Sam The Kid esteve à vontade com a (sua) orquestra no Pavilhão Rosa Mota
Samuel Mira, o consagrado rapper português de Chelas, subiu ao Porto e ao Pavilhão Rosa Mota — agora Super Bock Arena — neste já outonal mês de outubro. A arena, com particularidades muito curiosas devidas à sua forma circular, que aumenta o seu espaço lateral, não encheu por completo (talvez por falta de divulgação do concerto) — nem assentos, nem plateia de pé — mas isso não fez com que Sam The Kid deixasse de tentar trazer Chelas àquele pequeno pedaço da cidade do Porto. As honras do palco foram feitas por DJ Cruzfader, um nome incontornável na produção do hip-hop português, que passou várias tonalidades do rap internacional, sem esquecer o que de tão bom se faz por cá. Aliás, melhor que ele para o reconhecer e para o remisturar não existe.
Depois da chegada da orquestra de cordas dirigida por Pedro Moreira e dos membros dos Orelha Negra — entre eles, as vozes de Amaura (vale a pena escutar o trabalho dela a solo, em especial o disco EmContraste, de 2019) e David Cruz, os baixos de Fred Ferreira e de Xico Rebelo, as teclas de João Gomes e a permanência de Cruzfader —, subiu ao palco o pai de Samuel, Napoleão Mira (ou Viriato Ventura), para recitar versos da sua autoria. Foi este o mote para o arranque de “Pratica(mente)”, que aqueceu com vivacidade o público portuense para a chegada do filho Samuel, que trouxe as preciosidades todas das suas caixas de sons, oscilando entre os históricos discos Sobre(tudo) e Pratica(mente).
Ouviu-se tudo aquilo que se ouviu, desde “O Recado” a “Não Percebes”, mas em especial os talismãs de Pratica(mente), que foram os que mais animaram o público. “A Partir de Agora”, assim como “Juventude (É Mentalidade)” — que contou com a ilustre presença de NBC —, “Retrospectiva de um Amor Profundo”, “16-12-95”, “Hereditário” e, claro, “Poetas de Karaoke” foram reconhecidas e ovacionadas. Tudo isto com uma orquestra que correspondeu ao que o rapper precisava, sem se sobrepor mas transmitindo uma aura diferente e elevada, algo que o rap nem sempre procura, mas que pode, perfeitamente, alcançar e consolidar.
Foi um concerto muito similar aos que Samuel desenvolveu e apresentou no ano de 2019 pelos Coliseus do Porto e de Lisboa, de igual modo com a presença da orquestra e dos Orelha Negra, embora sem tantos convidados. De igual modo, também o rapper de Gaia Mundo Segundo, um dos nomes maiores do rap a Norte, esteve presente durante todo o concerto, de forma mais ou menos expressiva. Para além de ter acompanhado “Poetas de Karaoke”, esteve com Sam nas músicas de autoria conjunta — “Gaia Chelas”, “Tu Não Sabes” e “Não Percebes”.
Delicioso foi, também, escutar as sonoridades desenhadas para o projeto dos Orelha Negra — “M.I.R.I.A.M.” e “Ready”, onde houve a presença de um dançarino de breakdance (ou b-boy) —, em que a presença da orquestra de cordas acrescentou ainda mais autenticidade e disciplina musical, embora sem perder a espontaneidade funky que a carateriza. O alinhamento seria fechado com “Sendo Assim”, uma das mais tocantes composições do rapper de Chelas e que faz todo o sentido encerrar as suas performances. Samuel saudou o Porto, reconhecendo-o como um público que enche as medidas e sentindo-se à vontade para ir além, sem olhar para as restrições das setlists.
Para quem faltou à experiência dos Coliseus que tanto sucesso granjeou — tanto que até alguns dos temas foram editados e publicados na conta oficial de Sam The Kid no YouTube (conferir acima) —, foi uma oportunidade para partilhar dessa convivência e dessa emoção que Samuel incute em palco, sentindo cada palavra que pronuncia, num discurso direto que suscita experiências, recordações e lembranças. Cá pelo Porto, só podemos especular como seria partilhar na sua cidade, Lisboa, tamanha energia, tamanha ligação à terra e às raízes. Samuel é, talvez, um dos maiores portadores das suas origens no rap português, apesar do seu léxico musical vastíssimo.
Com uma capacidade de scouting exímia na descoberta de novos talentos, faz questão de não os deixar cair, mesmo aqueles que já partiram. Foi assim que homenageou não só o seu avô materno em “Sangue”, também ele compositor de rimas, mas também MC Snake — em “Negociantes” —, Beto Di Ghetto e o seu antigo colega do grupo Official Nasty, o primeiro em que começou a compor música, Daddy-O-Pop, que também esteve presente.
Embora não fosse Chelas, sentiu-se o calor humano e o conforto de confrontos das letras e dos beats de Sam The Kid. Sentiu-se o poder que um bom trabalho de luzes e uma orquestra de cordas pode fazer com o hip-hop, capaz de o elevar ainda mais, para lá dos calos das ruas suburbanas, até ao mais erudito dos mundos. Sentiu-se a enormíssima capacidade musical e lírica de Samuel Mira, com raízes familiares e bairristas.
Apesar de o Porto não ser, de todo, o habitat natural do rapper lisboeta, não deixaram de fazer sentido a sua presença, as suas palavras ou os seus sons. Numa fase em que nos sentimos cada vez melhores a dialogar, a partilhar e a beber uns dos outros, faz ainda mais sentido reconhecer o valor e a importância que existe em ver um dos monstros sagrados fazer uma das suas pontuais aparições e, ainda mais, trocar saberes e sons com outros locais, ajudando-os a elevarem-se ainda mais. Como tal, por mais que se possa dizer que não é Chelas ou que o modelo tenha sido repetitivo, não se pode deixar de saudar e de acarinhar de coração e de pulmões cheios o prodígio que é Sam The Kid (e companhia).
Esta reportagem não teve recolha de imagens. A fotografia do artigo é do concerto do Coliseu de Lisboa em 2019.