Reportagem. “Não sou racista, mas casar com o meu filho não”
Existe racismo em Portugal. Se partirmos deste pressuposto inicial a discussão torna-se logo menos sobre a sua existência, que tantas vezes comprova quem tem de comprovar (quem por ele passa) e mais sobre como o combater e mitigar.
“Não sou racista, mas casar com o meu filho não”. É “só” uma expressão, carregada ela própria da negação de algo que se é e que embora não se queira ser parece que não se consegue evitar, parece que é mais forte mas que tem de ser desculpado. É “só” uma de tantas expressões que pessoas negras ouvem em Portugal relativamente ao seu tom de pele, à sua diferença. Enquanto brancos todos se tentam individualizar na forma de vestir, de falar, de andar e de ser. A diferença é boa, é positiva, é até incitada. Mas não na cor de pele. Quando a diferença é o tom de pele metem-se coisas no meio que afinal tornam a diferença incómoda. “Parece que o tom da pele define o grau de estudos, a profissão, o conhecimento…”, é assim que Catarina Sales de Oliveira, professora e investigadora na Universidade da Beira Interior no departamento de sociologia, sendo a presidente do mesmo departamento, encara o racismo, como uma “categorização daquilo que as pessoas podem ou não ser ou fazer mediante o tom de pele”.
Catarina olha ainda para o problema do racismo como uma realidade que de tão repetida e discriminatória, acabar por levar a que pessoas que sofram de discriminação automaticamente aceitem o que ouvem e até acreditem que merecem esse tipo de tratamento ou realidade. “Um problema com as desigualdades é que a pessoa discriminada veste esse papel e autolimita-se. Torna as pessoas frágeis, enquanto grupo e enquanto indivíduos. A pessoa quando é estigmatizada cria essa imagem de si própria, de que é só aquilo”. Mesmo no humor e nas piadas o racismo se demonstra. “O humor tem sempre por base caraterísticas e formas de pensar da sociedade em que se insere. Obviamente que piadas que tenham por base o tom de pele do outro têm sempre uma base racista por muito que sejam humor e podem ter a capacidade de magoar o outro” refere. Deixamos aqui algumas meramente a título exemplificativo: “que se passa com o teu cabelo, foi eletrocutado?”; “já foste à praia? Em ti não se nota”; “estás a pôr protetor solar? Tu não precisas”; “estou mais bronzeado que tu e não sou preto”. Feitas para rir, mas que magoam como qualquer crítica direta que pudesse ter sido feita. E que só dizemos porque não nos estamos a colocar de quem ouve.
Relativamente ao caso mediático que trouxe o assunto de volta à discussão, a morte de George Floyd nos Estados Unidos da América, a docente acha que se o mediatismo do caso “segue uma lógica do que é atualmente a política comercial e sensacionalista dos grandes meios de comunicação, o que acaba por subverter um pouco as coisas”, é apesar disso muito importante que casos como este se mostrem, pois alertam para uma “realidade que ainda existe, nomeadamente a violência das forças de segurança em certos países, principalmente nos Estados Unidos da América, contra comunidades de raças diferentes”. “Nós ao vermos aquele homem a pedir ajuda enquanto morria, é um caso horrível e percebemos que vai continuar a acontecer” e é esse o motivo que a mesma aponta para a importância de se continuar a batalhar e a falar no tema. E os meios de comunicação devem para Catarina Sales ter um papel fundamental na transmissão destes casos mais duros mas importantes para mudar a realidade. “Qual é que era a alternativa? Esconder a realidade? Faz parte da missão do jornalismo, o jornalista quando revela algo é um ator social que quer denunciar e criar mudança”. Relativamente às imagens duras que muitas pessoas dizem que “não se deveriam ver”, é perentória: “Isto não devia era acontecer. Se acontece temos de ver para entender como ajudar e mudar”. Aliás, para a professora da UBI, a melhor forma de combater “é falar, é discutir o tema, é trazê-lo e fazer dele assunto”. Uma das grandes mudanças que é preciso fazer para Catarina Sales é “abrir horizontes, tentar acabar com ideais e padrões ideais de beleza muito restritos e trazer mais diversidade para que tudo se torne normal e não sejamos todos iguais. Tem sido feito, é uma realidade em construção e é algo que tem de ser continuado, nomeadamente desde criança que é onde os estigmas se combatem melhor e onde os desenhos animados têm um papel fundamental nessa reeducação”.
Uma das principais ameaças à democracia e ao respeito pelo outro são as ideologias extremistas, que muitas vezes originam a criação de partidos radicais e com posicionamentos que restringem liberdades. Catarina Sales demonstra-se preocupada com esse crescimento atual desse tipo de partidos e não entende como é que “se apaga tão depressa a memória coletiva de algo tão marcante pela negativa como foram os regimes fascistas ainda há pouco tempo”. Dá o exemplo de Primo Levi, “autor que esteve num campo de concentração e que se matou em 1987 por achar que o mundo já se estava a esquecer do que tinha acontecido, não aguentando o medo de que tudo ressurgisse e de passar novamente pelo mesmo”.
Não há racismo em Portugal só porque nunca o sentimos? Esta dúvida pôs-se depois de Rui Rio ter afirmado exatamente essa ideia de que nunca sentiu racismo e que por isso entendia que ele não existia em Portugal. Catarina Sales discorda por completo. “Há racismo em Portugal, não há nenhuma dúvida disso. Pode haver de facto pessoas que nunca tenham experienciado situações do género, tiveram sorte, mas é muito complicado chegar à idade adulta sem saber que ele existe e como se manifesta”. Além disso, é para a docente redundante perguntar a uma pessoa branca se há racismo contra pessoas negras. Quem tem de falar é quem pode ou não sofrer desse tipo de atitudes”. Muitas comparações se têm aliás feito sobre o falar de algo que não se sente, sendo que a título de exemplo pense-se no homem que diz as dores de parto não são nada de especial. Estará sempre, quer queira quer não a falar de algo que não consegue medir. É igual no racismo.
Outro argumento que Catarina Sales desmistifica é o racismo invertido, que as pessoas utilizam para se defender quando criticadas por serem racistas, quando dizem que “eles são mais racistas do que nós, até entre eles são racistas”. “Para mim esse argumento é por no outro a responsabilidade daquilo que fazemos. Tentar naturalizar e mostrar que está tudo bem no que fazemos. Tornarmos a pessoa que atacamos igual a nós, parece que desculpa os nossos atos”, refere.
Dia 18 de Junho, a Comissão para a Igualdade da UBI terá uma conversa aberta ao público sobre esta temática, onde falarão professores e alunos conhecedores desta situação e desta realidade falarão e trocarão opiniões e vivências, para dar voz ao tema e criar consciencialização na comunidade sobre o mesmo. Esta comissão é aliás pioneira em Portugal e tem sido um trabalho muito importante que a Universidade da Beira Interior vem desenvolvendo para a promoção da aceitação da diferença e do respeito pelos outros independentemente de qualquer fator ou característica, tendo sido até a primeira universidade do país a ter um plano de igualdade aplicado. “A UBI tem tido um papel fundamental de combate à desigualdade na região, prova disso é muitos alunos que vêm para a Covilhã vindos de fora acabam por ficar. Isso quer dizer que se sentem confortáveis, que são aceites aqui independentemente do país de onde vêm ou do tom de pele que têm”. Dá ainda o exemplo do bom trabalho de integração que tem sido feito pelo centro de acolhimento de refugiados no Fundão e que é fundamental para um aumento de aceitação das comunidades estrangeiras em zonas mais tradicionais como é o Interior.
Sentir o racismo na pele
Adriano Cuma (Aluno de mestrado em Relações Internacionais na UBI, 40 anos, Guiné-Bissau)
“Aqui em Portugal, já sofri de racismo. Foi numa empresa onde trabalhava na altura, certo dia a discutir com os meus colegas do trabalho, um deles disse-me que se fosse o presidente de Portugal mandava expulsar todos os negros e índios do país. O outro, no mesmo dia, num outro momento disse-me “olha não é nada com contigo, mas, eu não gosto de pretos angolanos porque são muito folgados”. Lamentavelmente, até este momento o discurso ainda está centrado nesta pergunta do será que existe o racismo em Portugal, mas que na verdade o discurso deveria ser: como combater o racismo em Portugal?”
Ezequiel Félix (Aluno de licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais na UBI, 20 anos, Portugal com raízes da República Democrática do Congo)
“Infelizmente já sofri de atitudes racistas, e o que mais me afetou foi o facto de ter sido na freguesia na qual tinha crescido durante a minha vida inteira. Tive um sentimento de revolta e de profunda tristeza. Neste caso estava sentado ao ar livre no jardim de Caneças, em Odivelas (Lisboa), e de repente passa um senhor que olha fixamente para mim, e com um olhar de desprezo diz “volta pra tua terra pá, seu preto de m****” entre outros insultos. Se não tivesse mantido a calma a situação poderia ter ganho outras proporções, tanto que me retirei. Em Portugal não há “racismo estrutural, mas como em qualquer país existe racismo e claro que este deve ser combatido. Apesar disso nós pessoas de cor em Portugal e também cidadãos portugueses, gozamos de qualquer direito igual ao que goza um português “branco”. Apesar disto, fico profundamente contente pelo facto de as pessoas da minha geração juvenil comprometerem-se a lutar contra qualquer tipo de atitude e pensamento racista. É um olhar de fé e esperança para o futuro do nosso país.”
Este artigo é da autoria de Fernando Gil Teixeira e foi publicado originalmente em Jornal Fórum Covilhã