Reportagem. Ser argumentista, um retrato do setor em Portugal
O setor do audiovisual em Portugal tem tido, nos últimos dois anos, um crescimento sem paralelo. Impulsionado pela avidez por ficção fomentada pelos confinamentos da pandemia, o hábito de consumo dos portugueses mudou com a entrada em força do streaming. Ainda antes disso, naturalmente, as expectativas da audiência alteraram-se desde há 20 anos, o que levou a que, em 2023, no 32.º Congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDCJ), o presidente da RTP, Nicolau Santos, apelasse a uma urgente transformação digital através da união dos três principais grupos de media portugueses: RTP, Grupo Impresa e Media Capital: “A RTP, a SIC e a TVI têm sido os motores da indústria audiovisual e alimentam-na com artistas, autores e empresas. Seria interessante se todos os operadores se juntassem e criassem um player. Cada um tem a sua própria operação, que é muito pequena face aos players mundiais”.
O evento terminou com a mensagem de que a televisão não está morta e que o seu futuro passa por fazer mais parcerias, colaborações e transformações.
Ao que ao audiovisual diz respeito, todas estas alterações têm um ponto de partida: um argumento. Não há filme, série ou qualquer outro programa jornalístico ou de entretenimento sem um documento que sirva como manual de instruções para se obter sucesso.
Nesta reportagem, alguns dos principais argumentistas portugueses falam da sua experiência e identificam as dificuldades da profissão. Ao mesmo tempo, apontam possíveis soluções para que as histórias possam sair do papel e ganhar vida nos ecrãs.
Ser Argumentista em Portugal
Miguel Simal vai a uma reunião e antes de se sentar ouve: “Já sei que cobras caro”. Professor, argumentista, guionista e realizador, são mais de 24 anos nesta área iniciados no Big Brother. Além disso, como presidente da APAD – a Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos – sabe bem o que é estar nos dois lados da mesa: “Ao fim do dia pagam-me para escrever as minhas ideias. Sei que sou privilegiado mas ando sempre com a corda ao pescoço. Muitas vezes faço um trabalho e só recebo ao fim de oito meses. Mas escrever algo que vai para o ar é uma sensação única.”
Recentemente, ganhou o prémio na Conecta com a série “A Célula Adormecida”, o que despertou o interesse espanhol que se juntou para realizar o projeto numa coprodução com a SP. Se originalmente parte da série era em Istambul, agora será em Ceuta, o que leva a todo um trabalho de reescrita que não está contemplado no seu contrato. “Faço uma borla à produtora porque o projeto vai ser vendido e terá sucesso. Também oiço que isto faz currículo. Mas currículo não paga contas”, avançou. Para as séries que escreveu para a Netflix, apesar de ter um orçamento à americana, continuou a ganhar à portuguesa. Apesar de tudo, mesmo tendo sido um dos guionistas da série “Glória”, Miguel continuou a sofrer do que considera ser o maior desafio em trabalhar no audiovisual em Portugal: a continuidade. “A grande dificuldade em ser argumentista em Portugal tem a ver com a cultura audiovisual, as questões políticas e a manutenção da precariedade dos trabalhadores do setor que não são unidos o suficiente para verem a sua profissão como algo profissionalizado, ao mesmo tempo que vivem num país de grandes injustiças e acabam por ter de se deixar extorquir. Faço um projeto, ganho um prémio, mas isso não me dá a garantia de ter mais trabalho. No final de cada projeto volto sempre à estaca zero, aos concursos do ICA e à incerteza de não saber se vou ou não ganhar, e por ir outra vez às produtoras.”
A incerteza é também o factor apontado tanto por João Lacerda Matos como por André Guerra dos Santos. Para ambos, ganhar ou ser nomeado para um prémio não é garantia de nada. “Estou sempre a desenvolver ideias e apontamentos. Manter-me ocupado atenua a ansiedade que a incerteza do amanhã traz. É preciso ter sorte mas também é preciso estar preparado quando ela acontece”, diz André.
Todos os anos, a RTP abre candidaturas com o objetivo de financiar projetos para os quais as produtoras nem sempre têm algo a apresentar. Existem duas calls para a RTP 1 e para a RTP Lab, com orçamentos diferentes. “O argumentista tem de ter a possibilidade de escrever mas também de fazer este percurso de se aproximar das produtoras com um projeto, sendo possível que entre na pipeline da produtora para os vários degraus de evolução. O primeiro normalmente é a apresentação a um difusor (RTP, SIC ou TVI); o segundo se o financiamento é ou não aprovado. Já fiz este percurso muitas vezes e foram mais as vezes em que não se chegou a bom porto. Mas quando foi bem sucedido, fez-se o projeto”, diz João Lacerda Matos do alto da sua experiência como argumentista e professor de guionismo no IADE. Entretanto, se se procura um único sítio, uma secretária num pipeline que está constantemente a produzir, neste momento só a SP é que constrói um writers room para cada projeto e abre estágios. “Mas também é um trabalho faseado e aí, se calhar, em Portugal não é que seja difícil ser argumentista mas, antes, trabalhar numa indústria que não é muito diversificada e que ainda precisa de ter mais apoio que não pode ser só o ICA”, complementou.
“Prefiro ser freelancer”. É assim que depois de mais de 24 anos de carreira, Helena Amaral se vê. Detentora de uma “sólida formação técnico-académica”, na sua longa carreira profissional destacam-se os cargos de docente de Jornalismo na FCSH-UNL, na direção cultural da Fundação do Oriente e como editora, tradutora e crítica literária. “Entretanto, a vontade de escrever sempre existiu”, como revelou, e foi em nome deste ímpeto que chegou a uma produtora que estava a promover um concurso para a adaptação de um episódio para uma série da BBC. Helena venceu o concurso mas logo percebeu que teria de lutar por algo que já tinha como garantido: ser paga de forma justa pelo seu trabalho.
No início da carreira, os estagiários que hoje saem de algumas escolas direcionadas para o guionismo não têm qualquer tipo de remuneração. Consideram-se como pagamentos a experiência adquirida e os contactos que estabelecem, além de ser um bónus a ser colocado no currículo.
André Guerra dos Santos sabe bem o que é isso. Reconhece que no seu percurso teve a sorte de conhecer as pessoas certas, nomeadamente António-Pedro Vasconcelos que lhe deu todo apoio até que estreasse uma longa, “A Fada do Lar”. A partir daí, conseguiu espaço e legitimidade para se lançar como argumentista. Neste momento, já tem outros projetos que contam com financiamento. “É uma ideia [que foi] escrita há 10 anos. Enviei para todos os e-mails que descobria e que me davam. Houve uma pessoa numa produtora, alguém que lá trabalhava, que deu uma resposta positiva passado ano e meio. Lógico que quem está a começar sujeita-se às caixas de e-mails. O facto de já ter um filme no currículo ajudou a que alguém lá fosse ler. Se as pessoas veem o meu nome, forem pesquisar e não aparece nada, é claro que tem uma credibilidade diferente se, pelo contrário, encontrarem um filme escrito por mim, produzido pelo Tim Navarro e realizado pelo João Maia”, rematou.
Mas Helena considera que “o mercado não tem espaço para todas as pessoas”, especialmente ao observar que a APAD conta com 93 membros, e que “as produtoras preferem pessoas menos qualificadas que aceitam ordens mais facilmente, do que o contrário. A democratização do acesso à profissão é útil mas trouxe uma competição ainda maior”. É neste meio, num mercado pequeno como o português, que Helena encontra uma das maiores dificuldades para manter a sua profissão: “O maior problema são os grupos e as pessoas que não gostam umas das outras. As práticas individuais devem ser alteradas.”
Apesar de colecionar nomeações internacionais por obras de sua autoria, como foi o caso recente de “Quero é Viver”, na categoria de melhor telenovela nos prémios Rose d´Or Awards em Londres em 2022, gosta de se colocar à prova, o que a obriga a ser humilde, além de trazer novas aprendizagens e satisfação pessoal. Exatamente por isso, considera que os projetos a inundam e que “esta dádiva deveria ser muito bem remunerada”.
A FALTA DE JUSTIÇA NO TRATAMENTO
“A ‘viabilidade’ da profissão de argumentista depende mais da vitalidade da atividade cinematográfica.” Quem o afirma é António Ferreira. Fundador da produtora Persona Non Grata (PNG), já produziu 44 filmes e escreveu 13. Considera que a PNG é um caso de sucesso, “pois sobreviver num meio cinematográfico tão precário como o português, conseguindo produzir filmes de forma regular e com saúde financeira da produtora, não é fácil. Temos conseguido fazer isso sem comprometer os conteúdos dos filmes, permanecendo fiéis aos temas que queremos abordar, sem concessões artísticas, até porque o que nos move é uma vontade de comunicar com as pessoas.” Já lá vão 25 anos. “Na minha opinião, como produtor que também sou, não faz sentido gastar fortunas em arte, elenco ou imagem, se não temos uma boa história que está na base de um bom filme. Não se pode ter um bom argumento, se não valorizarmos o trabalho do argumentista”, complementa.
“É inadmissível que um argumentista que demora meses ou anos a desenvolver um guião de um filme receba, no final, menos do que um ator, um diretor de fotografia ou até do que um chefe eletricista: sei que isso acontece muitas vezes. Na nossa produtora, temos a preocupação de remunerar os membros da equipa de acordo com o tempo de trabalho e a responsabilidade do cargo que ocupam. Recusamos a ideia de ‘vedetas’, seja elenco ou equipa, que têm de ser particularmente bem remuneradas, o que normalmente se faz à custa de uma pior remuneração dos outros membros da equipa. O cinema é por definição uma arte colaborativa, é feito em equipa, como tal, é essencial que haja justeza de tratamento entre os diferentes setores.”
A SÍNDROMA DO FARSANTE PERIFÉRICO
Escrever por encomenda para cinema é subir por uma escada que a qualquer momento pode deixar-te pendurado porque outros irão decidir se essa escada leva ou não a algum lugar. Esta é uma outra forma de dizer que o sucesso e o fracasso andam de mãos dadas e que, nesta caminhada, gosta de pregar partidas. André Guerra dos Santos chegou quase a ser uma vítima nos reveses provocados pela pandemia. A sua primeira longa-metragem, “A Fada do Lar”, deveria começar a ser rodada em abril de 2020. Entretanto, 2/3 do elenco tinha mais de 65 anos. “Mais difícil do que o meu sonho ser ou não concretizado, é ter um vislumbre dessa concretização e depois…creio que não. Escrever para cinema não é como escrever livros, um argumento não é uma obra inacabada e não me consideraria argumentista se a obra não tivesse sido realizada, portanto teria dificuldade em aceitar-me como argumentista.” O projeto, ideia original sua, passou logo no primeiro concurso do ICA. Posteriormente, foi necessário adaptar o guião de acordo com as vontades dos dois realizadores e do produtor, “mas isso é o normal”, afirmou.
André considera-se um porta-voz das pessoas que querem viver do audiovisual e estão fora dos grandes centros urbanos de Portugal: “Sou provinciano, sou periférico e não há problema. Há um preço a pagar, mas é um preço que pago com gosto”. Assume que teve a sorte de ser apresentado e de se sentar com as pessoas certas pois sabe que quem está em Lisboa “tem os contatos e vai aos sítios” que não fazem parte do seu dia a dia em Lagos.
O PAPEL DO ESTADO
António Ferreira ganhou notoriedade com filmes como “Respirar (Debaixo d’Água)” (2000), uma curta-metragem que lhe valeu diversos prémios nacionais e internacionais. Seguiu com a sua primeira longa-metragem, “Esquece Tudo o que te Disse” (2002) e, em 2009, lançou “Embargo”, uma adaptação da obra homónima de José Saramago, na qual demonstrou a sua habilidade para adaptar literatura para o cinema. Acaba de filmar a sua 5ª. longa-metragem que contou com apoios públicos, pois “fazer um filme é por definição um desafio orçamental”. Para “Arménio”, título provisório deste último trabalho que estreia em 2025, tiveram um apoio público complementado com apoios internacionais através de coproduções, algo que é regra geral nos seus filmes.
Aliás, quando se fala em suporte do governo, o “Orçamento de Estado” (OE) é uma das forças motrizes para a área da Cultura. Valores abaixo do 1% têm sido a regra e é demonstrativo da importância que os sucessivos governos, de esquerda e de direita, dão à cultura. Todavia, António considera que isto não tem um impacto direto na profissão de argumentista, “pois o cinema é financiado por fundos que não dependem do OE, são fundos decorrentes de taxas sobre os operadores de televisão e plataformas de streaming”.
João Matos considera que os apoios não podem vir apenas do ICA. É preciso haver uma maior participação das marcas mas, para que isso aconteça, a lei do mecenato regulada pelo Decreto-Lei n.º 74/99, de 16 de março, tem de ser revista e ampliada para o audiovisual, dada a facilidade de chegar às pessoas e o lucro que gera. “Nós temos uma história local muito rica que se pode tornar global”, refere João. Precisa é de cifras – mais que de pernas – para lá chegar.
COMEÇAR PELAS TELENOVELAS GERA EXPERIÊNCIA…E PRECONCEITO
“Há uma certa vergonha no modo como se ganha a vida. Não tenho problemas com géneros.” Helena Amaral é, por excelência, uma autora de novelas e sente que este preconceito ainda existe, apesar da telenovela ser o género que abre, maioritariamente, as portas do audiovisual.
Como argumentista, foi uma pioneira. Antes dela, havia outras mulheres – nomeadamente no cinema – mas sempre integradas em equipas, não como autoras. Escrever novelas é uma maratona e um exercício de resiliência com pressões de todos os lados. Helena acha que estas são características próprias das mulheres mas que, ainda assim, a diferença de tratamento pelo género continua a existir: “Fomos educadas para uma maior resiliência para não sermos atropeladas. Nos últimos anos não tenho sentido isso, mas continua a existir machismo.”
Miguel Simal considera-se uma pessoa de sorte por ter trabalhado com a geração Nouvelle Vague do A.-P. Vasconcelos. No entanto, observa que este modelo nunca foi atualizado em Portugal: “As gerações seguintes foram muito influenciadas pela ideia de colocar o guionista numa posição muito secundária e, quando vais para a televisão, continua a ser o realizador ou o produtor quem manda. O Nicolau Breyner tentou reverter um pouco isso. Mas à medida em que se foi entrando num molde mais fabril, curiosamente como se passou em Hollywood, foi-se tirando poder a quem escrevia as histórias e compartimentaram como sendo apenas um pedaço da máquina. Vais ver uma série e só falam, sempre, do realizador e dos atores, nunca falam de quem a escreve. Não acho que o guionista seja mais importante do que o realizador. A partir do momento que entregas o guião, a liberdade é do realizador, mas o processo pode ficar melhor se este produto for visto em conjunto”, referiu.
Miguel observa que a indústria “é muito impaciente. Tens uma novela e, se em duas semanas não estás a dar audiências, já és visto como um fracasso. Se a tua estreia não é incrível, já vai ser visto como um fracasso. Há novos autores de novelas que, quando não corre bem nos primeiros dias, são massacrados. A novela é o mais parecido que temos com uma indústria sólida. É o único produto português com prémios relevantes internacionais. É o único que tem três Emmy. Temos alguns prémios interessantes no cinema mas nenhum relevante. Estamos na periferia de Locarno, Veneza e Berlim. Mesmo em Cannes é sempre un certain regard, nunca é uma Palma de Ouro a sério. Nas novelas, tens autores premiados e, de repente, os canais acharam que eram os diretores [dos canais] que iam dar as ideias das novelas e retiraram o ónus do autor: dão a ideia e esperam que seja o autor a desenvolver. Depois, se a novela não corre bem, dizem que em Portugal não sabem escrever e os autores premiados veem-se no papel de adaptar histórias estrangeiras.”
STREAMING, I.A…ADVERSÁRIOS OU FACILITADORES?
Quando Helena Amaral se estreou como autora com a sitcom “Milionários à Força“, “havia muito dinheiro; hoje não há”. Por outro lado os produtores e difusores querem ganhar mais e os criativos estão todos a ganhar menos. Há mais canais de distribuição no audiovisual mas as margens tornaram-se menores. “Antes fazia-se uma novela e o valor do episódio dava para pagar boas produções. Havia muita publicidade, todos ganhavam. A entrada do streaming foi muito boa em muitos sentidos. Mas uma coisa é um streaming que investe para produzir e outra é um streaming que compra catálogo muito barato”, avançou.
Apesar de a entrada destas plataformas internacionais em Portugal ter trazido uma inflação de produtos audiovisuais ao mercado e da clara dificuldade das produtoras portuguesas em competir com estes atores, é inegável que tenha aberto as portas para a divulgação dos autores portugueses no mundo. “Todo esse movimento leva a uma melhoria no valor de mercado de cada um dos envolvidos e promove um aumento das fontes de financiamento”, diz João Matos.
A estrear ainda este ano, uma série sobre o Tony Carreira da autoria de Miguel Simal irá da TVI para a Prime. O diretor da APAD considera que “a realidade da ficção portuguesa ainda é novela ou os três canais. A Netflix não compra um produto que não venha já agarrado a um [deles] sendo que a TVI está a tentar lançar-se nas séries deixando os outros canais em pânico porque são os únicos que têm um financiamento próprio e se forem ao ICA e passarem, conseguem ter orçamento que os outros não conseguem competir. Ainda não temos uma lei que nos proteja enquanto audiovisual e que obrigue os serviços de streaming a comprar x séries por ano na nossa língua. Quando isso for uma realidade, talvez torne o streaming em algo mais sério mas, neste momento, a vida de guionista em Portugal resume-se à altura do concurso de consulta de conteúdos da RTP, ao concurso do ICA de apoio à escrita ou ao desenvolvimento de séries: tens a sorte de ter algum currículo e vai nalgum pacote. Raramente tem a ver com a melhor história, tem a ver com sorte, o júri engraçar-se contigo ou não, estares numa produtora reconhecida e já teres também algum currículo”, remata.
Esclarece ainda: “Acho que ainda estamos na fase embrionária de todo este ecossistema”, diz António Ferreira. Para ele, as salas de cinema vivem um momento difícil mas a experiência de lá estar “é única e insubstituível, pois é uma experiência coletiva, ao contrário de assistirmos um filme em casa, mesmo com as melhores condições de som e imagem. Se calhar o filme que deseje sobreviver em sala deverá proporcionar uma experiência única, tanto estética como narrativa, algo diferenciado e que só plenamente usufruis em sala.”
Em 2021, foi aprovada a Diretiva dos Serviços de Comunicação e Audiovisual, a chamada “diretiva Netflix” que previa, entre outras decisões, o pagamento anual de 1% sobre os proveitos das empresas de streaming com a obrigação de reverter esta soma para receitas próprias do ICA e a obrigatoriedade de investir no cinema e no audiovisual em Portugal. Ainda assim, segundo António Ferreira “menos de 15% dos filmes produzidos [em 2022] tinham recursos financeiros das plataformas. Tenhamos também noção que as plataformas têm um controlo artístico enorme sobre os conteúdos, castrando quantas vezes a liberdade artística que resulta em conteúdos genéricos e formatados. Acredito que todo este ecossistema ainda vai sofrer muitas mutações.”
Sobre o uso da IA, ainda existe algum ceticismo. André acredita que “Portugal não é um mercado em que a IA vai ganhar muito em nos substituir” enquanto Helena Amaral tem “expetativa de que o espírito humano seja incapturável”.
Por sua vez, João Matos crê que “a IA é uma ferramenta excelente para materializar rapidamente aquilo que teria custos muito altos.” Mas segundo ele, há limites: a IA pode ajudar a escrever partes de uma história com muitos clichés e argumentos sem rasgos, mas sem qualquer tipo de originalidade. “Há muito tempo os produtores andam à procura de certezas e de saber se uma determinada história terá sucesso. Formalmente, é possível perceber se a estrutura está bem feita. Duvido é que isso controle as pessoas que irão assistir o filme”, afirmou.
Miguel Simal une a voz do associativismo com a experiência e quando foi questionado sobre o papel da APAD na promoção do lugar do argumentista no mercado, articulou as dificuldades que a Associação sofre no meio em que se insere: “Não somos nem uma guilda nem um sindicato e isso tira-nos força. Temos alguma voz no ICA que durante muito tempo esteve desaparecida. Temos de ser levados a sério e para tal precisamos de corresponder ao que a indústria pede e por isso tenho tentado fazer mais workshops que nos ajudem a profissionalizar. Ao mesmo tempo, há todo um processo de sensibilização. Tenho falado com diversos players para explicar a nossa posição. Acho que não levam a sério os guionistas porque há pouco trabalho e ainda nos pomos na posição ‘que sorte que me vieram bater à porta.’ Acho que mendigamos muito e não usamos a nossa força. Sem história, não há produto, não há nada.
Refere ainda que, de uma forma generalizada, “existe a ideia de que a IA é um ser humano robô, mas não é. Trata-se um ultramotor de busca que vai roubar vários textos a várias pessoas. Achar que podes contar histórias humanas que não são escritas por seres humanos é obsceno. O que escrevemos é em grande parte a forma como vemos o mundo.”
Com quase 25 de carreira enquanto argumentista, Miguel Simal acredita que a IA “podia ser a melhor amiga do guionista e do realizador mas, se calhar [com o tempo], vai ser reduzido o número de guionistas por equipas de telenovela, ao invés de sete, ter quatro ou cinco”. Atualmente, observa, há produtoras a fazerem isto por considerarem que um computador pode fazer o trabalho de um guionista. Isto em parte porque, segundo ele, ainda se tem a ideia do produtor e do realizador de que o argumentista é só um datilógrafo.
E que solução há para isto? “A volta a dar é batendo o pé, estarmos mais unidos. Por causa da lei da concorrência não é possível criarmos tabela de preço mas alguns valores são praticados. Há muitos que aceitam por menos pelo receio de darem o trabalho a outra pessoa. Há o problema da desregulação, de gerar currículo e depois ainda há produtoras que pedem para fazer projetos de graça. Sem contar com situações onde pegam no seu trabalho, reescrevem e puxam a titularidade para si. Termos uma APAD mais forte legalmente dá umas costas mais largas aos associados. Mas no final do dia, é tudo promíscuo porque o meio é muito pequeno e desunido”, remata Miguel Simal.
AS MARCAS, O MECENATO E POSSÍVEIS SOLUÇÕES
João Matos é professor no IADE, argumentista há 22 anos e CEO da Stunning Fields, onde também é produtor. Conta com 35 projetos realizados e dois em pós-produção: a 6ª. temporada de “O Clube”, série erótica que, além de estar disponível na Opto, foi igualmente adquirida pela gigante brasileira Globoplay. “Homens d´Honra”, uma série da RTP histórico-ficcionada sobre o entrecruzar da vida de Álvaro Cunhal e Mário Soares até se tornarem adversários políticos, também é de sua autoria e conta com estreia prevista para este outono.
Em Portugal, o mais frequente é começar na carreira de argumentista pelas telenovelas, um negócio que movimenta milhões por ano. De acordo com João Matos, “o papel do argumentista é encontrar a história num briefing, numa ideia ou numa inspiração vinda de uma notícia, de um quadro ou até de uma conversa”. A partir daí desenha-se a história e o plot que vai gerar todo o potencial narrativo. É também o argumentista que escreve a chamada “bíblia” que contém, entre outros elementos, a sinopse, o perfil das personagens e o piloto.
Mas uma história precisa de quem a compre para ver a luz do dia, nesse sentido, quando se trabalha para as emissoras é preciso contar com a intervenção do marketing. Afinal, ainda são os anunciantes que sustentam projetos audiovisuais como as telenovelas, onde se sabe que a introdução de marcas para patrocínio é um dado adquirido. João diz ainda que “tenta-se que essa variável se introduza bem na história porque se não for bem feito vai prejudicar ambas as partes. Por exemplo, na [novela] “Senhora do Mar” houve uma marca que entrou com muita força e que era preferível ser mostrada ao longo da trama porque faria com que a marca fosse bem tratada, faz parte da história e dos objetivos dos personagens; por outro lado, sempre que esse personagem ou produto aparece, mesmo sem ser soft sponsoring, o público em casa associa aquela marca, o que significa um win-win para todos. Isso aplica-se também aos décors desde que seja uma mais-valia: por exemplo, se uma história tem uma farmácia, é bom ter o patrocínio que seja, por exemplo, a associação de farmácias, o que permite que aquele sítio tenha os medicamentos reais e não a fingir. E o mesmo se aplica a um café ou lavandaria.”
É nestes momentos em que o argumentista e o marketeer devem negociar a melhor forma da sua marca se envolver com a história. Sendo professor de Storytelling no IADE, João observa que esta é uma ferramenta transversal a todas as áreas, desde o design à fotografia, o que impacta na forma como uma marca pode se interessar em investir ou não num projeto. Ele relembra que “entre 2002 e 2004, os “Morangos com Açúcar” faziam muito sucesso. Veio para cumprir um slot de horário e teve um bom débito de audiência para vender publicidade nos intervalos”, revelou. “Os Morangos” – como a série ainda hoje é carinhosamente chamada – introduziu no seu jovem público-alvo a necessidade, por exemplo, de se pedirem faturas com número de contribuinte, campanhas de segurança no trabalho e nas relações sexuais.
Quando marcas e autores estão unidos, o soft sponsoring pode fazer a diferença e gerar um retorno até maior do que o esperado. O importante destas parcerias é trazer uma verdade à história que leva o público a reconhecer e a se engajar na narrativa uma vez que o nosso olhar está treinado e quando são usados adereços apenas para disfarçar a presença das marcas cria-se, logo, uma certa desconfiança porque sempre que for revelado que o que se está a ver não é verdade estão a estragar a história.
Entretanto, às vezes, também é preciso olhar para a história e saber como se pode ir ter com a empresa para se propor uma parceria. Foi o caso entre o Diário de Notícias e “Vento Norte”, uma série de época exibida na RTP. João Matos, o autor, conta que esta “seria [uma forma de] mostrar que o jornal já estava presente em momentos importantes da história. Ainda que esta função [de buscar parcerias] seja do produtor, é igualmente importante como forma de ajudar na construção financeira do projeto.”
Miguel Simal também vê o mecenato como uma alternativa para apoiar o audiovisual. E acha que deveríamos liberalizar mais o mercado. Os três canais, apesar de poderem ir a concurso e dizerem qual série querem apoiar, “deviam dar dinheiro ao ICA e não ter tanto voto na matéria sobre o que vai ou não ser produzido. Como temos pouco dinheiro andamos aqui em lutas sobre o que dá ou não para ser feito.” O financiamento é curto mas há alternativas como, por exemplo, o que a RTP está a fazer agora com as coproduções apesar de ter o senão de se ter menos histórias portuguesas passadas em Portugal: “Já temos um certo nível de sofisticação mas ainda não temos parceiros que queiram trazer dinheiro para mesa e temos de ir para mercados periféricos: não conseguimos ir à Madrid, vamos à Galiza; não conseguimos ir à Inglaterra, vamos à Irlanda e à Suécia”.
CRIATIVIDADE, ACIMA DE TUDO
O mercado é pequeno, a concorrência grande. A carreira é incerta, mas a satisfação garantida. A abertura de novos cursos, técnicos ou académicos no estudo do guionismo deu largas a que efetivamente qualquer pessoa de qualquer área tenha a chance de mostrar a sua capacidade de contar uma história. O entretenimento é o caminho mais visível mas o ‘brand storytelling‘ é também uma das vias a ser percorrida, sobretudo pela possibilidade direta de se juntar o patrocínio de uma marca. Há que notar que as histórias de um país do sul da Europa com as diversas e cinematográficas locações como é Portugal somado com o baixo custo de produção face a outros mercados já plenamente estabelecidos, atraem a atenção de quem busca originalidade, particularidade, mas, sobretudo, criatividade. Quem o confirma é João Matos: “Se há algo a dizer a alguém que está a começar na área do argumento ou do audiovisual é ter boas ideias, ter ideias originais e tentar perceber se ela se adequa à realidade, pensar local para ser global, histórias que tocam, que são verdadeiras. Se o que está a dar agora é true crime, pode haver a hipótese de eu estar a trabalhar no que vem a seguir. Não desprezem a arma da criatividade.” E acrescenta que “se a vontade é ter um emprego das 9 às 5, 14 ordenados e 25 dias de férias se calhar é melhor primeiro pensar nesse emprego e depois ser artista nas horas vagas.”
Para Helena, uma das formas de todos serem incluídos seria “as grandes produtoras ter pessoas residentes mas que no espaço de dois anos as pessoas teriam de fazer um certo número de horas de televisão e receber um fee mensal.”
Chris McQuarrie disse uma vez em Londres algo que Miguel Simal garante transmitir aos seus alunos: “não tenha apenas ‘a história da sua vida’ para contar.” O direcionamento que encontrou e que tem tido sucesso foi, antes, “como posso ser útil para a indústria” e aí, sim, acrescentar as histórias de vida mas a serviço de um produto”. Para ele, há uma indústria que precisa de produzir conteúdo, que pode ser egoísta na sua abertura a ideias originais mas, uma vez que lá se chegue, pode-se ser subversivo. Até lá, “é preciso seguir as regras do sistema e criar o núcleo cómico com o avozinho que foge do lar…”
Depois de estudar representação e de ter um emprego numa loja, André percebeu que não queria ser mensageiro, mas mensagem: “Essa mensagem é ter voz, poder dizer qualquer coisa sobre o mundo em que vivemos e que, apesar da tareia, das incertezas, continua a valer a pena. É uma paixão.” E remata: “A criatividade é uma doença que se cura a escrever. Acho que nos devemos considerar artesões e logo os outros dirão se somos artistas ou não.”