Reportagem. Peter Evans e Orquestra Jazz de Matosinhos na Culturgest
A união do trompetista avant-garde Peter Evans à Orquestra Jazz de Matosinhos pode afigurar-se como um par inusitado, mesmo para quem não perceba muito de jazz. As duas actuações em Portugal (na Casa da Música e na Culturgest) do espectáculo que os une – Perception Beyond Knowing – surgiram por iniciativa do conjunto de músicos de Matosinhos, na sua sede de experiência musical, que ainda não tinha passado pelos terrenos do free jazz. Nessa perspectiva, decidiram unir-se a uma das figuras mais proeminentes do mesmo. Peter usa o trompete para criar sons que não pensávamos ser passíveis de existir, usando-os para expandir os limites daquilo que pode ser a música jazz. Ao longo de uma hora e meia, passámos por dois actos desafiantes, entusiasmantes e por vezes confusos.
No início, o mote é dado por Peter, que controla a sua respiração para soltar sons meio alienígenas e quase inaudíveis do seu trompete. Ao comando da batuta, Pedro Guedes eventualmente indica aos músicos da orquestra que se podem juntar ao trompetista, surgindo por fileiras: trompetes, trombones e madeiras, que em pouco tempo levavam o som em crescendo até aos limites da dissonância. Cada elemento em separado pareceria estar a soltar melodias incompreensíveis, mas a combinação rica é o que torna o free jazz entusiasmante. As composições de Peter Evans usam a riqueza da orquestra para ganhar dinamismo, com o som a aparecer sorrateiramente do piano à esquerda, enquanto estamos atentos ao jogo de sopros do lado direito do palco.
A base que ajuda a unir todas estas peças vem do piano, contrabaixo e bateria, que compõem a secção rítmica. Muitas vezes, enquanto os sopros se ocupavam numa orgia sonora, estes instrumentos entretinham-se num jazz suave, numa justaposição antitética bastante interessante. No entanto, nem sempre se relegavam para o segundo plano, pois a competência de Hugo Raro (piano), Demian Cabaud (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria) não poderia ser desperdiçada dessa forma. Notavelmente, após se dedicarem a peças compostas por Peter, o conjunto termina o primeiro acto ao tocar um standard de Billy Eckstine, “I Want to Talk About You”, e a altura em que a secção rítmica fica só com o trompete solista (aqui numa postura mais clássica) apenas pode ser descrita como sublime.
Pedro Guedes, o maestro, dirige-se à audiência para apresentar os elementos da orquestra e contextualizar-nos um pouco a actuação a que assistíamos. O orgulho estava bem patente nas suas palavras e deixou-nos uma sensação de calor humano, pela forma como um projecto assim tem de ir avante pela iniciativa de um grupo de pessoas que trabalham em conjunto.
O segundo e último acto começa novamente com Peter Evans a emular desde motociclos a pássaros com o seu trompete. Foi bonito ver a própria orquestra a observar o solista com admiração, relembrando-nos de que até a actuação em frente a uma audiência é uma forma de aprendizagem. Entretanto, o conjunto de Matosinhos junta-se à festa, formando uma espécie de chamada e resposta entre Peter e os conjuntos de sopros, que escala rapidamente. O acto final é electrizante, com crescendos e diminuendos, e até sintetizadores futuristas à mistura, manobrados pelo pianista.
É verdade que a experimentação era a dama da noite, mas o final tinha big band escrito por cima, cortesia do percurso da Orquestra Jazz de Matosinhos; assim, quando o som diminui uma última vez, pressente-se o final na forma como os sopros surgem, épicos e com groove, crescendo até não poderem mais e acabando repentinamente, com fortes aplausos por parte do público. A mistura entre o desafio e a herança do jazz trouxe à Culturgest um espectáculo revigorante com o melhor dos dois mundos, libertando-se do pretensiosismo de algum free jazz e do rigor limitante dos clássicos.