Reportagem. Semibreve, em Braga: dias dedicados à música electrónica e media arts
Após um ano atípico, onde a edição do Festival Semibreve se deu exclusivamente online, eis que as circunstâncias permitem voltar a Braga, ao Theatro Circo e a vários outros locais da cidade, para participar num dos mais entusiasmantes eventos dedicados à música electrónica e às artes digitais. É um marco na vida cultural deste curioso tecido urbano, paradoxalmente tido como conservador, mas que durante um fim-de-semana se contamina pela modernidade e desejo de exploração.
A classificação de tudo o que tem passado pelo festival, sob um epíteto generalista e que todos acomode sem ferir a individualidade das várias expressões, poderia dar-se sob o selo de experimental. São raríssimos os espectáculos que seguem um guião, pré-formatados ao estilo de canção entrecortada por aplausos; pelo contrário, privilegia-se a forma fluida, improvisada, inerente a estilos que vão do free jazz à electrónica electroacústica. E engane-se quem julga que se trata de jargão inacessível e sobre-intelectualizado: a oferta do Semibreve, distinta de praticamente tudo o que povoa a cultura mediada à grande escalada e distribuída em massas, pode e deve ser fruída sem pudores, com gosto e curiosidade.
Os concertos são o cerne do festival, e, a haver um tema explícito para esta edição, seria porventura a colaboração. O espectáculo de abertura, na quinta-feira, ficou a cargo de CV & JAB (ou seja, Christina Vantzou e John Also Bennett) no Santuário do Bom Jesus do Monte, que nos abrigava de um certo tipo de chuva que parece cair de forma especial em Braga. Ouvimos uma interpretação livre dum trabalho conjunto de ambos, enquanto dispunham de piano, uma flauta, e muita instrumentação digital — construíram, a partir disso, a sua música, numa arquitectura indefinida e algo frágil, enquanto a baixa iluminação convidava uma espécie de meditação. Na posterior escuta do disco, reconheço alguns dos elementos e motivos sonoros dessa noite, mas não todos: a dada altura do concerto, surgem gravações de sons que nos são obviamente familiares, e quando reapropriados na performance, soltam-se da sua origem e manifestam-se apenas como sons, ora cortantemente agudos ora ritmadamente percutivos.
Houve outras parcerias ao longo do festival. Na primeira noite de concertos no Theatro Circo, Zeena Parkins partilhou o palco com André Gonçalves, para que uma harpa preparada, e mais algumas geringonças, produzissem sons alienígenas e dialogassem com o sintetizador modular, numa exploração guiada, sobretudo, por um sentido de curiosidade; logo depois, Klara Lewis e Nik Void, num registo que a espaços se aproximava do formato de canção (uma sequência de ideias breves, com dois ou três minutos), trilharam texturas industriais e ritmadas para, com o recurso a autotune e alguns truques melódicos, intuírem aproximações ao universo pop. E quando, no dia seguinte, Oliver Coates e Laurel Halo levaram a concerto o que parece ser fruto de uma relação em vários capítulos, ficou no ouvido um momento que, sem desprimor, consideramos o mais acessível de todo o festival: o violoncelista, que participou em Raw Silk Uncut Wood e também na banda sonora de Possessed — ambos lançados por Laurel Halo —, prestou-se a conduzir uma narrativa cinemática, território minimal que é parco em gestos arriscados, e que privilegia a repetição. Não surpreendeu quando ouvimos cá fora, nos momentos em que o público mede entre si impressões imediatas do que foi experienciado, ter sido um enorme sucesso sublime — e há quem faça destes momentos um esgrima intelectual, que urge apreciar.
A edição deste ano introduz no cartaz as durational performances; como o nome indica, a sua duração é factor de forma. Para o efeito, ocuparam-se dois espaços já habituais — a Capela Imaculada do Seminário Menor e o Salão Medieval da Universidade do Minho —, que ficaram aos cuidados de Flora Yin-Wong e da colaboração entre Yvette Janine Jackson & Judith Hamann, respectivamente. Ao longo de três horas, o espaço é cartografado por um sistema de som quadrofónico, que idealmente provocará um diálogo com a própria arquitectura do espaço, e pressupõe-se fluidez no movimento do público, assim como uma atenção mais fragmentada e exploratória. Em simultâneo com estes, ocorreram concertos de incidência em duas editoras — Mera e Turva — na Blackbox do gnration. O formato parece-nos vencedor e enquadra na filosofia do festival: os dias levam-se com calma, e há tempo para calcorrear a cidade, descobrindo locais especiais ao ritmo de cada um — ora com mais, ora com menos chuva.
Mas qualquer lembrança deste ano quedar-se-á incompleta sem menção a dois concertos muito especiais. O primeiro é de Rafael Toral: o músico português, cuja carreira justamente merece muita atenção fora de portas, trouxe a palco, e a pedido do festival, Time Bridges. É uma obra que intersecta idiossincrasias da sua carreira, que melhor se espelham na escolha de instrumentação, onde a guitarra eléctrica evoca o seminal Sound Body Sound Mind, e o theremin, assim como os restantes aparelhos cujo nome me evade, conjuram uma paisagem que paradoxalmente nasce da electrónica para sintetizar natureza; ecos e oscilações marulham, o theremin cíclico chilreia, e Toral navega o palco como se pisasse jardins, ciente do seu corpo como se praticasse uma dança. Verdadeiramente impressionante, e devolvemos-lhe o carinho que oportunamente expressou, após o concerto, pelo festival, pela equipa de produção e, em nota especial, pelo trabalho de Luís Fernandes, curador do Semibreve.
E o derradeiro espectáculo, à responsabilidade dos Supersilent, trouxe uma inenarrável jornada que percorreu texturas dark ambient, digamos, conduzidas pelo trompete, e que ciclicamente descambava numa frenética, louca, orquestra de sons digitais, orgânicos, maníacos — é realmente difícil descrever, mas sobressai a sensação de assistir a uma amostra do que é o free jazz, com toda a energia e liberdade que lhe é inerente, mas que se constrói a partir do instrumento digital. Para o efeito, foi utilizado um leque de teclados, que raramente soaram inadulterados — ao toque, produziam murmúrios, sons quase guturais — e um sampler, violentamente convocado, e que cuspia tijolos acústicos (imaginem uma gritaria entre vários computadores e as suas mensagens de erro). A fisicalidade de tudo isto fez tremer as cadeiras e a estrutura do Theatro Circo — consigo apenas imaginar o que terá sentido quem estava realmente perto do palco – e é um final que faz jus à história do festival, e em particular a dos closing acts.
Mais um ano, mais uma edição do Semibreve: oxalá se repita por muitos e bons anos. 2020 foi atípico, apesar de ter proporcionado excelente conteúdo, entre concertos e conversas — e essa estratégia parece ter transitado para este ano, dado que foram comissionados concertos exclusivos para plataformas online; resta-nos esperar que, para o ano, se levante o veto sobre os concertos em contexto de clubbing, que supomos ter sido recomendação das autoridades sanitárias face ao contexto pandémico. Agora, começamos a contagem até que chegue 2022 — mas muito acalentados pelos singulares momentos passados na última semana.