Reportagem. Mutilação Genital Feminina: “Graças a Deus não morri ali” (parte I)

por Maria Moreira Rato,    6 Fevereiro, 2024
Reportagem. Mutilação Genital Feminina: “Graças a Deus não morri ali” (parte I)
Fotografia de Nsey Benajah / Unsplash
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Entre 2014 e 2022, foi registado um total de 853 casos de mutilação genital feminina em Portugal. Na primeira parte de uma reportagem sobre o tema (lê aqui a segunda parte), a Comunidade Cultura e Arte falou com uma sobrevivente, uma psicóloga, enfermeiros, ativistas e a Direção-Geral da Saúde para compreender este fenómeno que já foi criminalizado em Portugal e para assinalar o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina.

Costumamos dizer “Lembro-me como se fosse hoje”, pensando, até, que esta expressão é um cliché. No entanto, no caso de Abi Baldé, guineense de 50 anos, sobrevivente de mutilação genital feminina (MGF) três vezes, estas palavras encaixam-se perfeitamente naquilo que viveu e sentiu. “Sou muçulmana e fui vítima desta prática três vezes, mas não é nada boa para a saúde da mulher. Estou em Portugal há cinco anos, mas sei que continuam a fazer isto às meninas lá. Por vezes, com uma ou duas semanas de vida. Na Guiné-Bissau, falava sempre contra isto. Andava por várias regiões com outras pessoas a consciencializar para o perigo”, conta, com a revolta notória na voz. “Sou vítima, vítima mesmo de todas as coisas que não são boas para mim. Felizmente, tive filhos: existem muitas mulheres que não conseguem. Mutilam tudo quase. E eu sofri isto três vezes, três vezes! Graças a Deus não morri ali”, desabafa Abi. “Isto provoca hemorragias horríveis. Muitas das vezes, as meninas perdem sangue e estão longe dos centros de saúde e dos hospitais. Para além disso, as famílias escondem que elas precisam de ajuda. É muito triste. Quando comecei a crescer, enfrentei a minha mãe. Disse-lhe que isto não pode continuar a acontecer”, frisa, sendo que a vida de Abi tem sido tudo menos fácil, trabalhando quase de sol a sol para auxiliar a família e, especialmente, a filha que tem cancro. “Muita gente não quer divulgar isto porque é quase um segredo! Mas isto é feito, esta é a realidade! Lembro-me de ser pequenina e muita gente estava a apertar as minhas pernas e outras pessoas a cortarem-me. Por vezes, acordo a tremer de noite a pensar nisto. Assusta-me! É um trauma que fica”, sublinha a mulher em declarações à Comunidade Cultura e Arte (CCA).

Psicóloga Sandra Miranda / DR

Quem tem estudado o impacto psicológico da MGF nas mulheres é a psicóloga Sandra Miranda, que frequentou a formação ‘Formação de agentes qualificados/as que atuem no domínio da Prevenção, Sensibilização e Combate a práticas tradicionais nefastas, em particular, à Mutilação Genital Feminina’, sendo que nutre interesse pela MGF desde a adolescência, época em que leu o livro ‘Mutilada’, de Khady, que viveu a excisão aos sete anos. A profissional de saúde explica que o interesse pela temática “ficou sempre a pairar na incessante vontade de aprendizagem” e, por isso, quando deparou com a formação da AKTO, que tem como objetivo a promoção e intervenção em Direitos Humanos, Democracia e Paz, decidiu inscrever-se por verificar este “feliz acaso”. Em 2022, foram registados 190 casos de MGF em Portugal. Na ótica de Sandra, “este valor poderá indicar duas situações muito importantes; por um lado os/as nossos/as profissionais estão mais alertados/as para estas situações e os casos são notificados; por outro lado, falamos, na sua generalidade, de comunidades migrantes que no seu país de origem não têm uma promoção da saúde (normalmente não há a cultura de ir aos cuidados de saúde primários) e em Portugal é notório esse cuidado”, explica, dizendo que “é possível também analisar que há uma tendência de mais mulheres a oporem-se à prática”.

Na plataforma Registo de Saúde Eletrónico (RSE), foram registadas complicações de saúde em 100 mulheres (52,6% dos casos). “É bastante alarmante. A prática da MGF normalmente resulta em graves complicações físicas e psicológicas e em severas limitações à sexualidade e saúde das meninas e mulheres vítimas. Existem consequências imediatas, tais como dor intensa devido ao corte de terminações nervosas e de tecidos genitais; sangramento excessivo e choque séptico; dificuldades na eliminação de urina ou fezes; infeções sexualmente transmissíveis como hepatites (B e C) e VIH/SIDA; morte causada por hemorragia ou infeções diversas, incluindo tétano e septicemia”, avança, explicitando que “existem consequências a longo prazo, como dor crónica e infeções várias (como pélvicas, no canal urinário, aparelho reprodutivo, incontinência urinária) infertilidade, dificuldades em engravidar; relações sexuais dolorosas; cicatrizes dolorosas, fístula do recto — vaginal e fístula obstétrica, entre outras; complicações no parto, incluindo parto demorado e consequente morte do bebé e/ou da mãe; necessidade de cirurgias na idade adulta; problemas no funcionamento psicológico (nos quais se incluem a depressão, ansiedade e stress pós-traumático)”.

A Direção-Geral da Saúde (DGS) reportou 75 registos de complicações do foro psicológico, 64 obstétricas, 55 relativas a complicações de resposta sexual e 51 sequelas uro-ginecológicas. “A prática da MGF têm consequências graves tanto a nível físico, sexual, social e psicológico. Em termos psicológicos é notório sentimentos de medo ou receio de ter relações sexuais; ansiedade, depressão; diminuição da autoestima, perturbações psicossomáticas com quadros de sintomatologia como insónia, pesadelos (recorrentes do dia da mutilação), perda de apetite, perda ou ganho de peso excessivo, pânico, dificuldades de concentração e aprendizagem e outros sintomas de stress pós-traumático incluindo perda de memória”, continua, adiantando que “poderá também surgir sentimentos de ambiguidade; meninas e mulheres que rejeitam tais práticas, mas aceitam submeter-se por temerem rejeição por parte da sua comunidade, da sua família e de um futuro marido”, sendo que “a nível social e das relações poderá existir um maior isolamento social e a perda de confiança na relação com a sua família”, explicita a psicóloga, à CCA, que, na sua prática profissional, ainda não contactou com casos de MGF, mas sabe que, se tal acontecer, terá “as ferramentas necessárias para atuar da melhor maneira”.

Enfermeiro Vítor Hugo Pereira / DR

Entre 2014 e 2022, foi registado um total de 853 casos de MGF em Portugal. O enfermeiro Vítor Hugo Pereira, da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, em Lisboa, lida com variados casos de MGF. O interesse do enfermeiro pela temática surgiu durante a especialização em saúde materna, posteriormente tendo completado a pós-graduação em MGF da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, sendo que destaca “a importância da consciencialização e da identificação de casos de MGF, especialmente durante o parto”, enfatizando “a necessidade de não julgar as mulheres afetadas e de fornecer apoio sensível”,  enquanto expressa preocupação com a falta de consciencialização contínua entre os profissionais de saúde. “O número oficial de casos registados parece subestimar a verdadeira prevalência da MGF devido à subnotificação e, especialmente, considerando os fluxos migratórios”, alerta. Na conversa, é abordada a delicadeza necessária ao lidar com sobreviventes de MGF, “principalmente dentro do contexto de cuidados de saúde”. Vítor salienta “a importância de abordar o tema com compaixão, evitando o julgamento e fornecendo apoio emocional e informações úteis às mulheres afetadas”, especificando as diversas complicações físicas e psicológicas decorrentes da MGF e ressaltando a necessidade de se olhar para esta questão “como um desafio global”, enfatizando que não se limita a certos países e que a colaboração de todos é essencial para enfrentá-la. “Esta não é apenas uma luta das comunidades afetadas, mas de toda a sociedade, e cada vida salva representa um passo significativo rumo ao fim desta prática prejudicial”.

Também segundo a DGS, existe uma predominância de casos realizados na Guiné-Bissau (70,5%) e na Guiné-Conacri (23,7%), dados confirmados pelas enfermeiras Khatidja Amirali, Ana Conceição e Débora Almeida, que integram a equipa do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), em Lisboa, que identifica casos de MGF e sinaliza as mulheres sobreviventes da mesma. Na entrevista a estas profissionais de saúde, foi discutido o trabalho da equipa desde 2015, quando começaram a abordar a questão da MGF após uma pós-graduação sobre o tema. A de Khatidja na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal e a de Ana na ESEL, como Vítor. Houve uma análise da evolução do grupo, destacando os desafios enfrentados, “como a redução de equipa e a necessidade de sensibilizar os profissionais de saúde para a importância do assunto”. As profissionais partilharam as suas experiências pessoais e profissionais que as levaram a interessar-se pela temática da MGF, destacando a importância da formação e da sensibilização para lidar com casos dessa natureza.

Foram abordadas também as dificuldades em lidar com mães que consideram submeter as suas filhas à MGF, bem como a necessidade de sensibilização contínua — mais uma vez — da comunidade e dos profissionais de saúde para “prevenir e combater esta prática”. “Aquilo que me choca mais é quando uma mãe diz que vai fazer o mesmo à filha. É como uma facada para mim”, lamenta Khatidja, sendo que Ana concorda com ela. As profissionais expressaram a necessidade de “mais recursos e apoio para lidar com a questão da MGF, incluindo a contratação de psicólogos, assistentes sociais e obstetras/ginecologistas, bem como a importância da formação contínua e da sensibilização da comunidade para prevenir e combater esta prática prejudicial”. Por último, percecionam que “praticar o fanado é o meio de subsistência das fanatecas”, isto é, mutilar genitalmente meninas e mulheres é uma forma que muitas mulheres — excisadoras — têm de conseguir dinheiro e, por isso, realizam as cerimónias de ‘fanadu di mindjer’.

As enfermeiras, enquanto conversam com a CCA, têm perto de si o ‘Protocolo Integrado para a Intervenção na MGF/C 2019’ da Amadora — em cuja elaboração participaram —, um documento onde é evidenciado que Portugal é considerado um país de risco para a prática da MGF, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Um estudo realizado em 2015 pela Universidade Nova de Lisboa – CESNOVA revelou que cerca de 5.246 mulheres em idade fértil foram submetidas a esta prática no país. A maioria dessas mulheres é originária da Guiné-Bissau (90% a 91%), mas também há casos de mulheres provenientes de outros países, como Guiné-Conacri (3%) e Senegal (2%).

Um outro estudo realizado pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE) analisou a situação das meninas em risco de serem submetidas à MGF em Portugal. Esse estudo apresentou dois cenários: um de alto risco e outro de baixo risco. Em 2011, havia 5.835 meninas em Portugal provenientes de países onde a MGF é praticada, estando em risco de serem submetidas a essa prática. No cenário de alto risco, 1.365 (23%) estavam em perigo, enquanto no cenário de baixo risco eram 269 (5%). A maioria dessas meninas tinha origem na Guiné-Bissau, Senegal, Guiné-Conacri, Nigéria, entre outros países. O estudo indicou que o distrito de Lisboa concentra cerca de 70% das mulheres provenientes desses países, com destaque para a Guiné-Bissau, Senegal e Guiné. Os distritos de Lisboa, Setúbal, Faro e Porto abrigam a maior parte dessas mulheres, totalizando cerca de 91% do total no país. Os tipos mais predominantes de MGF em Portugal são os tipos I e II (clitoridectomia e excisão), que representam aproximadamente 82% dos casos. No distrito de Lisboa, o município da Amadora ocupa a terceira posição em número de mulheres residentes provenientes de países onde a MGF é praticada.

Fotografia de Matthew Ansley / Unsplash

Em dezembro de 2023, haviam sido referenciados 373 casos de MGF no Amadora-Sintra. Os países de origem das sobreviventes foram principalmente Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, mas também foram verificados casos de países como Senegal e Gâmbia. Em relação às idades das sobreviventes, “a maioria não conseguia precisar exatamente em que idade a mutilação foi realizada, mas afirmavam que ocorreu durante a infância, geralmente até aos 10 anos”, explicam. Quanto aos tipos de MGF, foi mencionado que predominantemente eram do tipo I e tipo II. Mas que diferenciação é esta e o que está em causa? É esse um dos pontos que as enfermeiras especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia Ana Frias, Professora Coordenadora na Escola Superior de Enfermagem de S. João de Deus da Universidade de Évora e Fernanda Gomes da Costa, Professora no IPS, abordaram no texto ‘Mutilação genital feminina: segredo para revelar’. Segundo a OMS, a MGF pode ser dividida em quatro tipos: o tipo I, também conhecido como clitoridectomia, envolve a remoção parcial ou total do clitóris, que é responsável por proporcionar prazer sexual às mulheres; o tipo II, chamado excisão, vai além da remoção do clitóris e inclui a extração dos pequenos lábios (e, às vezes, dos grandes lábios) da vulva; o tipo III, conhecido como infibulação, implica o fechamento da abertura vaginal, podendo ou não incluir a remoção do clitóris e o tipo IV engloba todas as outras formas de mutilação genital feminina como perfuração, raspagem ou queimação da área genital.

A ideia do texto surgiu após o convite para desenvolver um artigo para publicarmos no livro ‘Dimensões Sociais da Saúde em Psicologia Clínica’. O convite foi aceite de imediato, o tema surge porque havia desenvolvimentos importantes em termos de políticas, campanhas e esforços internacionais para erradicar a MGF. É fundamental contextualizar a prática dentro de um panorama histórico e contemporâneo”, alerta Ana Frias, adiantando que tiveram em conta que, em 2014, “a MGF era um problema persistente em várias partes do mundo e Portugal não estava livre dele”, sendo que ao escreverem “este capítulo de livro pretendia-se aumentar a consciencialização e educar as pessoas sobre a prática, as suas causas e consequências”. Por outro lado, “a MGF é uma violação grave dos direitos humanos e uma manifestação extrema da desigualdade de género. Ao abordarmos este tema pretendia-se contribui para promover a igualdade, destacando a importância de respeitar os direitos das mulheres” e, por fim, e por fim, como docentes, ambas queriam contribuir para o debate académico e ao abordá-lo, precisamente, dessa forma, “ele pode contribuir para o debate intelectual sobre a MGF, apresentando novas perspetivas, análises e descobertas”. Deste modo, mais tarde, surgiu o projeto ‘EdSex’, onde Ana, como investigadora principal, a colega Maria da Luz “e muitas outras pessoas” tentaram “promover mudanças sociais e culturais”. Refere ainda que “ao abordar as raízes culturais e sociais da prática, pretendemos incentivar uma reflexão crítica e fomentar discussões que levem a uma mudança de mentalidade. Tendo em conta o título do capítulo de livro, e 10 anos depois ainda há muito para revelar”, indica.

Professoras Ana Frias e Maria da Luz Barros / DR

Ana Frias e Maria da Luz Barros frisam que este tema é atual, dizendo, à semelhança dos outros entrevistados, que esta “é uma prática que transcende fronteiras e é uma preocupação global”. Para além disso, trata-se “de uma das prioridades que consta nos objetivos do Desenvolvimento Sustentável, concretamente no objetivo 5 ‘Igualdade de Género’”. “Estamos também a desenvolver um projeto Internacional denominado ‘Edsex – Educando en Sexualidade, Avance para la Salud Europea’, financiado pela União Europeia e uma das atividades, consta da apresentação a populações de migrantes do tema ‘Culturas migrantes: Promoção da saúde sexual e reprodutiva’, onde além de outros assuntos, também se aborda a MGF”, contam, lembrando que, de acordo com a UNFPA – United Nations Population Fund – “cerca de 200 milhões de crianças e mulheres que vivem hoje foram submetidas à MGF, e se os atuais índices persistirem, a estimativa é de que mais 68 milhões serão cortadas entre 2015 e 2030”. “Perante esta constatação temos de agir e proteger estas meninas/mulheres”, salientam as profissionais de saúde, apontando também que “começa a haver uma maior consciencialização e interesse, fala-se mais do assunto”, sendo que “além disso, os profissionais devem respeitar a Orientação n.º 008/2021 de 30/06/2021 da Direção-Geral da Saúde – Mutilação Genital Feminina, onde no ponto 1 consta: ‘Os profissionais de saúde devem saber identificar e orientar (no âmbito da rede de referenciação materno-infantil) a criança, a jovem ou a mulher com uma mutilação genital feminina (MGF) e devem ter um papel ativo na informação das comunidades no sentido de prevenir a sua realização nas novas gerações’”.

Estes profissionais referenciam através do RSE situações de risco para os colegas dos Centros de Saúde. Por exemplo, se uma mulher mutilada ‘dá à luz’ uma menina, essa família é acompanhada pelo risco desta prática de forma oculta. Não se sabe se é feita em Portugal ou se viajam para os seus países de origem para que se cumpra lá esse ritual. É necessário estarmos atentos!”, exclamam, avançando com um dado curioso: “As pessoas dão pistas seja pelo que verbalizam ou pelos apelidos. Por exemplo, com mulheres guineenses, uma forma de identificar o risco passa por estar atento ao apelido das famílias. Na Guiné-Bissau, as etnias em que se pratica MGF são a FULA e a MANDINGA. Os apelidos na Etnia Fula, são Baldé, Djaló, Sow…. já na etnia Mandinga constam apelidos como Cissé, Ture, Mane, Dabo… estamos a referir-nos aos guineenses, mas, a MGF não é uma questão exclusiva dos países africanos”, dizem, sendo que o apelido de Abi é Baldé, como foi referido no início da reportagem.

Se tivermos isto em consideração, sim, estão mais capacitados. Sabemos também que há enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica que fizeram uma pós-graduação em MGF”, declaram, acrescentando igualmente que em congressos e reuniões científicas este tema já é abordado — por ser uma prática nefasta e constituir um crime em Portugal — e também existem regiões do país com projetos cujo objetivo primordial é pôr fim a este flagelo. “São diversos os entendimentos sobre a prática da MGF. Por exemplo, defender o status da comunidade, manter a virgindade e a fidelidade ao marido, honrar a família, aumentar o prazer sexual do marido, ser um ritual de passagem para a feminilidade destas meninas/mulheres. Fazendo um pouco referência aos comportamentos destas vítimas, muitas delas nem sabem bem o que lhes falta no seu corpo. Em algumas situações, quando são observadas nas urgências obstétricas e ginecológicas, não colaboram ou fazem-no com muita dificuldade devido ao reavivar de memórias. Surgem os chamados triggers emocionais, isto é, dispara-se uma emoção devido a uma memória ou um trauma vivenciado”, dizem, indo, mais uma vez, ao encontro dos momentos vividos por Abi e tantas outras sobreviventes que, como ela, carregam o peso da MGF nos seus ombros e ficam para sempre marcadas por esta prática nefasta.

Fatu Banora / DR

São estas pessoas que Fatu Banora e Ana Só lutam para auxiliar, duas jovens guineenses que não querem que esta prática continue a ser levada a cabo e esperam mudar mentalidades e, consequentemente, comportamentos. Fatu tem 24 anos e estuda Psicologia no Instituto Universitário (ISPA), enquanto Ana — a primeira menina da sua família a não ser vítima de MGF — tem a mesma idade e estudou Administração Pública e Políticas do Território no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa. A Associação de Planeamento Familiar conduziu-as à network End Female Genital Mutilation (EndFGM), rede europeia cujo nome, em português, significa ‘Acabar com a mutilação genital feminina’. Reconhecem “a complexidade da questão da MGF e como é vista internacionalmente como uma violação dos direitos humanos”, mas sabem que “há resistência à mudança, especialmente entre os mais velhos” e pedem que se evitem “generalizações” e que se entenda “que as comunidades afetadas pela MGF têm mais do que apenas essa questão”.

É tão estrutural que é mesmo difícil de desconstruir e de olhar para a MGF sem ser envolvida em toda esta complexidade. Mas também acho que os jovens vão tendo cada vez mais consciência disto e não vou dizer que não há nenhum que também não tenha essa vontade, de que a mulher seja submetida à MGF, mas já são cada vez mais jovens mulheres e homens a dizer ‘Não, nós não queremos que esta prática continue a afetar as nossas comunidades!’”, conta Fatu. “Nós queremos estar cada vez mais ativas na desconstrução do que é que isto significa. Nós e outros jovens de países afetados pela MGF. E isso é muito bom, também termos homens envolvidos na erradicação desta prática é um ganho muito grande”, observam ambas. “Quem tem um papel muito importante nesta missão são os meios de comunicação. Por exemplo, nos workshops e palestras em que já participámos, ensinamos sempre que não se deve dizer ‘comunidade que pratica MGF’, mas sim ‘comunidade afetada pela MGF’”, exemplificam as jovens, sendo que Fatu foi a primeira galardoada com o prémio António Brandão de Vasconcelos, que incentiva o prosseguimento de estudos por jovens líderes Ubuntu, enquanto Ana foi presidente, durante dois anos, do Núcleo de Estudantes Africanos do ISCSP.

Ana Só / DR

Em declarações à CCA, a DGS evidencia que “em Portugal é necessária especial atenção à MGF entre as comunidades e pessoas imigrantes de países que apresentam prevalência de MGF”, lembrando que conforme a Orientação n.º 008/2021, de 30 de junho “os profissionais de saúde devem saber identificar e orientar a criança, a jovem ou a mulher com uma MGF e devem ter um papel ativo na informação das comunidades no sentido de prevenir a sua realização nas novas gerações”. Por outro lado, releva que “é necessário envolver as famílias e a comunidade, afetadas pela prática de MGF, de modo a prevenir a sua recorrência e estimular a literacia em saúde para esta prática”, continuando que “os profissionais de saúde devem trabalhar com a população no âmbito das Unidades de Cuidados na Comunidade”, na medida em que, “através deste processo, pretende-se que a comunidade seja encorajada a assumir a responsabilidade pelos seus problemas, informada no sentido de compreender os riscos e impactos da prática da MGF, capacitada para promover a sua prevenção e para tomar decisões usando os seus próprios recursos e mecanismos”.

Para a DGS, “o registo dos casos de MGF na plataforma RSE é sinónimo de intervenção dos profissionais de saúde e constitui um indicador de que existe sensibilidade e conhecimento destes profissionais sobre esta matéria”, sendo que “deste registo faz parte um item sobre a orientação do profissional de saúde à pessoa acerca do enquadramento legal da MGF, com o objetivo de oferecer informação sobre os direitos da pessoa numa perspetiva educativa e preventiva”. Já no âmbito da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não-Discriminação (ENIND) “estão programadas medidas e atividades no que respeita as práticas tradicionais nefastas, nas quais se inclui a MGF”. Por outro lado, “mais concretamente, no âmbito da Saúde, propõe-se o alargamento e consolidação do ‘Programa Práticas Saudáveis: Fim à MGF’ a outras zonas geográficas do país, com prevalência de MGF e a realização de nova edição do Curso de Pós-Graduação em MGF, destinado a profissionais de saúde”.

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