Reportagem. Mutilação Genital Feminina: “Portugal necessita com urgência de uma resposta integrada para as sobreviventes” (parte II)

por Maria Moreira Rato,    6 Fevereiro, 2024
Reportagem. Mutilação Genital Feminina: “Portugal necessita com urgência de uma resposta integrada para as sobreviventes” (parte II)
Fotografia de Nadine Shaabana / Unsplash
PUB

Na segunda parte da reportagem sobre a mutilação genital feminina (lê aqui a primeira parte), a Comunidade Cultura e Arte falou com a gestora do Gabinete de Apoio à Vítima de Lisboa, a autora de uma dissertação de mestrado acerca do tema, uma Professora Catedrática, a presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde, uma médica, ativistas e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

Joana Menezes, gestora do Gabinete de Apoio à Vítima de Lisboa, aborda extensivamente a questão da mutilação genital feminina (MGF) em Portugal. Partilha a sua vasta experiência na área e enfatiza “a falta de dados precisos sobre MGF no país devido à subnotificação e à ausência de um sistema de registo abrangente”, constatando, como Vítor, por exemplo, “que os números reportados pela DGS são subestimados” e ressalta “a necessidade de um registo mais sistemático das situações de mutilação”. Joana também discute “a importância da consciencialização e prevenção, especialmente em comunidades emigrantes onde a prática ainda é comum”. Além disso, fala dos “desafios no apoio às vítimas de MGF”, enfatizando “a necessidade de sensibilidade cultural e conhecimento especializado por parte dos profissionais” que lidam com estas.

A conversa aborda a complexidade do trabalho de apoio, incluindo a produção de materiais informativos sobre MGF pela APAV, “que dependem de financiamento específico”. Por isso, mais uma vez, fala-se “da importância do trabalho contínuo das organizações e profissionais de apoio para combater a MGF e apoiar as vítimas”, sendo que Joana realça “a necessidade de recursos adequados e uma abordagem holística para lidar com o problema”. A legislação portuguesa relacionada à MGF foi discutida em detalhes, observando-se que “é suficiente para lidar com o problema”, mas enfatizando-se, novamente, a importância da educação sobre o assunto. Além disso, Joana relevou a necessidade de “envolver ativamente as comunidades afetadas” na luta contra a MGF — prova disto é o envolvimento de Abi, Fatu e Ana nesta luta — e a importância de “recolher e divulgar estatísticas precisas para uma melhor compreensão do fenómeno”. Quem estudou a legislação foi Helena Santos na sua dissertação de mestrado ‘A Mutilação Genital Feminina em Portugal e a sua Proteção Jurídica – O debate político e a criminalização da prática’, apresentada à Universidade do Minho, em 2016, para a obtenção do grau académico de mestre em Direitos Humanos.

Campanha pela erradicação da MGF no Senegal / Creative Commons

O interesse pela temática da MGF começou a surgir quando frequentava a unidade curricular de Direitos Fundamentais na Licenciatura de Direito da Universidade do Minho. “Apesar de, na altura, já ter frequentado a unidade curricular de Direito Constitucional, foi a UC de Direitos Fundamentais que me impulsionou a frequentar o Mestrado em Direitos Humanos, na mesma Universidade. Então, no último ano da licenciatura comecei a ler vários livros bibliográficos cuja temática abordava a violação de Direitos Humanos e, sendo eu mulher, a questão da MGF sensibilizou-me bastante. Por isso, quando comecei o mestrado já tinha a noção que era sobre esta temática que a minha tese incidiria”, explica, sendo que, com a criação do artigo 144.º A do Código Penal Português, achou “por bem abordar o tema nestes moldes”. No entanto, “o processo não foi fácil, muito pelo contrário”, pois, “no nosso país, além de, na altura, não haver jurisprudência sobre o crime, a nível de literacia académica o catálogo era muito escasso” e, assim, baseou-se “bastante em artigos escritos por antropólogos de outros países”. “Tal como relatei na dissertação, se estes casos são realizados em Portugal, são na clandestinidade. Mas acredito que a maioria é realizado nos países de origem destes imigrantes enquanto lá vivem, ou nascendo cá as crianças do sexo feminino são enviadas ao país de origem, nomeadamente em período de férias escolares, com incidência na época da Páscoa, e lá é realizada a excisão”.

No resumo da dissertação, Helena escreveu que “Portugal é considerado pela OMS um país de risco em relação à mutilação genital feminina, pois é um país de acolhimento de imigrantes africanos para os quais a MGF é uma realidade“. “Para ser sincera, a maioria da população portuguesa não conhece, de todo, esta prática. A MGF é tema tabu, não é abordado em conversas de café. Há pouca literacia acerca do assunto, e mesmo a comunicação social aborda esta questão uma vez por ano, nomeadamente no dia 06 de fevereiro”, aponta. “Na União Europeia são requerentes de asilo, na sua maioria, nacionais da Nigéria, Eritreia, Etiópia, Guiné-Conacri e Costa do Marfim, sendo os países da UE mais procurados por estas requerentes a França, a Itália, o Reino Unido, a Bélgica, a Alemanha e a Holanda“, escreveu. Esta ainda é a realidade ou com a alteração dos fluxos migratórios ter-se-á alterado?

Como é de conhecimento geral, os fluxos migratórios alteraram-se, e todos sabemos que Portugal passou a ser um país de ‘portas abertas’ Nada contra esse facto. Mas sabemos que há um crescimento de comunidades de vários países que procuram Portugal para obter um título de residente europeu, seja por meio de vistos, ou pela legalização por trabalho, nomeadamente com manifestações de interesse. Por tal, a imigração cresceu exponencialmente no nosso país e é normal que venham imigrantes de países em que a MGF prevalece. Temos como exemplo, o caso da comunidade indiana, que faz uso da prática, e está em pleno crescimento em território nacional”, aborda Helena, observando que “a legislação portuguesa já protegia qualquer pessoa que sofresse ofensas à integridade física grave (artigo 144º do Código Penal), crime que já contemplava vítimas da MGF”. Contudo, desde 2015, “existe um artigo cuja epígrafe é ‘Mutilação Genital Feminina’ (144.º A CP), ou seja, tornou-se um crime autónomo, com pena de prisão prevista dos 2 aos 8 anos”. “Se acho que este artigo tem aplicabilidade prática? Sinceramente, não. Este crime é muito complicado de se provar, são poucos os casos que o Ministério Público tem conhecimento, e muito menos aqueles que chegam a ser julgados em tribunal. Muitos dos casos são arquivados porque não se consegue provar quem pratica a excisão. A lei tenta proteger as vítimas, mas tal é difícil quando não se pode apontar quem cometeu o crime. Por tal acho que, as campanhas de sensibilização contra a MGF, seminários e educação sexual nas escolas têm que andar de ‘mãos dadas’ com a lei, para quem é vítima perceber que o é”, finaliza.

A ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros concorda com Helena, começando por frisar que “a MGF é um assunto de toda a sociedade”. “É hoje em dia um dos principais atentados contra os direitos das mulheres e raparigas sob forma de as controlar e subjugar. Apesar de ser um problema mundial, está maioritariamente concentrado nos países africanos e do Médio Oriente. No entanto, Portugal também não escapa a esta ‘prática’ absolutamente aterradora. No Plano de Ação da União Europeia para os Direitos Humanos e a Democracia para 2020-2024, a erradicação da mutilação genital feminina é definida como uma medida prioritária”, diz, explicando que a Convenção de Istambul “define o conceito de mutilação genital feminina e exige a sua criminalização”, sendo que, “nos países que ratificaram a Convenção, as vítimas têm de ser protegidas de acordo com as medidas acordadas”. “As ações levadas a cabo incluem a sensibilização das populações, a defesa de uma melhor proteção jurídica e de um melhor acesso ao apoio por parte das vítimas, a promoção de mudanças sociais e o reforço das capacidades dos profissionais, bem como o diálogo com as sobreviventes e as ativistas locais”, diz a UE. “As ações têm por base: os domínios prioritários definidos na Comunicação relativa à eliminação da mutilação genital feminina a partir de 25 de novembro de 2013; o combate a práticas nocivas e à violência de qualquer tipo contra as mulheres e as raparigas; o Plano de Ação III em matéria de igualdade de género para 2021-2025“.

Professora Sónia Dias / DR

É, portanto, prioritário definir a MGF como um assunto que tem por base uma questão de extrema importância na sua erradicação! Ao ritmo atual, 68 milhões de raparigas serão mutiladas entre 2015 e 2030 em 25 países onde a mutilação genital feminina é praticada de forma rotineira. É imperativo que se aborde este assunto nas escolas e comunidades mais frágeis, que se explique e que o governo adote as medidas adotadas pela Convenção de Istambul. Em nove anos, foram detetados 835 casos de mutilação genital feminina em Portugal, o que faz com que tenhamos que estar todos muito mais conscientes: comunidade, escolas, hospitais, ONGs e ativistas”, conclui Francisca. E é esta a solução também na ótica de Sónia Dias, diretora e Professora Catedrática da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade NOVA de Lisboa que, ao longo da carreira científica, se tem dedicado a temas como a saúde das populações migrantes, incluindo a saúde sexual e reprodutiva.

Estimativas da Rede Europeia pelo Fim da MGF indicam que 190 mil raparigas, só em 17 países europeus, correm o risco de serem mutiladas, e que 600 mil mulheres vivem com consequências desta prática na Europa. Pela sua incidência e gravidade, a MGF é considerada um problema de saúde pública, e várias entidades internacionais, como a OMS, a UNICEF e as Nações Unidas salientam a importância da intervenção para erradicar esta prática. Vale a pena frisar que a eliminação da MGF e o combate à disseminação desta prática nociva é um dos aspetos fundamentais para alcançar o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável n.º 5 – Igualdade de Género”, adianta, sendo que explica que a pós-graduação sobre MGF, da ENSP, surgiu “da necessidade de capacitar profissionais de saúde para uma intervenção integrada de prevenção e erradicação da MGF, já enquadrada na Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação 2018-2020“. 

Assim, a ENSP aliou-se à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, à DGS e à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, numa iniciativa conjunta inédita para realizar a Pós-Graduação em Mutilação Genital Feminina, com vista a reforçar a atuação comunitária nesta problemática, com ênfase na dimensão local e no trabalho de proximidade entre os profissionais e as comunidades”, diz. O curso, que teve a sua primeira edição em 2021, “abrangeu dezenas de profissionais que reforçaram a rede já existente de profissionais de referência com formação específica em MGF, tornando-se agentes multiplicadores do conhecimento adquirido sobre esta matéria”. Tal assume especial relevância porque, “à semelhança de vários países europeus, assiste-se a um crescimento da percentagem de mulheres e raparigas afetadas pela MGF em Portugal” e “só em 2022, os 190 casos registados representam um aumento de 27,4% em relação a 2021”. “Mas é preciso ver que um número muito reduzido destes casos foi registado como tendo sido realizado em território nacional. No entanto, não deixa de ser preocupante, e requer uma especial atenção, o número total de mulheres que vivem com consequências desta prática em Portugal. Dos casos registados em 2022, as idades no momento do registo variam entre os 5 e os 63 anos. Considerando as implicações que a MGF tem para a saúde e bem-estar, intervir para erradicar esta prática e combater a sua disseminação continua a ser uma prioridade”.

Exemplo de campanha para a erradicação da MGF / DR

Dos 190 casos notificados na plataforma, em 2022, foi constatada a intervenção dos profissionais de saúde em 84,2% (160) dos casos. “Nas últimas décadas, Portugal tem desenvolvido vários esforços para erradicar as práticas de MGF, no sentido de capacitar as comunidades em risco, mas também os profissionais que lidam com estas situações, incluindo profissionais de saúde, e ao nível da adaptação dos cuidados de saúde para as necessidades das vítimas de MGF. É importante intensificar estes esforços e ampliar a sua implementação a mais territórios com representação expressiva de populações migrantes. É com esta motivação que a ENSP continua o seu trabalho na área da formação de profissionais, estando previsto, este ano, a realização de uma segunda edição da pós-graduação sobre MGF”, continua Sónia Dias, acreditando que “tem havido uma crescente consciencialização sobre a MGF na sociedade portuguesa, em grande parte devido aos esforços de organizações de direitos humanos, organizações e profissionais de saúde, educadores e ativistas para consciencializar as comunidades sobre os perigos e impactos desta prática”. 

As autoridades também têm desenvolvido políticas e programas para prevenir a MGF e prestar apoio às vítimas. No entanto, há ainda trabalho a ser feito. A erradicação da MGF é um desafio complexo que requer uma abordagem integrada e coordenada a vários níveis. A nível de políticas, é importante continuar a apostar no reforço de leis que proíbam a prática da MGF, assim como no desenvolvimento de estratégias contínuas e abrangentes de educação e sensibilização para aumentar a consciencialização sobre os efeitos prejudiciais da MGF, destacando os valores da saúde, direitos humanos e igualdade de género”, sugere, recomendando: “É também necessária uma intervenção integrada ao nível do reforço de instituições locais como unidades de saúde, escolas e organizações da sociedade civil, com a capacitação dos profissionais para esta problemática de forma a atuarem atempadamente perante casos de MGF e potenciar o acesso a apoio médico, psicológico e social para mulheres e meninas que vítimas desta prática”. “A intervenção ao nível comunitário é também essencial para ampliar a sensibilização sobre os danos físicos, emocionais e psicológicos da MGF, bem como modificar crenças culturais e tradicionais que sustentam esta prática, através do diálogo e mudanças de atitudes nas comunidades afetadas, por exemplo, recorrendo às redes sociais e envolvendo os atores chave e líderes informais das comunidades. A capacitação das mulheres e meninas para que tenham voz na defesa dos seus direitos também é crucial para combater este problema de saúde pública”.

Professora Cristina Vaz de Almeida / DR

Quem se alinha com Sónia Dias é Cristina Vaz de Almeida, Presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS), professora universitária e investigadora. Aborda “a necessidade de sensibilizar a sociedade, incluindo os profissionais de saúde e as comunidades afetadas, para os riscos e consequências da MGF”, falando da “importância de uma abordagem multidisciplinar, envolvendo não apenas profissionais de saúde, mas também assistentes sociais, educadores e líderes religiosos, para combater este problema de forma eficaz”. Cristina Vaz de Almeida aponta também “a falta de dados precisos sobre a extensão da MGF em Portugal” e frisa, como os outros entrevistados, “a necessidade de pesquisa e recolha de dados para entender melhor a problemática e desenvolver estratégias de prevenção mais eficazes”. Além disso, menciona “a necessidade de apoiar e capacitar ativistas que trabalham nesta área e de promover a igualdade de género e os direitos das mulheres como parte desse esforço”. A conversa também destacou a importância de abordar questões relacionadas com a saúde mental e a identidade das mulheres que foram submetidas à MGF, bem como a urgência “do apoio e assistência” a estas sobreviventes. Acima de tudo, precisamos de “ações concretas para combater este crime” e a dirigente da SPLS promete que esta entidade “está e estará empenhada na luta contra a MGF”.

Igualmente empenhada está Isabel Hermenegildo, médica especialista em Ginecoestética e Presidente da Comissão de Ginecoestética da Sociedade Portuguesa de Medicina Estética, que trabalha em Portugal, mas também atua noutros países como França. A profissional de saúde partilha as suas experiências ao lidar com sobreviventes desta prática na sua carreira, destacando que a maioria dos casos que ela viu na Europa envolviam imigrantes de regiões onde a mutilação é comum. Explica os diferentes tipos de mutilação — referidos anteriormente —, bem como os procedimentos cirúrgicos para correção, enfatizando “a importância de técnicas que preservem a sensibilidade e a função sexual”. Mencionou os motivos culturais, sociais e religiosos por trás da prática da mutilação e como ela é usada “para controlar a sexualidade das mulheres”. A médica também indicou “os desafios políticos e sociais em abordar este problema, especialmente em países onde a mutilação é uma prática cultural enraizada”. Ressalta “a necessidade de sensibilização, tratamento adequado e apoio às vítimas, enfatizando que essa prática não deve ser tolerada, mesmo em nome da diversidade cultural”. Além disso, frisa “a importância de oferecer esperança e tratamento às mulheres afetadas”, ressaltando que “existem opções de reconstrução disponíveis” e que estas devem ter conhecimento das mesmas. No caso de Isabel Hermenegildo, a intervenção é feita antes de outras técnicas cirúrgicas, habitualmente com carboxiterapia. Isto é, uma terapia estética que se baseia na aplicação de gás carbónico na pele para tratar diversas condições como celulite ou estrias. Neste caso, a ideia é tratar fibroses resultantes da MGF.

Fotografia de Hayley Murray / Unsplash

Em 1991, enquanto fazia Erasmus na Alemanha, Alexandra Alves Luís conheceu uma estudante guineense que lhe falou de uma prática que, posteriormente, viria a entender que se trata da MGF, sendo que dada a história de opressão colonial que Portugal tinha sobre a Guiné-Bissau, Alexandra não se sentiu apta a comentar o tema à época, pois não estava familiarizada com o assunto. Mais tarde, em 2008, durante o seu mestrado em Estudos sobre Mulheres na NOVA – FCSH, teve uma aula ministrada pela jornalista Sofia Branco, uma pioneira na pesquisa sobre MGF em Portugal. Foi nesse momento que compreendeu que a estudante guineense em 1991 poderia ter mencionado a MGF, algo que não compreendia antes. A partir desse encontro com Sofia Branco, o apoio aos sobreviventes e a prevenção da MGF tornaram-se uma prioridade para Alexandra, que já contactou com variadas sobreviventes desta prática nefasta. “Muitas, não sei dizer o número exato, mas várias em Portugal de origem imigrante e também portuguesas que em algum momento da sua infância foram levadas à terra de origem dos seus pais e foram submetidas à MGF”, diz. “Depois, inúmeras pessoas noutros países europeus – Reino Unido, Espanha, França, Alemanha, Holanda, Suécia, Finlândia, Polónia ou outros países onde a prática é prevalente em África – Etiópia, Egito, Guiné-Bissau, Senegal, África do Sul, Moçambique, Quénia, nos EUA, na Colômbia, na Índia, só ainda não estive em contacto com pessoas oriundas da Indonésia e Malásia”, constata, declarando que não tem conhecimento “de qualquer casa em que a menina ou rapariga tenha sido submetida à MGF em Portugal”.

Por todos estes motivos, realizou o documentário ‘A Tua Voz’, pois havia a “necessidade de sistematizar a informação do trabalho desenvolvido na Escola Secundária da Baixa da Banheira, para que mais escolas adiram a que o tema seja trabalhado de forma continuada, recolher testemunhos de sobreviventes, de ativistas mulheres e homens e de ter um instrumento de trabalho sem imagens horríveis, sem sangue e que trata as pessoas com dignidade”. E será que o mesmo teve o devido impacto? Alexandra acredita que sim, pois tem utilizado o mesmo em ações de formação “e tem-se revelado um excelente instrumento na prevenção da MGF”. “Cumprimos rigorosamente o acordado com as participantes: não disponibilizar o documentário nas redes sociais e promover debates pós-exibição do filme para um maior conhecimento da realidade da MGF e do trabalho feito em Portugal e na Guiné-Bissau”, promete. “Ainda existe algum desconhecimento, incluindo de profissionais que estão a linha da frente da resposta a sobreviventes. Nos projetos que desenvolvemos apostamos sempre na formação de profissionais, de docentes e no trabalho junto das escolas onde se pode trabalhar com meninas e raparigas em risco ou que já tenham sido submetidas”, explica, adiantando que “é importante, a nível dos órgãos de comunicação social, uma adequação da linguagem utilizada para evitar uma maior estigmatização das sobreviventes e das suas comunidades de pertença”.

Portugal necessita com urgência de uma resposta integrada para as sobreviventes: um primeiro centro, exemplo do Desert Flower Center, em Berlim e noutras cidades europeias, que ofereça um tratamento holístico para as sobreviventes, com cirurgias reconstrutivas, se a mulher desejar, tratamento especializado a nível ginecológico, urológico e psicológico, incluindo mediadoras sociais das comunidades afetadas. Esta deverá ser a prioridade a nível de políticas públicas. Não podemos esperar mais”, finaliza, sendo que a criação da Associação Mulheres Sem Fronteiras (AMUSEF), de acordo com Ana Ribeiro, doutoranda em Estudos de Género na FCSH, em 2016, “nasce do encontro de vontades de duas amigas determinadas a contribuir para a construção de um mundo livre de todas as formas de discriminação e de violência, no qual meninas, raparigas e mulheres vivam em pleno os seus direitos”.

Portanto, Alexandra juntou-se a Christine Auer para realizar “trabalho de proximidade com meninas, raparigas e mulheres, na comunidade e em contexto escolar”, envolver “as mulheres das comunidades locais nos projetos desenvolvidos de forma remunerada”, efetuar “um acompanhamento continuado a raparigas excisadas, seja ele feito em contexto escolar ou comunitário” e trabalhar “este tema com a comunidade escolar de forma alargada”, recorrendo “às artes nas suas atividades, com a colaboração de artistas plásticas, ilustradoras, coletivos (como o Teatro das Oprimidas)”, utilizando “suportes diversos como fotografia, cinema, grafitti, ilustração”. Para além disto, “pensa as mulheres, a cidade, a crise climática de forma agregada, valorizando a memória histórica das mulheres na cidade, através da dinamização de rotas feministas em Lisboa”, pensa igualmente “as implicações da mobilidade suave na vida das mulheres”, promovendo “aulas de bicicleta gratuitamente” e desenvolvendo “experiências de economia circular” e fomentando “o acesso das mulheres à cidade e à cultura”.

Fotografia de Nsey Benajah / Unsplash

Em declarações à Comunidade Cultura e Arte, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) recorda que, em Portugal, desde 2015, a MGF é considerada um crime de ofensa grave à integridade física. Em 2018, esta questão foi incluída no Plano de Ação para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, como parte da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030, denominada ‘Portugal + Igual’ (ENIND). No mesmo ano, o Projeto ‘Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina’ foi lançado, constituindo um programa que atua principalmente através das Unidades de Saúde Pública, em colaboração com várias entidades, como a CIG, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. Desde então, houve um aumento significativo nos registos de casos de MGF nos sistemas de saúde eletrónicos, indicando uma maior capacitação dos profissionais de saúde para detetar, sinalizar e intervir em situações de mulheres e meninas sobreviventes desta prática nefasta. Atualmente, o projeto está em vigor em 10 Agrupamentos de Centros de Saúde em várias regiões de Portugal.

Foram igualmente criadas linhas de apoio técnico e financeiro para projetos de prevenção e combate à MGF, sendo que o financiamento para estes projetos aumentou ao longo dos anos, com o governo a demonstrar um aparente compromisso contínuo com esta causa. Campanhas de sensibilização, como ‘Não Corte o Futuro! Fim à Mutilação Genital Feminina’, têm sido lançadas anualmente, incluindo ações em aeroportos para alertar sobre esta prática. O Sistema de Informação de Apoio à Vítima (SIAV) tem sido reforçado com gabinetes de apoio em locais estratégicos para oferecer assistência especializada a mulheres migrantes vítimas de violência, incluindo MGF. O esforço para enfrentar a MGF inclui a formação especializada para profissionais de saúde, a realização de estudos sobre a prevalência da prática em Portugal e a expansão do ‘Projeto Práticas Saudáveis’ para outras áreas do país, como parte dos novos Planos de Ação da ENIND para 2023-2026. Portugal participa em projetos internacionais, como o ‘Intercultural Approach to Prevent Harmful Practices’, liderado pela CIG em consórcio com outras entidades, visando abordar questões relacionadas com práticas prejudiciais como a MGF.

Existe um ponto comum nas declarações de todos os entrevistados: a urgência de uma abordagem holística centrada nas meninas e mulheres vítimas de MGF e naquelas que estão em risco de se tornarem vítimas. Por isso, a maioria deles, à data da publicação deste artigo, estava a levar a cabo contactos entre si para desenvolver uma network que permita a maior consciencialização para esta questão, desenvolvendo um trabalho que possibilite o avanço português relativamente a este crime que, desde 2003, é combatido internacionalmente por meio do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, sendo que, no ano passado, o tema foi ‘Parceria com Homens e Meninos para Transformar Normas Sociais e de Género para Acabar com a Mutilação Genital Feminina.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.