Salvador Dalí e a viagem pela quarta dimensão
Salvador Dalí sempre foi um pintor com fundamentos vários e com uma mente que se diferenciava das demais pelo resultado que isso proporcionava nas suas telas e demais representações. No meio da ebulição de tantas ideias e correntes, surgem a ciência, a psicologia e, dentro desta, a psicanálise. Tomando Sigmund Freud e todos os seus postulados como premissas-chave da pintura surrealista, valorizou muito o sonho e toda a transcendência simbólica que este transporta em si.
Nesta tendência de ir além do materializado, o espanhol redigiu no seu Manifesto Anti-Matéria, em 1958, que desejava criar a iconografia do mundo interior e do mundo fantástico. Para o conseguir, confiou também na tutela indireta de Werner Heisenberg, um dos principais pioneiros da física quântica. Foi desta forma analítica e quase alquímica que Dalí ousou enfrentar os cânones dimensionais dos planos e das figuras. A obra que conseguiu captar este intento foi realizado quatro anos antes e designa-se de Crucifixion (Corpus Hypercubus) (1954).
O espanhol, como curioso pela ciência nuclear e pelo seu misticismo, redigiu um manifesto em 1951 de nome Manifesto Místico, no qual deixou patente a sua intenção de criar um misticismo nuclear que fundisse a matemática, a ciência, o catolicismo e a cultura catalã que reestabelecesse valores e práticas clássicas no campo das artes e que se redescobrisse na metafísica. Desta renovação surrealista de Dalí e como meio de dar fisionomia a este tão seu campo teórico, o pintor criou o supracitado trabalho.
Crucifixion (Corpus Hypercubus) (1954), de Salvador Dalí
Este quadro reproduz uma cruz levitada e com os padrões geométricos de um hipercubo de quatro dimensões, i.e. um tesserato, neste caso em forma de rede nas proporções do crucifixo. Esta figura alinha assim as diferentes configurações dimensionais e é um composto de 8 cubos desdobrados que visa apontar a transcendência da figura religiosa. Isto consuma-se no espaço envolvente e constituinte do crucifixo e do corpo, questionando e pondo à prova conceitos tanto da física mais tradicional como da mais desenvolvida. Interessa também ressalvar que a esposa do pintor, Gala, fez de modelo para a pose e formatura do pintado Jesus Cristo. A pose é a que se tornou comumente explorada e expressa em obras anteriores mas apresenta a particularidade de não ter unhas e a coroa de espinhos, para além de ter a cara totalmente voltada para fora do olho de quem observa a obra. Este detalhe, para além da feitura da cruz não ser de madeira, coloca a tónica na tal transcendência possibilitada pela invisibilidade, estando numa dimensão inacessível ao olho humano.
Foi este o legado deixado por Salvador Dalí no sentido de perspetivar e de alcançar a quarta dimensão, não só para futuros artistas mas também para visionários e virtuosos cientistas ligados à física e à astronomia. A representação do tesserato desdobrado a partir do crucifixo permite não só a configuração imagética daquilo que será a transdimensionalidade mas também a reivindicação de um fundamento sustentável para a religião e para a metafísica. Esta viagem empreendida por Dalí expõe também todo o seu apreço pelo engenho dos cientistas, dos quais admirava a possibilidade concedida por eles de ir mais além e de arrecadar também a imortalidade da alma. Uma realidade que, por mais surreal que aparente, se cruza de forma indiscutível com tudo aquilo que outros olhos e outras mentes visualizaram como independentes e imanentes. O espanhol foi assim um dos bem-sucedidos pelos caminhos paradisíacos mas invisíveis da quarta dimensão, promovendo a discussão teórica e a superação prática de todos os interessados por algo mais, algo além que deixou de estar aquém.