‘Roma’, de Alfonso Cuarón, afirma a memória e o feminino com muita classe
O trabalho de programação de um festival passa também pela forma como os filmes são apresentados. No caso de The Favourite, do grego Yorgos Lanthimos, e Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, torna-se claro que existiram razões para se verem em conjunto. Desde logo por serem dois registos fortíssimos que celebram o feminino. Mesmo sem terem de agitar a bandeira do MeToo. Mas também, já agora, por abordarem de uma forma bem diversa a diferença de classes: de um lado, duas mulheres oportunistas (interpretadas por Emma Stone e Rachel Weisz) procuram cair nas boas graças da rainha Anna, a monarca britânica que ocupava o trono naquele início do século XVIII; do outro, a relação particular entre uma mãe mexicana (Marina de Tavira) e a sua empregada Claro (Yalitza Aparicio). Em suma, dois belos filmes a confirmar o alto nível da selecção de filmes em concurso para o Leão de Ouro.
Em Roma, o mexicano Alfonso Cuarón parece fazer o contrário. Suspende o seu lado de cinema made in Hollywood (sente-se até uma piscadela de olho a Gravidade, aliás debutado aqui em Veneza), numa viagem ao seu próprio passado, às suas origens de classe média no México. Mas também das relações especiais que a sua mãe teve com uma serviçal e a quem ele dedica ao filme.
De resto, o filme começa com uma imagem belíssima, da água que é lançada sobre um soalho e que acaba por funcionar como um espelho. Interpretamos aqui como a forma como essa empregada limpava a fezes do cão, e reflectia a imagem, talvez a fazer-nos despertar a memória. De resto, é mesmo a memória o motivo mais forte deste filme rodado a preto e branco e com uma fotografia monumental, também do próprio Cuarón, naquele período entre 1970 e 1971.
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O próprio cineasta explicou na conferência de imprensa os três vectores donde partiu para a construção deste Roma. Desde logo, a personagem de Cleo, a ferramenta da memória e a fotografia a preto e branco. Esse foi o DNA do seu filme e que trabalhou com longos planos sequência para melhor trabalhar a memória. Algo que o próprio encarou como algo não subjectivo. “A memória pode ser subjectiva, mas as imagens são mais abstractas”, explicou mais, dizendo: “O que quis foi observar esses momentos de forma mais distante em que a câmara não se intrometesse com esses elementos.”
É assim que vamos seguindo o quotidiano desta família de classe média, sem qualquer interferência de sentido. Como se estivéssemos mais perto, testemunhando esse passado, essa memória. Até que a narrativa vai introduzindo elementos que nos vão perturbando de forma gradual, seja com o ambiente opressivo, as manifestações estudantis e até as formas com que Cleo se torna num elo cada vez mais forte naquela família. E quase em cinquenta tons de cinzento.
Resta acrescentar que Roma, no filme esse nome nunca vem à baila (será apenas Amor?), foi um dos filmes ‘quentes’ que chegou a ser considerado para Cannes, mas que acabou por ser afastado devido à controvérsia insanada do festival com os critérios de exibição com a Netflix. Questionado sobre essa opção, Cuarón deixou uma justificação aceitável: que só dessa forma o seu filme poderia ser visto por muita gente, ao contrário do que sucede com tanto cinema independente que acaba por se contentar com escassos dias de exibição em sala e depois desaparece. Por isso mesmo lançou o repto duplo à plateia cinéfila: “quantos de vós viram recentemente filmes do Bresson e do Ozu em sala? E quantos viram em formato digital?”. Uma resposta fácil para quem seguiu (ou segue) em Portugal os ciclos que contemplam diversos trabalhos destes cineastas. Se bem que o outro lado da resposta seja igualmente válido. E pertinente.Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt