Reportagem. Um livro, é um livro é um livro

por Lís Barros,    20 Março, 2025
Reportagem. Um livro, é um livro é um livro
Da esquerda para a direita: Mário Guerra (Changuito), Lorena Travassos, Fernanda Teodoro, Cristina Ovídio, Fernando Ramalho e Ana Coelho
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Histórias de livrarias em Lisboa que vendem mundos.

A ilusão do pato-coelho, publicada em 1892 na revista Fliegende Blätter (Folhas Soltas), tornou-se um dos ícones da psicologia da perceção. O que se vê primeiro, um pato ou um coelho? Os estudos sugerem que a resposta pode dizer algo sobre a forma como pensamos: quem identifica apenas um dos animais tende a interpretar o mundo de maneira mais linear; quem enxerga os dois simultaneamente demonstra maior flexibilidade cognitiva, transita entre interpretações sem esforço.

Talvez seja assim com as livrarias. A designação “independente” sugere uma oposição, como se existisse um eixo rígido onde de um lado estão as pequenas livrarias e, do outro, as grandes redes. Mas o que define, afinal, uma livraria? Será apenas a ausência de vínculos com os principais grupos editoriais, ou há algo mais essencial, menos visível?

Nomear uma livraria como “independente” pressupõe que as restantes sejam apenas “livrarias”, como se existissem dentro de uma hierarquia predefinida. O mesmo acontece com a ilusão do pato-coelho: parece exigir uma escolha, como se fosse impossível reconhecer que ambos os animais estão ali ao mesmo tempo. Mas uma livraria é uma livraria, assim como a imagem é um pato e um coelho — ela não precisa de ser definida apenas em função daquilo que não é.

A necessidade humana de categorizar em oposições claras — independente ou corporativa, pequeno ou grande, pato ou coelho — pode limitar a nossa perceção daquilo que realmente importa. O essencial não está nas etiquetas, mas na forma como os espaços vivem e respiram dentro das cidades.

Foi esse olhar que nos levou a percorrer Lisboa e a sentar-nos à mesa com seis livreiros, ouvir relatos de resistência e celebração, de encontros felizes e lutas diárias. O que os move? Que futuro veem para os livros, num país onde, num só ano, 61% dos portugueses não leram um único título? Como é possível que na terra de Camões, Pessoa, Pessanha, Eça, Sophia, Cesariny e Adília — a lista poderia continuar — o nível de literacia seja o mais baixo da OCDE?

Mais do que um conceito, o que se procurou aqui foi um retrato: seis livrarias que se mantêm contra a corrente. Contra a lógica dos algoritmos, que decidem o que é visível e o que se perde no ruído das plataformas digitais. Contra as grandes cadeias livreiras, onde o livro é apenas mais um produto e os livreiros meros gestores de prateleiras. Contra a ausência total de apoio e incentivo do Estado.

A seguir, seis histórias de livrarias que são mais do que negócios: lugares vivos, sustentados por convicções, pelo ofício humano, pela crença num objeto que atravessou séculos sem perder a sua força — o livro.

Greta Livraria

Lorena Travassos chegou cá há 12 anos. Brasileira, paraíbana, olhar firme, voz que não se desvia. Vinha com a ideia de uma livraria na cabeça, ainda dos tempos da faculdade de Jornalismo. Mas entre a publicidade e o trabalho numa editora, o projeto foi ficando para depois. Depois virou doutoramento. Depois virou pandemia. E foi então, quando o mundo parou, que a ideia regressou e se impôs. O desejo, encostado num canto da prateleira da vida, exigiu ser retirado do esquecimento.

Lorena Travassos / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Naqueles dias de suspensão, Lorena estudava sobre questões de género e raça. Viagens anteriores a Barcelona, onde as livrarias feministas ocupavam o seu lugar no espaço urbano, imprimiram a sua presença na vontade daquela ideia que queria ganhar vida. E se ali existiam, por que aqui não? A Greta nasceu dessa ausência. E a Greta existiria. Mas existir, em Portugal, para um projeto como esse, é sempre um ato de insistência.

O nome, logo no início, tornou-se um problema. Ao tentar o registo, veio a surpresa: Greta, palavra que também quer dizer vulva, foi barrada. «É um nome muito estranho em Portugal», disseram. Mas se o nome incomodava, então ficava. E ficava com mais força. Se era para ser, seria GRReta. Um grito. Um rasgo no silêncio.

Interior da Greta Livraria / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Começou online. Como quem testa o chão antes de pisar. E viu que podia mais. Mas, não estivéssemos em Lisboa, o maior obstáculo não seria o medo de arriscar, mas a renda. A cidade já não pertence aos que a fazem viver. «A renda simplesmente não é acessível, especialmente se fizermos um paralelismo com o salário mínimo. Não conseguia encontrar nenhum local que pudesse pagar apenas com a venda dos livros.» Ainda assim, o espaço na Rua Palmira 66C apareceu como uma fresta. E foi por ela que Lorena entrou. Desde 2023, é ali que a Greta se impõe.

O preço do espaço físico não é o único que se paga. Numa freguesia mesclada de tantas culturas, a política também pesa. Sobreviver é uma negociação constante. Para manter a Greta viva, Lorena segura-se naquilo que sabe: a literatura como ferramenta de transformação. Nos 30m² da livraria, aplica o que aprendeu no doutoramento em Ciências da Comunicação, e o que vive como professora de Cultura Visual e Fotografia.

«A leitura de livros de mulheres deve fazer parte da educação, mais do que ser uma tarefa da livraria. Se quando o Estado propõe leituras obrigatórias só existem duas mulheres no meio de oito homens, o acesso a essas autoras torna-se mais difícil.» Mas não basta incluir mulheres nas listas escolares. É preciso pensar também no que se lê. Recentemente, Monica Baldaque, filha de Agustina Bessa-Luís, declarou que era “terrível que A Sibila fosse de leitura obrigatória”. Para Lorena, não basta impor livros: «livrarias e Estado devem trabalhar em conjunto» para que a leitura faça sentido para quem lê.

Lorena Travassos / Fotografia de Rui André Soares – CCA

A Greta não é só livraria, é espaço de encontro. A programação cultural acontece em parceria com editoras e sempre em torno dos livros. O clube de leitura, agora com convidadas especialistas, expande o debate para além das páginas. «O que acontece no livro acaba por trazer à tona outros problemas» que talvez não fossem discutidos de outra forma. E a Feira do Livro de Lisboa? «2500€ pelo aluguer de um estaminé, sem a possibilidade de vender livros das editoras que ali estão presentes. Não é viável.» 

Porque quem vende livros não o faz para enriquecer. Quem vende livros, vende ideias. E precisa de fé – não a religiosa, mas a fé no que se constrói com palavras. «Espera-se que as pessoas apostem nas livrarias de bairro, independentes, e não na Amazon.» A Greta já está nesse caminho. Mais do que vender, já publica. Lançou livros com o seu próprio selo editorial. Porque existir é isso: ocupar espaço. E resistir.

Tigre de Papel

O nome poderia carregar o peso da metáfora maoísta, mas não é isso que define a livraria. O tigre de papel, aqui, é mais o que parece do que realmente o é. O nome ficou porque o grafismo falou mais alto que a política — e, no fim, talvez não haja tanta diferença assim. A cultura também tem esse ar de tigre de papel: «pode parecer feroz, mas, na prática, muitas vezes acomoda-se ao que já está posto.», conta Fernando Ramalho, livreiro da Tigre de Papel. As livrarias, entre tantas outras coisas, são parte desse jogo.

Fernando Ramalho, livreiro da Tigre de Papel / Fotografia de Rui André Soares – CCA

A Tigre de Papel instalou-se na Rua de Arroios 25, há quase dez anos. A estratégia era construir um modelo de negócio que não dependesse apenas da literatura — uma decisão pragmática, mas que também revela algo sobre o estado das livrarias. O ano divide-se em duas partes: entre julho e setembro, os manuais escolares sustentam o espaço. Durante três meses, são os vizinhos que entram pela porta, pais e filhos de escolas do bairro. Depois, a livraria muda de público e de função. Os eventos começam a tomar conta e o podcast alimenta-se das conversas que ali acontecem. Os livros novos misturam-se com os usados porque um livro não se esgota na compra.

Fernando conhece bem o jogo e trouxe da Tio Papel a lógica de sobrevivência: sustentar-se nos meses de pico para garantir que, no resto do ano, a livraria possa ser mais do que uma loja: também um lugar de encontro, de onde surgem ideias que se expandem para além das paredes.

Mas o rótulo de livraria independente não o convence. «Essa classificação não me seduz muito porque diz pouco sobre a livraria. Independente no quê? No funcionamento económico-burocrático, sim.» Mas a independência real estaria no pensamento, na seleção de livros, na forma de ocupar o espaço. E nisso, muitas livrarias independentes terminam por mimetizar as grandes redes, reduzindo-se à escala, mas não à lógica. Vendem as mesmas novidades, os mesmos best-sellers. O que muda, então?

Vitrina da Tigre de Papel / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Fernando acredita que a luta deveria ser outra. Em vez de tentar competir com os grandes grupos – uma batalha perdida desde o início —, o desafio seria subtrair-se a essa concorrência desigual e criar um espaço que não precisasse ser medido pelo mesmo critério. «As pessoas que fazem a livraria são as que constroem o acervo.» Escolher o que vender, e não simplesmente seguir o fluxo do mercado. Isso também é uma forma de resistência.

Está ali desde o início. «Já é parte da mobília». Editor, tradutor, leitor — e curador do que se coloca nas prateleiras e das conversas que se desenrolam ali dentro. Mas a maior ameaça não vem do mercado, vem do contrato de aluguer. A renda pesa sobre a livraria como uma lâmina suspensa. O contrato termina este ano, e ainda não se sabe qual será o impacto.

A relação com a Junta de Freguesia é burocrática. A livraria paga taxa para ter um painel luminoso na fachada. Já participou na Festa do Livro Independente da Freguesia de Arroios, mas afastou-se ao perceber que o evento «servia mais à promoção política do que aos livros.» A livraria não quer ser palanque, deixando assim claro o que pensa sobre o estado das coisas.

Desde o início, a ideia era conceptual: livros, eventos, podcast. Tudo interligado. Não porque a livraria fosse um lugar especial, antes porque os livros podiam-no ser. Mas, para isso, era preciso que quem trabalha com eles os mantivesse vivos. E isso significa juntar leitores.

Fernando Ramalho, livreiro da Tigre de Papel / Fotografia de Rui André Soares – CCA

«Diz-se, com insistência, que se lê pouco. Estudos apontam para essa direção, números confirmam. Mas houve alguma época em que se leu muito? O debate gira sempre no quantitativo, e por isso se mantém raso. Mede-se a venda de livros, mas não o que se lê, nem por que se lê.» Como se a literatura fosse um fenómeno a ser capturado em estatísticas e não uma experiência.

«Esse reducionismo leva a outra distorção: o livro como entretenimento. No ano passado, uma grande editora distribuiu livros na porta do metro. O gesto era bonito, mas o discurso que o acompanhava era revelador: leia para tornar a sua viagem até ao trabalho mais agradável. Como se o papel da leitura fosse apenas acalmar.», sublinha Fernando Ramalho.

Não que o entretenimento não importe. Mas e a inquietação? E a perturbação? E o desconforto que desloca? O que acontece quando se reduz a leitura a um passatempo? Essa dimensão crítica da literatura quase sempre é ignorada. Em vez disso, discute-se apenas quantos livros são vendidos — como se isso dissesse algo sobre o impacto da leitura. Como se a leitura se esgotasse no ato de fechar um livro.

Um livro lido não morre quando suas páginas se encerram. Ele continua vivo, a ressoar no mundo. O que se perde quando nos esquecemos disso?

Poesia Incompleta

«Pode fotografar tudo, menos a secretária. A minha mãe, [a atriz Maria do Céu Guerra] quando cá vem, diz desalentada “Oh, Changui… Tu és tão organizado, uma pessoa olha para as prateleiras… Mas a tua secretária…”.» Changuito, ou Mário Guerra, encolhe os ombros. Entre o cigarro e o copo de cerveja, o espaço que criou na Rua de S. Ciro 26 é uma extensão da sua cabeça — caótica, apaixonada, indomável.

Mário Guerra (Changuito) / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Diz que não liga às aparências, apesar da autocrítica com o seu «casaco de quem parece ter desistido do sexo» porque entre os pais, tio, avó, irmã [a atriz Rita Lello] cresceu no meio do amor que lhe deu «a fibra musculada com a qual mantém os seus princípios». E na arte, «um truque baixo da sedução entre os pares. É só isso». É tudo isso. Nunca quis ser admirado pela inteligência: «Eu queria era ser o Montgomery Clift, o Paul Newman, o Caetano nos anos 90.» Acabou entre livros, poesia e conversas que se transformam em noites longas. «A vida é um workshop de perdas.» Mas na perda, abre-se espaço para outra coisa. «Essa coisa que é linda, ainda», como dizia Pessoa. Cada frase, um verso.

A livraria nasceu porque não havia outra. Mas a Poesia Incompleta não é um manifesto. É uma insistência. Não há lucro, só a dignidade de seguir. «Uma forma de ficar mais pobre com elegância. A poesia é um negócio tão mau que só perde em lucro para o teatro.» Espaço construído sobre uma única certeza: «Que outra coisa iria eu fazer da vida? Escrever publicidade? Convencer uma dona de casa de que terá melhores orgasmos se comprar Fairy?» Tem respeito pelos copywriters, «grandes poetas o foram.» Mas não é para ele.

A livraria é uma materialização dos princípios e, de certa forma, da sua história de vida. O pai, cenógrafo e figurinista. A mãe, atriz e intelectual, por anos a única diretora de uma companhia de teatro em Portugal. A avó [Maria Carlota Cordeiro da Silva Pereira Álvares da Guerra], uma das primeiras jornalistas portuguesas, dirigiu a revista mais vendida do país, na altura, a Crónica Feminina.

Interior da Poesia Incompleta / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Changuito também tentou a sorte no Brasil. Levou uma tonelada de livros para o Rio de Janeiro, mas o negócio não vingou. «Os cariocas são mestres da diplomacia: “que bom que você está aqui! Nossa…poesia é tudo o que o Rio precisava!…” uma pessoa fica lisonjeada, e fica-se por aí.» «O Rio é ótimo para ricos. Se for muito jovem e rico, velho e rico, ou meia-idade e rico, funciona. Caso contrário, é um pesadelo. O Brasil não é um bom lugar para pobres. Talvez por isso os cultive tão bem.»

A poesia, porém, não é pior no Rio do que em Sevilha ou Torino. A questão é outra: «Há mais de 80 milhões de restaurantes no mundo. Da última vez que contei, havia nove livrarias de poesia.» A poesia não cabe numa folha de Excel. «Não resolve nada. E por isso é essencial. Para o mundo do ‘coaching’, tudo tem de ter um resultado prático.» A poesia, não. É um intervalo. Um território onde a urgência não manda.

A Poesia Incompleta vive de «carolice, paixão e estupidez.» A realidade é menos romântica do que parece. O dia a dia envolve encomendas, faturas, limpar o pó das prateleiras, publicar posts nas redes sociais. «As pessoas acham que ter uma livraria é um emprego de sonho, um dolce far niente indulgente.» Não é. «Ontem veio uma senhora pedir emprego para limpar. Quando lhe disse que era eu quem fazia as limpezas, foi-se embora com ar mais digno.»

Interior da Livraria Poesia Incompleta / Fotografia de Rui André Soares – CCA

As livrarias sobrevivem mal. Os grandes grupos têm vantagens que as livrarias de bairro nunca terão. «O universo dos livros é muito insano. Da última vez que vi os números — não os livros técnicos — havia 40 novidades por dia, 1200 livros por mês. As livrarias grandes, pagam em geral a dois meses. Significa que elas têm consignadas — ou como elas dizem, fatura com direito a devolução — 2400 títulos novos, grátis a circular.» Os distribuidores impõem preços, as novidades duram duas semanas, depois viram papel reciclado: «Pouco tempo depois — um, dois anos — os livros são mandados para abate, para fazer pasta de papel, 0,20€ por quilo. Ou seja, é um mercado que já tem a obsolescência programada. Mas um livro não é um frigorífico. Muitas [livrarias] expõem os livros por pouco tempo numa sede urinária das novidades. É outra das subsecções da divulgação que faço aqui: se não leste é novo.»

Desperdício é outro hábito que Changuito lamenta observar através da falta de vontade e literacia dos decisores políticos. «Com tanta internacionalização e desejo de vender Portugal como uma marca, deveríamos estar centrados no que temos de melhor desde sempre: poesia. Desde os galaico-portugueses, temos sonetistas tão bons como os melhores do mundo, em prosa, rimados; extraordinários surrealistas, extraordinários simbolistas, tivemos um rei que escrevia poemas — D. Dinis era um poetaço! Não tendo Portugal grandes dramaturgos, pintores, filósofos, por que não existe essa valorização internacional? Se Herberto Helder tivesse nascido num país de língua inglesa, teria 25 prémios Nobel.” A literatura portuguesa continua invisível.» Não falta talento, falta visão. Na educação escolar, «o Ministério da Cultura deveria estar ligado ao da Educação. Mas a escola ensina poesia como se fosse matemática, uma espécie de ditadura da lógica. Lembro-me de uma professora de português, a partir as sílabas do Cesário Verde»:

“Eu ho-je es-tou cru-el, fre-né-ti-co, e-xi-gen-te; / Nem pos-so to-le-rar os li-vros mais bi-zar-ros.  In-crí-vel! Já fu-mei três ma-ços de ci-gar-ros” [Contrariedades]

«Passei a adolescência a fugir de tanta coisa. A única ideia que me ficou desse período era de que isto [a poesia como foi lida e ensinada] não podia ser o que era louvado pelas pessoas que eu gosto porque a minha mãe começou a dizer poesia em público aos 16 anos. “Muita gente tenta entender os meus quadros, dizia Picasso. Ninguém tenta entender uma árvore.”», refere ainda Changuito.

Mário Guerra (Changuito) / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Empresas e instituições falham ao não proporcionar através da poesia um maravilhamento semelhante ao que um requiem de Mozart provoca. «As pessoas dizem que não gostam de poesia, porque não conhecem. A Patrícia Portela trouxe aqui uma vez uma turma de finalistas de teatro, 17 miúdos e miúdas. Nenhum gostava de poesia. Estive com eles três horas a dizer poemas e ao final de cada um eles diziam “ah, disso eu gosto”. Comecei por um do Nicanor Parra onde ele diz que é preciso atirar a poesia para o chão, dar pontapés, murros na poesia, cuspir na poesia e depois veremos o que se faz com a poesia… e eles ficaram boquiabertos. A seguir, disse-lhes que iria ler um soneto sobre o tesão do Camões, eles riram-se.»:

Pede o desejo, Dama, que vos veja: / Não entende o que pede; está enganado. / E este amor tão fino e tão delgado, / Que quem o tem, não sabe o que deseja.” [Pede o desejo, Dama, que vos veja]

«Dos 17, 9 voltaram. Seguimos no facilitismo de vender pastel de nata e sardinha em lata, mesmo que sem demérito das iguarias. Eu sei que as pessoas seriam melhores se tivessem mais contato com a poesia. Mas como canta Caetano»:

Eu não espero pelo dia / Em que todos / Os homens concordem / Apenas sei de diversas / Harmonias bonitas / Possíveis sem juízo final» [Fora da Ordem, 1991].

Aos domingos, às 19h07, há leituras. Num destes serões, Changuito interpretou — tanto quanto leu — Mário-Henrique Leiria. Casa cheia. «É tudo sobre o poder e a violência, escrito antes de 73 e ainda é atual.» Quem volta, fá-lo por algo que não encontra noutro lugar e há quem faça 100 km para o momento.

O futuro? Incerto. «Uma das grandes injustiças de trabalhar com a cultura é a insegurança. Não sei se a Poesia Incompleta durará mais dois meses. Antes do meu salário — que não existe — tenho uma renda para pagar, as editoras, a água, luz, internet, impostos, contabilista…e isso já é uma girândola tão grande que, quando me despeço nos emails, escrevo “até à falência, cá estarei”. As pessoas pensam que é uma graça, mas é apenas ser tão impiedoso com o meu negócio como sou comigo. O neoliberalismo é isso: exaurindo os trabalhadores, ficam mais fáceis de manipular e com menos energia para se rebelarem, com menos tónus muscular para sequer ir a uma manifestação.»

Se fechar, vai servir copos. Mas, por enquanto, para a nossa sorte, lê Camilo Pessanha. E a poesia segue viva:

“Porque o melhor, enfim, / É não ouvir nem ver… / Passarem sobre mim / E nada me doer! / Sorrindo interiormente, / Co’as pálpebras cerradas, / Às águas da torrente / Já tão longe passadas. / Rixas, tumultos, lutas, / Não me fazerem dano…/  Alheio às vãs labutas, / Às estações do ano. / Passar o estio, o outono, / A poda, a cava, e a redra, / E eu dormindo um sono / Debaixo duma pedra. / Melhor até se o acaso / O leito me reserva / No prado extenso e raso / Apenas sob a erva / Que Abril copioso ensope… / E, esvelto, a intervalos / Fustigue-me o galope / De bandos de cavalos. / Ou no serrano mato, / A brigas tão propício, / Onde o viver ingrato / Dispõe ao sacrifício / Das vidas, mortes duras / Ruam pelas quebradas, / Com choques de armaduras / E tinidos de espadas… / Ou sob o piso, até, / Infame e vil da rua, / Onde a torva ralé / Irrompe, tumultua, / Se estorce, vocifera, / Selvagem nos conflitos, / Com ímpetos de fera / Nos olhos, saltos, gritos… / Roubos, assassinatos! / Horas jamais tranquilas, / Em brutos pugilatos / Fraturam-se as maxilas… / E eu sob a terra firme, / Compacta, recalcada, / Muito quietinho. / A rir-me / De não me doer nada.” [Porque o Melhor, Enfim]

Palavra de Viajante

Nasceu como quem parte sem mapa, guiada apenas pelo desejo de juntar dois mundos que pareciam feitos um para o outro: os livros e as viagens. Desde outubro de 2011, quando abriu as portas pela primeira vez, até a mudança para a Rua de S. Bento 34, em 2016, o percurso foi sendo traçado a cada página folheada por quem entrava sem destino certo e saía com bilhetes para terras desconhecidas.

Ana Coelho e a sua sócia Dulce Gomes nunca quiseram preencher uma falta, antes proporcionar um encontro. «Não nos motivou o querer falar do que não encontrávamos, mas antes partilhar, com possíveis leitores, o que encontrávamos e poderíamos oferecer como livraria de viagem. Em Espanha, em França, no Reino Unido, livrarias como esta existem em maior número.» Em Portugal, é a única.

Ana Coelho / Fotografia de Rui André Soares – CCA

A Palavra de Viajante não se contenta em vender guias, ficção ou relatos de viagem. É também porto de chegada para aqueles que viajam apenas pelo virar das páginas. Alguns nunca pisaram o chão que encontram nos livros, mas carregam no corpo o rastro das histórias que leram. A organização do espaço obedece à lógica do mundo: estantes organizadas por continentes e regiões, onde se pode atravessar o Médio Oriente ou encontrar um canto dedicado a Portugal. Os que chegam aqui estão prestes a partir. «Temos ainda secções específicas como viagens a pé, de bicicleta, na montanha.». Nem tudo cabe nas prateleiras: há livros que se recusam a fixar morada, e por isso transitam por múltiplos territórios dentro da livraria, ocupando o espaço dos nómadas.

O papel do livreiro aqui é o de um cartógrafo que conhece bem as estradas e as estrelas. «Queremos que a pessoa que entre fale connosco, porque torna a experiência mais interessante para quem procura um livro, e para nós, mais enriquecedora.» A livraria é também ponto de encontro. Os que vêm buscar histórias cruzam-se com os que as trazem. Alguns voltam de viagem e querem estendê-la com um livro. Outros leram um autor e, de tanto visitá-lo nas páginas, decidiram conhecer o país retratado. E quando regressam «muitas vezes trazem mais informação do que um guia.»

Interior da Palavra de Viajante / Fotografia de Rui André Soares – CCA

O estranho é que, num país de viajantes, uma livraria como esta tenha sido, por tanto tempo, um conceito difícil de compreender. «Em Portugal, não temos o hábito de ter livrarias específicas com exceção da infantojuvenil. No princípio, percebíamos que os portugueses tinham dificuldade em compreender o conceito temático da livraria.» O mercado não ajudava: «Do ponto de vista editorial português, não existe muita produção de guias ou relatos de viagens, o que implica muitas compras no estrangeiro e torna o negócio mais arriscado.» A Palavra de Viajante é uma ilha num oceano, mas não um lugar de solidão. Ao longo dos anos, tornou-se palco para eventos, exposições e encontros com autores ou leitores que voltaram para contar. «Não temos uma regularidade de eventos e esta é uma opção nossa. Fazemos em função do que nos apetece e daquilo que nos chega.»

Interior da Palavra de Viajante / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Ana acredita que «a livraria independente não precisa de ser dedicada a um tema em particular, visto haver livrarias assim que são generalistas.» Foi no seguimento desta ideia que a Palavra de Viajante e outras livrarias fundaram a Reli, Rede de Livrarias Independentes, num período em que a existência de cada uma delas foi colocada à prova. Durante a pandemia, livreiros de todo o país trocaram emails, reuniram-se em Óbidos e criaram um elo de resistência. “Conhecíamo-nos de feiras, contatos pessoais ou até de visitas às livrarias quando viajamos. No início, éramos 80 e de todo o país.

Classificada pelos seus pares como uma das livrarias mais bonitas da cidade, até quem não parte à aventura encontra lá um porto. «Há quem não viaje a não ser pelos livros.»

Livraria-bar Menina e Moça

Chove em Lisboa. É domingo, e a cidade parece encolher sob o frio, mas há um lugar onde a noite resiste. Um espaço pequeno, escondido no coração da baixa, e que, por algum mistério, se mantém vivo. Como se fosse um outro mundo dentro deste. A porta, escancarada, remete-nos ao The Spotted Cat Music Club, em New Orleans. Jazz ao alcance dos ouvidos. É a Menina e Moça, uma livraria-bar na Rua Nova do Carvalho 40-42, feita de livros, vinho e música. Um espaço que resiste numa baixa lisboeta cada vez mais anárquica.

Cristina Ovídio comanda a noite. Boina de maquinista, a mão firme sobre o volante invisível do que criou. A Menina e Moça existe desde 2017, tem oito anos, número que remete à eternidade. «O número 8 é o símbolo do infinito. Esperamos continuar a cumprir com este desígnio», diz Cristina. A livraria é um tributo a Bernardim Ribeiro e ao desejo de evasão que pulsa nos primeiros versos da novela pastoril: “Menina e moça, me levaram de casa de meu pae para longes terras.” Sair. Conhecer o outro. Permitir-se o deslocamento. É disso que falam os livros. É disso que se trata neste espaço.

Cristina Ovídio / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Nas paredes, prateleiras carregadas de literatura lusófona. Alguns títulos traduzidos até em japonês. Uma carta de Alexandre O’Neill para o físico, divulgador da ciência e bibliófilo António Manuel Baptista — pai de Cristina — repousa ao lado de um teto que parece roubado de um sonho renascentista e redesenhado por João Fazenda. Até a casa de banho é um relicário: jornais, versos, fragmentos de tempo colados nas paredes pela família.

Cristina sabe que tudo é movimento. Foi professora, editora, tradutora. Sempre teve a obsessão de que os livros não poderiam ser apenas matéria escolar, mas de vida. «As alunas precisavam de literatura que lhes fosse urgente.» Literatura que as atravessasse, que servisse como espelho ou como janela. Ensinar foi uma luta: a favor do cânone, a par com o programa curricular, contra o tempo. Mas ela persistiu. Criava debates, fazia gravações, pedia que as suas alunas encarnassem personagens, montava roteiros literários. E elas respondiam misturando Nat King Cole com Fernão Lopes para que entendessem que um grande cronista medieval podia ser um cineasta do seu tempo. A literatura nunca esteve fora da realidade. A boa literatura nunca saiu de moda.

A escola, porém, sufoca. A burocracia engole o desejo de ensinar. «Hoje exigem-se tantas tarefas burocráticas dos professores que sobra pouco tempo para pesquisa. É uma profissão que precisa de ser acarinhada, porque muitas vezes os alunos não encontram em casa o que vão buscar na escola.» O que é obrigação torna-se sinónimo de chatice. Mas os livros falam de temas que formam o pensamento crítico. «Precisamos de formar leitores que saibam ler, que saibam votar. Esse deveria ser um desígnio de qualquer país».

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Equilibrava as suas diversas atribuições com a criação dos filhos pequenos enquanto acalentava o desejo nunca adormecido. «Durante três anos, consegui conciliar o ensino em Sintra com as edições e dois bebés. Mas não sou nenhuma heroína. Há mães que fazem muito mais.». Quinze anos volvidos e o sonho de menina voltou a bater-lhe à porta através de um espaço chamado “A Velha Senhora”. Decidiu transformá-lo. Não era livreira, teve de aprender com a ajuda de várias pessoas. «A independência anda a par com a responsabilidade», atributo que parece alheio às autoridades locais. As oficinas de escrita e as horas do conto não resistiram ao ambiente que a rua cor-de-rosa se tornou. «Parece haver nalgumas pessoas um desejo incessante pelo barulho ensurdecedor, seja interior ou exterior.» A Câmara Municipal de Lisboa foi procurada por Cristina, mas nenhuma resposta veio. No meio disso, a livraria segue com o clube de leitura, o copo com o escritor, uma efervescente programação cultural e, claro, o jazz. «Este lugar foi feito com muito amor; quando o herdei, só havia baratas. Até a música, de certa forma, presta homenagem às matinés da minha juventude no Rock Rendez-Vous.»

Uma menina desobediente que não vende best-sellers, nem novidades empurradas pelas forças do mercado. Prefere os livros escolhidos a dedo, por Alexandre Esgaio, aqueles que sobrevivem ao tempo. Porque uma livraria precisa de uma identidade. Não pode ser só um balcão de vendas. O livreiro «dá o caráter da livraria, orienta possíveis leitores e não se limita a procurar no computador um título que, muitas vezes, nem conhece.» Até nisso a livraria é um refúgio. Mas não bastava.

Cristina Ovídio / Fotografia de Rui André Soares – CCA

E então como veio a música? No dia 16 de fevereiro, quando inaugurou a casa, um grupo de músicos apareceu com um pedido: podiam tocar jazz ali? Podiam. Tocaram. E ficaram. Até hoje, os domingos pertencem ao piano de João Ferreira e aos outros que se juntam. As noites seguem o compasso das melodias que sobem das teclas e se misturam às conversas. No fundo, a música sempre esteve ali. Porque ensinar sempre foi também ouvir. E os livros precisam de som para não virarem poeira. Porque, como ela diz, «o livro não se encerra com a sua leitura.» Abre uma porta, forma leitores e, se tivermos sorte, melhores seres humanos. 

Livraria da Travessa

1975, Rio de Janeiro. O Brasil sufocava sob a ditadura militar. Os censores tentavam mapear e conter cada palavra impressa e não só. Mas existiam fendas por onde a literatura se infiltrava, espaços onde os livros desafiavam o silêncio imposto. Numa sala de 25m², de seu nome Muro, em Ipanema, começava a germinar o que mais tarde seria a Livraria da Travessa. Ali, entre estantes improvisadas, um grupo de idealistas plantava um gesto de resistência: fomentar a cultura apesar do autoritarismo.

Fernanda Teodoro / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Cerca de 10 anos passados, com a redemocratização do Brasil, a livraria mudava-se para a Travessa do Ouvidor, maior, mais sólida, mas mantendo o olhar atento sobre a literatura brasileira e estrangeira, com uma inclinação especial para a portuguesa e a francesa. Arte e poesia continuaram a ser um dos seus alicerces. O tempo passou, outras portas se abriram, e, em maio de 2019, a Travessa aportou na Rua da Escola Politécnica 46, em Lisboa.

No Príncipe Real, a “livraria brasileira”, como é carinhosa e inevitavelmente tratada por todos, encontrou uma vizinhança que se complementa. «Uma fauna muito rica», como descreve Fernanda Teodoro, livreira e gerente da primeira filial internacional da Travessa. Outras livrarias de bairro estão ali perto, mas em vez de concorrência, há cumplicidade. A lei do preço fixo também ajuda uma vez que, o que cada uma oferece é diferente, porque, no fim das contas, «é o público quem faz a livraria.». Além disso, há um esforço em querer pertencer à cidade, «tanto que o nosso horário é alargado [10h00-22h00 todos os dias, 11h00-20h00 aos domingos]. Tivemos uma receção muito calorosa por parte do público português.»

Interior da Livraria da Travessa em Lisboa / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Entre os corredores, encontram-se todos os géneros, dos clássicos aos emergentes, numa seleção que desafia as grandes cadeias. Aqui, o comércio, apesar de necessário, é uma consequência saudável e natural. «Não sei se é um excesso de romantismo da minha parte, mas a livraria sempre esteve preocupada em ser sobretudo um espaço cultural. O atendimento, através dos nossos livreiros, e o acervo têm sido a nossa linha orientadora.»

Essa resistência a converter-se em apenas mais um espaço de consumo já vinha de longe. No Rio de Janeiro, a Travessa sobreviveu no meio de grandes centros comerciais, entre vizinhos que trocavam livros por produtos eletrónicos. «Sugeriram que nos modernizássemos, porque as nossas vizinhas estavam a vender gadgets. Mas não mudámos. A relação de proximidade que temos com as pessoas é insubstituível.» Essa escolha, de manter-se fiel a um certo ideal de livraria, é o que define a Travessa. «A importância do livreiro tem a ver com o aconselhamento e com a indicação. Muitas vezes, o cliente chega sem saber o que quer e com a orientação certa acaba por voltar. O livreiro é a ponte entre o leitor e os livros.» Sem falar que aqui encontram-se livros que de outra forma, só atravessando o Atlântico.

Apesar de trazer na bagagem mais de 50 anos de história, a Travessa teve de reaprender tudo em Portugal. «É difícil ter acesso a publicações de África e outras com direitos de autor limitados. Isto impacta muito o nosso negócio. A relação com as editoras é igualmente diferente. Consignações, descontos, prazos de pagamento, novidades…» O desafio não é pequeno. Ainda assim, nunca quiseram deixar de ser aquilo que está na sua génese: ser uma livraria de bairro. «O grupo de sócios é o mesmo, a forma de trabalhar ainda é um pouco analógica, ainda temos uma cara familiar.»

Fernanda Teodoro / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Apesar de crescer, de abrir filiais, a Travessa não faz parte de nenhum grande grupo económico. «A luta é diária. Vemo-nos como uma livraria independente.» E, no final das contas, é isso que a mantém viva. Porque uma livraria não sobrevive apenas de livros, mas das pessoas que nela habitam. «Recebemos emails de clientes a demonstrarem o seu apreço por nós, e isso é muito gratificante.»

A ideia de expandir para outras cidades europeias não está descartada, mas não há pressa. «Queremos crescer, expandir, ter mais contacto com o nosso público e continuar a ser um espaço de cultura e de muito amor. Há clientes que passam só para dizer bom dia.». E é isso que importa. Porque este não é um mero negócio. É uma casa onde se entra sem pressa. Onde há livros, mas também vinis, literatura portuguesa, brasileira, traduções de todo o mundo. Navegar é preciso. E ler, também é preciso.

Fotografia de Rui André Soares – CCA

Talvez seja isso que diferencia estes espaços: a capacidade de ver além do que é óbvio, de reconhecer múltiplas realidades ao mesmo tempo — como aqueles que, diante da ilusão do pato-coelho, percebem não apenas um ou outro, mas ambos. E, no entanto, uma livraria não sobrevive apenas por aquilo que a define no papel — se é independente ou parte de uma grande rede, se é comercial ou cultural, se é um espaço de venda ou encontro. O que realmente sustenta uma livraria é a visão daqueles que a frequentam e a constroem, leitores e livreiros que se recusam a aceitar uma definição única e rígida. O que os move não é uma dicotomia, mas uma convicção: a de que o livro é um «objeto transcendente», que não se limita a ser mercadoria ou símbolo, mas uma matéria viva, capaz de «lançar mundos no mundo.»

Mas a matéria viva precisa de solo fértil. E, em Portugal, esse solo parece cada vez mais árido. A falta de qualquer tipo de apoio do Estado, somada a uma política educacional errática e a desincentivos culturais constantes, leva a que as livrarias se vejam de braços dados unicamente com a sua comunidade próxima. Quer parecer que, apesar dos 50 anos do 25 de Abril, a censura aos livros e às livrarias mantém-se num modo “português suave”.

Não há subsídios nem incentivos fiscais, e tampouco um plano nacional que as inclua como parte essencial da vida cultura e escolar. Ainda assim, as livrarias resistem. Algumas há décadas, outras há poucos anos, mas todas sustentadas pelo que parece ser um pacto silencioso entre quem as mantém e quem as habita. Os proprietários e livreiros falam do ofício como se falassem de um território em disputa, mas um território feito de papel, tinta e encontros.

Nas grandes cadeias, os livros são mercadoria. Nestas livrarias, matéria de afeto e experiência. O espaço, muitas vezes pequeno, torna-se um ponto de convergência: ali, as prateleiras não estão apenas organizadas por secções, mas por escolhas que carregam um nome e uma intenção. Não há pressa, nem filas nos caixas, nem ecrãs a recomendar a próxima compra com base em algoritmos. Em vez disso, há conversas que começam sobre um título e se expandem para a vida. Mais que teimosia, manter as portas abertas não é por heroísmo, mas por convicção.

Nas livrarias de bairro, de rua, independentes ou não-tradicionais — os rótulos aqui não interessam — há sempre alguém como Lorena, Fernando, Ana, Mário, Cristina ou Fernanda. Pessoas que conhecem os livros que vendem e os leitores que os procuram. Pessoas que acreditam, contra as estatísticas e as projeções pessimistas, que um livro ainda pode transformar um dia, uma ideia, um mundo.

Nota do editor. Onde se lia: «Não resolve nada. E por isso é essencial. Para o mundo do ‘empowerment’, tudo tem de ter um resultado prático.» lê-se agora «Não resolve nada. E por isso é essencial. Para o mundo do ‘coaching’, tudo tem de ter um resultado prático.» . O texto foi editado às 10h15 do dia 22 de Março.

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