestamente não me chegaram comentários negativos, só feedback positivo”. O produtor refere que todos os artistas com quem colaborou demonstraram uma grande abertura, e vontade, de participar no álbum. E sobre a fusão de géneros musicais, enquanto mais-valia para a cultura portuguesa, o artista declara que “o Fado tradicional vai ter sempre o seu lugar, mas a mudança é uma forma de avançar.”
A cantora e compositora Ana Moura em novembro de 2022 lançou o seu mais recente álbum, Casa Guilhermina. O disco apresenta a artista num novo conjunto de sonoridades que misturam o Fado com as suas raízes africanas, inspirações flamencas, e música popular. O álbum foi eleito pela Blitz como o melhor álbum de 2022, afirmando que, o Casa Guilhermina, “escancara as portas de um presente orientado por noções de liberdade e inclusão, que contagiam a sua música com sons vindos de outras latitudes”.
Na mesma lista dos melhores álbuns de 2022 é destacado em 4.º lugar o Ocupação do grupo Fado Bicha. Um álbum que apresenta uma sonoridade desconstruída, que preserva vários elementos do Fado, mas que, ao mesmo tempo, o funde com outras inspirações e sonoridades populares. Sobre a sua musicalidade, João Caçador, membro das Fado Bicha, afirma que “a própria ideia de que o Fado tem uma estrutura, ou um cânone rígido e cristalizado, é uma ideia que não corresponde [ao género]. Se analisarmos a história do Fado, percebemos que sofreu muitas mutações como qualquer género musical, ou objeto artístico”. Sobre a escolha do Fado, e das suas misturas com as diferentes sonoridades do grupo, João Caçador declara: “o Fado é uma dinâmica artística que nos serve, e nos interessa, enquanto pessoas que produzem arte, mas não queríamos ficar presas a um cânon que não nos servisse musicalmente e liricamente”.
Num segmento que mistura o Fado com uma melodia mais pop, mas que, ao mesmo tempo, incorpora outras influências, como as flamencas, temos a cantora e compositora Beatriz Rosário. Com uma carreira comparativamente recente na indústria, Beatriz Rosário, entre os seus poucos trabalhos ainda publicados, possui como obra de destaque o seu Ep Rosário. Nesse projeto a artista apresenta uma obra acompanhada de uma sonoridade que mistura elementos típicos do Fado com outros géneros musicais. É o exemplo do seu tema, Obras de Deus, que mistura o Fado com o Flamenco, ou do seu tema, Morfina, que apresenta uma batida pop fundida com acordes da guitarra portuguesa e entonações característicos do Fado. Em uma entrevista concedida à ESCS FM a artista revelou que para se ser fadista é preciso nascer fadista, afinal “o Fado é algo com que se nasce”, e concluiu que, apesar de querer explorar vários estilos musicais, não quer abandonar o Fado.
Num segmento diferente, temos o caso do pianista, e compositor, Júlio Resende, com o seu álbum Fado Jazz Ensemble. O disco não é o primeiro trabalho do artista que envolve o Fado, mas este propõe-se a unir o universo do Fado com as características do jazz. Em relação à opinião do grande público perante o Fado atualmente, Júlio Resende declara: “acho que se ouve e se respeita mais [o Fado], e há uma ideia mais bonita daquilo que representa enquanto criação portuguesa”.
O artista assume na sua arte a vontade de explorar uma união entre o Fado e o jazz. O musicista afirma que esse desejo veio da “vontade de descobrir esse mistério, porque o Fado sempre foi algo que quando aparece à frente, aparece com uma grande força”. O pianista Júlio Resende acredita que existe uma riqueza e liberdade associadas ao jazz que considera interessante transpor para o Fado. O artista menciona também uma exigência emocional, própria do Fado, “muito boa para transpor para o jazz”, e deixa claro que considera que a fusão entre os géneros pode ser uma mais-valia: “a ideia de não termos preconceito de escutar o que os outros têm para dizer, e a ideia dessa fusão, eventualmente vai criar um novo ser”.
O Fado: tradicional e contemporâneo
Com todos os novos artistas que se têm apropriado do Fado para a criação das suas obras, várias questões podem ser levantadas em relação ao impacto destes elementos no Fado. Serão estas influências um movimento passageiro, ou algo que vai mudar o paradigma do Fado para as próximas gerações? Sobre esta questão, Rui Vieira Nery relembra-nos que “o Fado sempre teve influências de outros géneros musicais”, e declara, “no fundo, a questão é, se tudo é Fado, então nada é Fado. Portanto tem de haver um equilíbrio entre a continuidade, e a transformação. Estas inovações são apenas mais algumas numa longa série que foram acontecendo ao género”.
Sobre estas inovações, e se as mesmas seriam, ou não, uma mais-valia para a cultura portuguesa, Camané afirma: “faz sentido os músicos que têm uma pequena influência do Fado, tirarem partido dessa base para fazerem a sua música. Não é o Fado tradicional, mas é uma influência, isso tudo é ótimo porque criam-se estilos fantásticos com essas misturas. Tudo isso faz sentido, e faz sentido também haver só Fado com estética só do Fado.”
Em outra abordagem da mesma questão, Lila Fadista, membro das Fado Bicha, afirma que “o Fado engloba muitas expressões, e, de alguma forma, conserva uma identidade que é reconhecível ao longo do tempo. Vejo isso na música que fazemos, na música da Ana Moura, e vejo isso na música de muitas pessoas, mesmo que elas não se proclamem como fadistas. A mudança dentro do Fado enquanto cânone artístico é insociável na história do género. Não é algo que esteja a acontecer agora.”
Algo que vai acontecendo, e é tão natural como a própria vida, pelo menos é assim que Ricardo Ribeiro descreve o Fado, como algo que “canta os fenómenos da vida, vai acompanhando a vida das pessoas”. O artista afirma também que a diferença entre o Fado que se fazia antigamente para o de hoje é que “as pessoas vão se atrevendo por caminhos, alguns com bons resultados, e outros nem tanto”. Em tom de comparação das novas sonoridades do Fado com “neologismos” da “linguagem Fadista”, Ricardo Ribeiro faz alusão a uma seleção natural do que prevalece no Fado, e afirma “há pessoas que se vão atrevendo em caminhos arrojados, e que por vezes dão bons resultados e aparecem coisas muitíssimo interessantes, outras que não porque não têm a ver [com o Fado]”.
O futuro do Fado
Numa nota reflexiva sobre o impacto de novas sonoridades no futuro do Fado, Rui Vieira Nery relembra que “o Fado é aquilo que os fadistas querem que ele seja, e, naturalmente, cada geração irá introduzir no Fado elementos que têm a ver com a sua maneira própria de estar no mundo”, tranquilizando mentes mais pessimistas em relação a esta nova tendência musical, e afirmando que no seu parecer tudo não se tratava de nada mais que “um procedimento de transformação que sempre foi característico de qualquer género vivo”.
Numa nota reflexiva sobre a possibilidade de se perder as raízes do Fado em meio de novos sons, Ricardo Ribeiro diz que o Fado “morre e renasce”, e aponta também para um comportamento de “autofagismo”, afirmando que “os próprios é fadistas matam [o Fado], mas depois são os próprios fadistas que o fazem renascer”. O artista continua a sua resposta, e declara: “creio que a raiz [do Fado] não se perde, agora cabe-nos a nós cuidar disso, e haver pessoas que estimem a raiz”. O fadista Ricardo Ribeiro, termina com um aviso: “cuidado para que não se desvirtuem as coisas”, e refuta que este aviso não é uma questão de “tradicionalismo” ou “purismo”, até porque, segundo o artista, “não existe nenhuma cultura separada de outra cultura, e não há culturas puras”.
O Fado está na moda, o público parece estar interessado, e as suas tendências podem estar a mudar. Contudo, a mudança não parece perturbar os artistas, afinal, os mesmos aceitam este movimento como algo natural, e velho na história do Fado, tendo sido observado ao longo da história conforme afirma Rui Vieira Nery. Em tom de conclusão, resta-nos aguardar que o tempo, e o público apure como será o futuro do Fado, afinal, se o Fado é o destino já escrito, só o tempo o pode revelar.